A orquídea negra


Lorena Barbosa*

 

Em sua primeira obra ficcional, Roberto Sidnei Macedo, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, nos apresenta A orquídea negra, um romance de formação[1] que narra a vivência de Flor, uma jovem negra moradora de um quilombo localizado na Chapada Diamantina, que decide se desvincular das suas raízes geográficas, se mudar para Salvador  e frequentar a universidade federal como cotista, em busca da sua formação como professora.

Na crítica literária, o romance de formação é estudado pela perspectiva do amadurecimento do personagem. No texto de Roberto Sidney Macedo, é exposto o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, social e político de Flor, por uma linha cronológica que acompanha as etapas fundamentais na vida de uma mulher, sobretudo a negra: o deslocamento geográfico e o desembarque na terceira maior cidade do país, a inserção no mundo acadêmico, a descoberta da sexualidade, o racismo e o sexismo tornados práticas coletivas, as afetividades, as lutas individuais e comunitárias.

Ao sair do seu quilombo, despedindo-se da família, amigos e da presença viva de seus ancestrais, Flor parte para uma trajetória de resistência contínua dentro da universidade, lidando com questões que, na atualidade, muitos negros e negras vivenciam cotidianamente no universo acadêmico, como perseguição de professores, epistemicídio, aproximação do movimento estudantil, dificuldades financeiras, entre muitos outros. Contudo, o movimento de Flor – típico de mulheres negras como Lélia Gonzalez, bell hooks ou Beatriz Nascimento, que sentem na pele como a exaltação da intelectualidade branca é hegemônica dentro desse ambiente – provem de uma força ancestral. Com seu dendê baiano, ela perpassa pelas adversidades de um sistema que tenta excluí-la a todo momento, junto de seu companheiro Ângelo, um capoeirista, e da amiga Naira Pataxó, uma estudante indígena.

A obra se localiza na cidade de Salvador e assume a função de narrar a cultura da cidade historicamente conhecida pela sua religiosidade, africanidade diaspórica, música, tambores e uma culinária “arretada”. Em diversos trechos, é possível identificar esse compromisso, como em:

Mais atrevido, Tonhão se aproximou e Flor permitiu que ele degustasse um suculento siri mole. Ao comer a rara iguaria, Tonhão gemeu e virou os olhos de prazer. O denso caldo feito de flor de dendê, leite de coco, tomates maduros, cebola, coentro, pimentão verde e pimenta de cheiro, escorria pelos dois cantos da sua boca. Tonhão lambeu os lábios com um sorriso largo… (MACEDO, 2017, p. 61).

E em:

Foi com esse filtro cultural que Flor foi constituindo sua formação em meio à cultura que cultivava com densidade e fé. Não raro murmurava, ao analisar os descontextualizados conhecimentos de curso: – Que banquete indigesto, ufa! Até quando? Com essa expressão vinha um sopro profundo de insatisfação que canalizava sua catarse diante de saberes educacionais nos quais dificilmente se reconhecia. (MACEDO, 2017, p. 63).

A todo momento, Flor reflete sobre o currículo acadêmico que, apesar de imprescindível para uma sociedade de conhecimentos ocidentais, pouco dialoga com sua vivência, sua cultura, crenças e contexto social. Lélia Gonzalez (1984), pensadora, historiadora e feminista negra, apresenta o pensamento da hierarquização dos saberes como produto da classificação racial da população. Quem possui o privilégio social possui o privilégio epistêmico, sendo que esse modelo de valorização universal da ciência é branco, o que estrutura uma cultura hegemônica, validando um discurso que invisibiliza outras experiências.

Na sua constante busca dentro desse espaço, Flor vai descobrindo, de forma tenaz, seu lugar enquanto mulher negra na sociedade, conquistando sua emancipação existencial. A obra de Roberto Sidnei nos faz mergulhar em questões que, há anos, vêm sendo debatidas e questionadas pelos grupos de alteridade que não se sentem incluídos dentro das universidades brasileiras, seja através do currículo, da estrutura física, do corpo docente ou das bibliografias. A orquídea negra toca num ponto muito delicado de milhares de jovens negros espalhados pelo Brasil, que é a exclusão branda, alimentada a partir do processo de inclusão. (BOURDIEU, 2007).

Para tanto, como o livro se passa dentro do universo acadêmico, autores como Mãe Stella de Oxóssi, Ubiratan Castro de Araújo e Bira Gordo são abordados como educadores que fogem da norma eurocêntrica. Percebe-se que existe uma preocupação do autor em criticar a Academia, mas também em apresentar narrativas que dialoguem com as diversidades, as alteridades e os grupos etnicamente silenciados. Como professor de educação, Roberto Sidnei traça uma linha tênue entre ficção literária e material didático-pedagógico, com o singelo compromisso de evidenciar que existem narrativas contra hegemônicas dentro das universidades e que elas devem, ou melhor, já passaram da hora de serem contadas.

Belo Horizonte, junho de 2019.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. Trad. Aparecida Joly Gouveia; Rev. Maria Alice Nogueira. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (Org.). Escritos de educação. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 39-64

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. ANPOCS, 1984. Disponível em: <https://goo.gl/VFdjdq>. Acesso em: 13/06/2019.

MACEDO, Sidnei Roberto. A orquídea negra. Ilhéus: Editora UESC, 2017. 


 * Lorena Barbosa é estudante do curso de Letras da UFMG e bolsista de Iniciação Científica do CNPq junto ao projeto literafro – portal da literatura brasileira, Fase

[1]. A tradição do bildungsroman ou romance de formação – narrativa que acompanha o desenvolvimento físico, moral e psicológico da personagem central – tem no escritor alemão Johann W. V. Goethe um de seus marcos fundadores com Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, publicado em 1821.