Memorial, de Jorge Dikamba

 

Eduardo de Assis Duarte*

 

Jorge Dikamba está de volta à prosa de ficção, atividade que entrelaça com seus cantares recolhidos tanto na vasta memória musical mineira, quanto sorvidos da imaginação e arduamente trabalhados pelo poeta-cantor-instrumentista.

Veio rico em enredos marcados pelo inusitado da condição humana e temperados com humor e poesia, a ficção surge em paralelo à presença do autor no universo da música de raiz – que vem do sertão longínquo no espaço e no tempo e se contrapõe ao sertanejo de asfalto, fabricado sob encomenda.

Ficção que tem início anos atrás no desafio não só de entreter o leitor iniciante, enlaçando-o em histórias conduzidas por heróis-crianças, mas voltadas igualmente para a reflexão sobre temas tidos como “adultos”.

Em Amani, por exemplo, publicado com sucesso em 2010, com Ilustrações de Juliana Buli, mergulhamos na África de tempos passados, colonizada e submetida à desumanidade do tráfico negreiro. Dikamba dialoga com a tradição da narrativa afro-diaspórica e narra as ações a partir da perspectiva da criança negra – vítima, apesar dos verdes anos – e protagonista da resistência ao roubo de seres humanos.

Já em A menina na cadeira, de 2011, também com imagens de Juliana Buli, encontramos Luana, com seu sorriso e simpatia, apesar das agruras decorrentes da dificuldade de locomoção. Destinados ao público infantil e ricamente ilustrados, são livros que encantam leitores de todas as idades, tanto pelo enfoque realista que desperta a reflexão e o questionamento, quanto pela forma poética com que faz a menina pilotar sua cadeira de rodas numa cidade cheia de obstáculos.

O recém-lançado Memorial reúne contos de rara intensidade, vazados numa linguagem que remete por vezes à oralidade do “mineirês”, ao mesmo tempo em que revela a presença do leitor de Guimarães Rosa, a retrabalhar criativamente os falares do nosso povo. Em paralelo, Dikamba vai além do mero registro regional e povoa seus contos com a rédea solta da ficção.

 Apoiado nessa sedutora construção de linguagem que por si só assegura ao livro lugar de destaque junto à produção contemporânea, o autor nos conduz a universos os mais díspares: da Babilônia mítica às Minas Gerais dos tempos da Inconfidência; das “águas verdes” do acanhado lago do Parque Municipal belorizontino aos oceanos encrespados do Oriente e daí aos canais e gôndolas de Veneza; do Nordeste brasileiro dos tempos do cangaço às touradas espanholas ainda vivas em século XXI.

É vasto o mundo presente nessas páginas, fruto da mais irrequieta pulsão criadora. Se vasto na amplitude de cenários e dramas encenados, Memorial se faz denso ao tocar fundo no ser humano ora vítima de uma condição social opressiva, ora submerso nos próprios impulsos, fantasias e desejos impossíveis.

Memorial é o conto que dá título ao livro, premiado em certame nacional e já distinguido em publicação anterior. Guindado a título do volume, torna-se metáfora tradutora do projeto que subjaz às narrativas, a nos remeter à vasta memória cultural brasileira e ocidental. Estamos, pois, diante de precioso acontecimento – reunião de enredos que irão povoar para sempre nossa memória de leitores.

Belo Horizonte, junho de 2019.


 * Eduardo de Assis Duarte é integrante do Programa de Pós- graduação em Letras – Estudos Literários, da UFMG e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA, desta Instituição. Autor de Literatura, política, identidades (2005) e de Jorge Amado: romance em tempo de utopia, (1996). Organizou, entre outros, o volume Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. (2007), a coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2011, 4 vol.) e os volumes didáticos Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI (2014) e Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula (2014). Coordena o Portal literafro, disponível no endereço www.letras.ufmg.br/literafro.