A ficção inquietante de Jeferson Tenório

Bruna Carla dos Santos*

 

Jovem carioca radicado em Porto Alegre, Jeferson Tenório tem se revelado um ficcionista de grande fôlego. Desde 2008, quando teve seu conto “Cavalos não choram” contemplado no “Concurso Paulo Leminski”, apresenta uma trajetória de premiações que abrem caminho para o reconhecimento cada vez maior de seus escritos.

Publicado em 2013 em Porto Alegre e vencedor do prêmio de “Livro do Ano” da Associação Gaúcha dos Escritores, O beijo na parede, já em terceira edição, é um romance que chama a atenção pela forma com que arrebata a atenção do leitor, fazendo-o percorrer os cenários da carência material e afetiva que marcam os desvalidos alojados na metrópole contemporânea.

Situado entre as ruas, favelas e cortiços do Rio de Janeiro e de Porto Alegre, o romance “assume o desafio da primeira pessoa”, para lembrarmos as lições do também ficcionista Cuti, e traz para o centro da narrativa a fala e as inquietações de João, 11 anos, negro, órfão de pai e mãe:

Eu estava tomando café da manhã quando vi o Airton Senna se espatifar na curva Tamburello. Era 1º de maio. Um ano depois, no mesmo dia, minha avó também se arrebentou num poste na Av. Protásio Alves. Ela estava num taxi, era um fusca. Batida feia. Seu Ramiro, que é muito experiente, disse que no fim das contas todo mundo um dia vai bater de frente numa parede. [...] Antes de minha mãe morrer eu não conhecia a tristeza. Mas, quando ela se foi, deixei de ser ignorante nesse assunto. (TENÓRIO, 2013, p. 7).

Já de início, mais precisamente no primeiro parágrafo do livro, somos capturados por essa voz narrativa em primeira pessoa: “quero dizer a vocês que não gosto do futuro. Nem dos planejamentos. Também quero acrescentar que sou um menino meio precoce. E quando a gente ganhar mais intimidade, eu conto porque fiquei assim. Se vocês acharem que vale a pena eu conto.” (Ibidem, p. 7) Aí temos, portanto, uma sutil engenharia construtiva a articular ficção e confissão, infância e maturidade, vida e morte. A fórmula se desenvolve de modo competente ao longo do texto, numa paradoxal aproximação entre inocência e experiência, que enlaça o leitor e o faz mergulhar no clima nada ameno das ações que se seguem.

A criança assaltada pela pobreza e o abandono enfrenta ainda o racismo entranhado no convívio com tios e primos de pele mais clara, colegas de escola, professores. O resultado é uma narrativa tão brasileira quanto universal, pois voltada para a crueldade das relações entre segmentos vítimas da desigualdade econômica e social que marca o mundo de hoje. E que, no caso brasileiro, vê-se agravada pela herança funesta de mais de três séculos de escravidão, a produzir a subcidadania derivada de uma escala de valores marcada pelo colorismo que rebaixa e segrega os mais escuros.

Em seu livro Vidas desperdiçadas, Zygmunt Bauman(2004) aborda as consequências da globalização e aponta o cenário sombrio em que está imersa a contemporaneidade. O autor classifica de “refugo humano” os indivíduos que não conseguiram se inserir no processo e passam a vítimas de uma saga implacável que produz preconceito e exclusão, além de desemprego, fome e morte.

Um dos achados de O beijo na parede é justamente colocar sob o olhar da criança abandonada a lupa que aponta as feridas abertas dessas vidas tão abandonadas quanto desperdiçadas. Jeferson Tenório nos faz mergulhar no universo precário do cortiço onde sobrevive Estela, prostituta que o “adota” e sofre com as pancadas do gigolô. Após a surra que leva por estar se encontrando com um homem sem cobrar, Estela se abre com o garoto:

Sabe, João, um dia eu já fui feliz”, disse ela baixando os olhos e fazendo outra careta de dor.
"Quando, Estela?"
"Quando tinha sua idade."
Fiquei olhando para Estela e queria muito acreditar que ela já tinha sido feliz, porque nunca conheci uma criança que tenha encontrado a felicidade.

"Eu só conheço a tristeza, Estela." (Ibid., p. 80).

O universo da prostituição contempla também Verônica, travesti vítima de depressão, que recebe um tratamento isento dos estereótipos tradicionalmente desumanizadores. A perspectiva que orienta o livro conduz ao respeito para com o sofrimento da personagem, via de regra alvo da segregação que obscurece sua visibilidade social, sem falar da violência muitas vezes tolerada devido ao estigma que persegue as “Genis” no universo da chamada masculinidade tóxica.

O romance fecha o leque de abordagem da “profissão mais antiga da História” com Dinorah, antiga cafetina doente e aposentada sem pensão: “no quarto andar também morava a velha Dinorah, que já tinha se virado muito na vida e agora que ela precisava de um asilo para puta era obrigada a ficar naquele muquifo.” (TENÓRIO, p. 56).

O painel humano se fecha com seu Ramiro, idoso igualmente refugado pela família, que tem no menino seu único amigo, criança sem futuro, mas plena de experiências: “João você não parece ter esta idade!”( TENÓRIO, p. 93) é frase recorrente entre os personagens com quem o menino conversa e tenta, muitas vezes inutilmente, amenizar seus sofrimentos, como na tentativa de simular um noivado para Dona Dinorah às vésperas de sua morte.

Além do painel humano que aproxima O beijo na parede da tradição do “romance de coletividade”, presente na literatura brasileira desde O cortiço, de Aluísio Azevedo, e Suor, de Jorge Amado, entre outros, Jeferson Tenório traça ainda outros diálogos, trazendo para a cena nada menos do que Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes, além da referência fundamental a Brecht quando este se refere aos homens “Imprescindíveis”. Escrita num muro, a frase de Brecht adentra à reflexão do narrador e ressoa em toda a sua trajetória/formação.

Já o Dom Quixote é encontrado no chão, servindo de suporte ao pé de uma mesa. Logo substituído por um tijolo, o volume de capa dura passa a acompanhar João ao longo da narrativa. A loucura do “Cavaleiro da Triste Figura” serve de emulação para a via crucis do garoto pelos quartos do “muquifo”. Apesar de não encontrar – nem procurar – a nobre donzela imaginária, ele segue lendo, muitas vezes em voz alta para outros ouvidos, e lembrando as façanhas em busca do exemplo a seguir: “Dom Quixote era um cavaleiro muito corajoso e que passou a viver de aventuras. Enfrentava gigantes com sua imensa lança, duelava contra aqueles que cometiam injustiças. Salvava donzelas em perigo e lutava por amor”. (TENÓRIO, p. 29)

Jeferson Tenório vai além do simples retrato da carência e da discriminação. Reveste seus personagens de um comovente espírito de solidariedade, cumplicidade e respeito ao Outro. João aprende com seu Ramiro lições de humanidade forjadas na dor e no abandono. Mesmo sobrevivendo com pouquíssimos recursos, o velho quase sempre faz suas apostas no jogo do bicho. E, quando ganha, gasta todo o prêmio num jantar com os vizinhos. Dias depois, sem nada para comer, recebe o pão salvador das mãos do menino. A partir destes gestos e de outros, como o que leva o narrador a todo instante mencionar o “beijo na parede”, o romance de Jeferson Tenório nos fascina e se transforma, ele sim, em leitura imprescindível para jovens de todas as idades.

Belo Horizonte, junho de 2019.

 

Referências

BAUMAN, Zygmund. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar,2005.

TENÓRIO, Jeferson. O beijo na parede. 3.ed. Porto Alegre: Editora Sulina, 2013.


*Bruna Carla dos Santos é professora, Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas e pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, Faculdade de Letras da UFMG.