Poeta em prosa e punch: a escrita-vida de O Iludido.

 

Adélcio de Sousa Cruz*

 

A parede

Há uma parede. Não, não

Há uma parede. Há uma

Muralha. Na verdade, há.

Estou do lado de cá disso.

 Anelito de Oliveira (2012)

 

A estreia do poeta, ensaísta, professor universitário e pesquisador Anelito Pereira de Oliveira na prosa ficcional parecia ser um acontecimento improvável devido ao seu fulcral compromisso com o poema. Não é mais... saiu do forno seu livro de contos O Iludido (2018), pela Páginas Editora, de Belo Horizonte. Certa vez, em entrevista ainda inédita, revelou-me, ao pedir-lhe que definisse sua poesia, disparou: “Minha poesia é um soco de Mike Tyson”. E o público leitor poderá ter a mesma sensação ao ler alguns dos contos presentes em sua primeira investida na prosa de ficção. Os textos publicados neste livro também trafegam entre a forma do conto e da crônica, explorando a fluidez da fronteira que, da década de 1960 até nossos dias, tem se mostrado mais difícil de delinear. A literatura é vida e vice-versa no caso específico de alguns textos, sendo esta uma das marcas de suas narrativas curtas. O clima geral desta coletânea em prosa me fez recordar a literatura claustrofóbica de Tremor de terra (1978) do também mineiro Luiz Vilela, que por sua vez, ecoa e traduz o clima kafkaniano do mundo pré-guerras mundiais. Anelito de Oliveira, além disso, ecoa as indignações cruz-sousiana (Cruz e Sousa, o bardo negro da Ilha do Desterro), e retomo ainda à referência feita pela escolha de uma das epígrafes, de autoria do “negro ou mulato, como queiram”: o carioca Lima Barreto. Talvez seja dali que tenha brotado o título do conto que nomeia a coleção de narrativas. O narrador criado por Oliveira nos transporta para lugares escusos: o íntimo do olhar, do pensamento turvo e agônico de suas personagens, algumas delas de pele negra ou quase negra, rompendo a página.

A espera é aspecto marcante, especialmente pelo modo como é alocada nas narrativas, nos fisgando pelo baço, comprimindo nossos pulmões. Parece assim ser em “Vestígios, Vertigens”, “A casa azul”,”As variações do corpo”, “As noites de Maria”, para nos deixar suspensos, com as pontas dos pés roçando o piso, a corda do clímax insistindo em não liberar nosso fôlego no conto “O iludido”. A voz narrativa começa por nos convidar gentilmente para assistir pugilatos, aos fragmentos... Entretanto, quando nos damos conta, estamos em pleno ringue, tentando nos esquivar de seus golpes, pressionados junto às cordas, com ouvidos à procura do som da batida metálica que interromperia cada assalto. Espaço temporal para catarses não há, por mais que tentemos...

 

Volta e meia, recordo-me das paredes. Era um tempo de muitas facadas. Havia algo de honroso em esfaquear.

Certa noite, ele chegou esfaqueado. Tinha ocorrido num baile. Cortes meio fundos! Um pouco abaixo do rim. Se pegasse no rim! Outro quase pega lá. Tragédia!

Por sorte, o desafeto o atingira apenas ali. Quase de raspão.

Mas não, fora mais rasteiro, o desafeto. Traição. À traição, que era ele, o galanteador, já conseguia sair fora. Por pouco. (OLIVEIRA, 2018)

 

Vestígios de sangue na saliva que nos cala... procurando apoio, mas se não foi possível para a personagem, por que o seria para nós, pobre público leitor? A cena nos faz recordar outra em similaridade e que permanece presente nos versos da canção de Gilberto Gil, “Domingo no parque” (1968): “... olha o sangue, olha a faca!” Não nos impinge a sensação apenas da dor física, esse narrador, quer nos marcar nas franjas do subconsciente... remoer nosso fígado em aflições, já que evitamos empatia no cotidiano sangrento da vida que nos acossa. E as narrativas apontam ainda para nosso olhar que se desvia de outras pessoas acossadas, presas às cordas, encostadas nas paredes da espera... pelo próximo golpe...

O conto “A casa azul” é o primeiro a lançar o público leitor à lona, desfiando mortalhas que encobrem o cotidiano de uma rua periférica, na qual, estranhamente, a alegria parecia ser definitivamente proibida. A “felicidade” tem cor... e ela não é negra... pelo menos naquele vão de rua... numa imaginária cidade que pode ser muitas pelas quais passamos algum tempo em nossa vida. A lente de narrar é posta nas mãos de crianças que nos surpreendem pelo punch/ponto de vista:

 

Antes nossa rua era triste. Não gostávamos de morar nela. Morávamos porque não tinha outro jeito. Crianças, não brincávamos. Não tinha graça. (...) No final de semana, então, dificilmente se via uma criança por lá. Ficavam mesmo só aquelas pobrezinhas, desconhecidas, porque não tinha aonde ir. Eu mesmo ficava. Ficávamos dentro de casa. Quase sempre, dormindo. No sonho, às vezes nos alegrávamos vendo uma rua diferente, com portas e janelas abertas, com pessoas conversando e sorrindo para a vida, com a gente brincando para lá e para cá, com flores vermelhas despontando dos quintais, com cores vivas saltando das paredes das casas, uma rua alegre. (Idem)

 

Escolhemos propositalmente a cena de abertura para iluminar a tristeza que havia sitiado a voz do narrador personagem, na fase de transição da infância para a adolescência, mas sem direitos às ilusões suaves da inocência... o que em contrapartida, já nos implica: nós, as pessoas “não-inocentes”, as pessoas “culpadas”, pelo menos, sob a ótica judaico-cristã-ocidental... Mais adiante, nos confrontaremos com a marca temporal vivida por aquelas crianças, dos treze aos quinze anos de idade... o golpe, como na realidade, vem sempre beirando os dezesseis... Propositalmente, interromperemos aqui e lhe convidamos para a sinopse do próximo round...

Zuzinha é a personagem em torno da qual dança o narrador-boxeador em terceira pessoa, na narrativa “As variações do corpo”. Retratos da precariedade que demoram a ser revelados: falta escuridão à “câmara escura” ou tinta para a impressora digital? O texto poderia ser classificado como um anti-buildunsgroman ultra compactado. A menina se assemelha, em alguns aspectos e à guisa de rascunho/croqui, às pessoas de papel das produções de escrita feminina negra. Contudo, a parca similaridade termina por aí: “Maria Luiza de Jesus. Zuzinha. Assim a chamavam todos. Zuzinha. O pai que quis colocar o apelido. A mãe fechava a cara sempre que ouvia o pai abrindo a boca: Zu-zi-nha” (OLIVEIRA, 2018). O desfecho não é exatamente o que poderia se passar na mente das pessoas que fazem “leitura à primeira vista” desta rápida citação. O trágico que permanece assombrando as margens da diáspora africana nas Américas... entre no ringue e dance... nada de delicadezas, pois é o boxeador-narrador que controla o desenrolar da trama...

Não por acaso, decidimos nos encaminhar para uma finalização, ao modo de pré-intervalo: é a vez de lutarmos com a narrativa “O iludido”. O recurso do narrador-personagem é novamente utilizado, aproximando perigosamente quem lê a história que desfibrila diante de seus olhos... a palavra acelarando a batida cardíaca, esgarçando a memória na primeira página do conto, revelando a quem se atreve subir no ringue, mais uma vez, o blefe, a finta, a armadilha: “(...) não tenho muito jeito para esse negócio de escrever (...)”. Aqui, mimetiza a conversa perigosa proposta pelos narradores criados sob a lâmina-pena de Machado de Assis, Ruth Guimarães, Oswaldo de Camargo, Cuti, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves... e o leitor parece ainda não se dar conta do peso da mão que irá lhe abater, bem ali, nas cordas, disparando golpes cruzados de todas as direções... o leitor, logo vê que não passa de mais um iludido...

 

Referências

 GIL, Gilberto. Domingo no parque. In: Gilberto Gil. Faixa 10. São Paulo: Fontana, 1968. LP.

OLIVEIRA, Anelito de. A parede. In: A Ocorrência. Série Acontecimentos Criativos – Volume 2. Belo Horizonte: Orobó Edições, 2012. p. 17.

____ . O iludido. Belo Horizonte: Páginas Editora, 2018.

VILELA, Luiz. Tremor de terra. São Paulo: Ática, 1978.

 

[1]                      * Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFV (Universidade Federal de Viçosa). Leciona teoria da literatura e literatura brasileira nos cursos de graduação do Departamento de Letras/UFV. Mestre em Teoria da Literatura, Doutor em Literatura Comparada pela UFMG e concluiu pós-doutorado na mesma instituição. Pesquisador vinculado aos núcleos NEIA e NELAP/UFMG.

 

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