Passado, presente, futuro: Cadernos Negros 40

 Eduardo de Assis Duarte*

A série Cadernos Negros é parte da história cultural da afrodescendência no Brasil desde o primeiro número, lançado em 1978, quando este inscreve na Apresentação a necessidade de “renascer” e “limpar o espírito”; de “arrancar as máscaras brancas” e “por fim à imitação”; de denunciar a “lavagem cerebral” e a “poluição das mentes”; necessidade ainda de “assumir a negrura bela e forte” e a “legítima defesa dos valores do povo negro”. E mais: “Cadernos Negros é a viva imagem da África em nosso continente. É a Diáspora Negra dizendo que sobreviveu e sobreviverá, superando as cicatrizes que assinalaram sua dramática trajetória, trazendo em suas mãos o livro.” Essa vinculação umbilical entre literatura e história consagra o verso e a prosa como meios de expressão negra e, nesse sentido, também como instrumento retórico e político de uma consciência étnica e cultural. A “negritude posta em poesia”, continua o texto da Apresentação, quer, portanto, ser parte de uma luta – “a luta contra a exploração social em todos os níveis”. E, nesse sentido, compreende a poesia como “verdade” e “testemunha do nosso tempo”.

As proclamações contidas na abertura de Cadernos Negros 1 operam como verdadeiro manifesto, ou seja, como texto-guia não só para leitores e críticos, mas igualmente para tantos outros autores e autoras que a série irá publicar ininterruptamente desde 1978. Além disso, revelam profunda consciência histórica e remetem aos precisos ensinamentos de um precursor também negro – Machado de Assis – quando este, ainda jovem de trinta e quatro anos, afirma que o sujeito da escrita deve ser antes de tudo alguém “de seu tempo e de seu país”, mesmo quando trate de assuntos os mais distantes. E, deste modo, fazer com que a escrita nascida das demandas do presente tenha força e substância para se “dirigir a todos os tempos”.

A menção à diáspora africana explicita a vinculação dos Cadernos à tradição literária negra que percorre o século XX a partir das Américas. E quando os poetas de Cadernos Negros 1 afirmam ter “renascido”, remetem seus leitores à “Renascença do Harlem” e, por extensão, ao “New Negro Movement”, da década de 1920 – que através de poetas como Langston Hughes e muitos outros, produz uma literatura inovadora na língua inglesa, cujo centro é a celebração da negrura, e que logo se consolida nos Estados Unidos, no Caribe e chega à França. Ao mencionar a “legítima defesa dos valores do povo negro”, Cadernos Negros 1 desperta nossa memória para o título da revista Légitime Defénse, fundada em Paris pelos poetas negros de língua francesa na década de 1930 e um dos berços do movimento da Négritude.

Deste modo, a iniciativa pioneira de 1978 tinha, sim, os olhos postos no passado de resistência e afirmação, para com ele aprender e encarar o desafio da construção literária negra em tempos de censura e autoritarismo civil-militar. E, assim fazendo, reunir e preparar o coro de vozes que iria desabrochar e soltar o verbo nas décadas seguintes.

E assim se fez. O primeiro número continha textos de apenas oito participantes – seis homens e duas mulheres: Cuti, Oswaldo de Camargo, Henrique Cunha Jr., Eduardo de Oliveira, Angela Galvão, Jamu Minka, Hugo Ferreira e Célia Pereira. O segundo, lançado no ano seguinte, já apresenta um crescimento de 50%, embora mantenha a desigual proporção em termos de gênero: nove homens e três mulheres.

Em 1980, a edição de Cadernos Negros 3, além de chegar a vinte e um participantes, coincide com a criação do Quilombhoje Literatura – organização responsável pela edição e distribuição da série, além de cada vez mais congregar novos membros para o desafio de falar o negro a partir de seu próprio lugar de fala. Desde então, contribuições vindas dos quatro cantos do país não deixaram de crescer e as trezentas e setenta e cinco páginas de Cadernos Negros 40, lançado em fins de 2017, trazem uma seleção de quarenta e dois autores, metade constituída de mulheres.

Entre 1978 e 2017, muitos chegaram outros tantos partiram. Os Cadernos jogaram luz sobre escritores da primeira metade do século XX, como Solano Trindade e Carlos de Assumpção, este último hoje decano e patrimônio vivo da literatura negra no Brasil. Por suas edições passaram nomes históricos e sempre vivos nas páginas que deixaram – Oliveira Silveira, Paulo Colina, Arnaldo Xavier, José Carlos Limeira, Jônatas Conceição, Eduardo de Oliveira. E tantas/os mais foram chegando e tomando lugar dentro e fora da série: Conceição Evaristo, Márcio Barbosa, Miriam Alves, Éle Semog, Esmeralda Ribeiro, Lepê Correia, Lia Vieira, Allan da Rosa, Cristiane Sobral, Sacolinha, Elizandra, Lande Onawale, Lourdes Teodoro, Akins Kintê, Alcidéa Miguel, enfim, pelo menos três gerações identificadas às demandas dos novos tempos sem perder de vista os elos de identificação com o projeto que os aproxima.

Se voltarmos os olhos mais uma vez para o número 1, veremos que ali estão os caminhos, temas e procedimentos que, juntos, compõem toda uma poética que permaneceu e permanece como encruzilhada e ponto de encontro entre passado, presente e futuro. Ao mesmo tempo em que retoma a tradição da literatura negra ocidental e as contribuições de precursores como Machado, Maria Firmina dos Reis, Cruz e Sousa, Lima Barreto, Solano Trindade, Lino Guedes e Carlos de Assumpção, encontra ao longo dessas 4 décadas novos rumos e modos de fazer, conforme se constata na consulta aos volumes de poesia e prosa publicados até o momento. A pauta se diversifica, novos ângulos, novas questões e, também, novos procedimentos.

Longe de caracterizar uma Babel literária obcecada com a inovação e a descontinuidade oriunda da contínua experimentação, a diversidade de posturas reforça a imagem dos Cadernos como espaço de criação em processo, aberto ao novo e ao devir. Mas também espaço de coerência com um projeto maior, que universaliza as questões ao mergulhar no seu tempo e no seu país a fim de expressar a “consciência negra do negro”, para ficarmos nos termos de Achille Mbembe.

Cadernos Negros 40 navega na maturidade que acolhe o novo sem deixar de lado a tradição de enfrentamento, que se espraia pelo Atlântico Negro ao longo do século passado. Esta se faz presente na representação crítica da questão racial e no embate pela afirmação que ainda hoje desafia a afrodescendência, certamente em escala maior do que no século passado, devido ao incremento da violência. É o caso de “Maria Theresa”, conto de Cristiane Sobral que explora as interseções entre etnicidade e gênero; ou de “Eles foram passear no cavalo de Ogum”, de Esmeralda Ribeiro, que mergulha fundo no cotidiano da violência urbana e da perseguição aos cultos afro.

Já Akins Kintê trabalha a violência construindo com jeito de veterano a tensão entre a conquista do amor seguida no mesmo instante da perda da liberdade. A denúncia do racismo enquanto motor da opressão imposta a homens e mulheres negras se faz presente em vários dos textos selecionados para esta edição da coletânea, como os de Júlia Costa e Kasabuvu, entre outros. É a velha chama da consciência que não se apaga.

Por outro lado, Cadernos Negros 40 abre suas páginas para horizontes discursivos além da pele – o amor, o ciúme, a vingança, a solidão, a loucura. E formata também outras formas e artifícios construtivos, alguns a lembrar a ironia e o sarcasmo com que Machado de Assis fustiga a elite branca, como em “Herdeiro”, de Miriam Alves; ou a dureza crua e cheia de surpresas do acerto de contas encenado por Cuti em “Memória suja”, que remete às mais primorosas heranças da short story ocidental. Tal é também o caso de “O vazio”, de Márcio Barbosa, em que o autor retoma sua verve surrealista para dialogar com o imponderável da vida, do qual não escapam as relações conjugais. E, ainda, o trato leve e bem humorado com que Lepê Correia trabalha a velhice em “Sem vacilar” e “Nego Arlindo”; ou a forma terna que marca a voz feminina que narra “Lençol azul de seda”, de Sacolinha. Contos que remetem à pluralidade de temas e de tratamentos. E que narram a humanidade presente na resistência negra.

Nessa linha, impõe-se destacar as contribuições tanto de jovens iniciantes quanto de autores maduros identificados às expressões literárias contemporâneas. É o caso de Eliana Alves Cruz, contemplada com o Prêmio Oliveira Silveira, da Fundação Palmares, por seu romance Água de barrela. Seu conto “Oitenta e oito” adota o modelo da ficção científica para abordar a escravidão presente no futuro em vários planetas.

Enfim, pela rápida súmula aqui apresentada, pode-se dizer que Cadernos Negros faz parte em definitivo não apenas da história cultural do negro no Brasil, mas da própria história da literatura brasileira. E isto se deve a uma constatação meramente empírica: da mesma forma que a Literatura Negra – ao contrário do Romantismo, do Modernismo e de todos os outros ismos – figura na história como o primeiro movimento literário internacional oriundo das Américas, os Cadernos Negros e o Quilombhoje Literatura compõem o mais longevo coletivo de autores da literatura brasileira contemporânea.

E isso não é pouco.

Podemos, sem dúvida, pensar esse acervo de quatro décadas como espaço de aprendizagem, logo, como espaço de saber. Nas palavras de Cuti, nos Cadernos o negro “existe em sua integridade e se realiza enquanto sujeito”. Diante destas experiências exitosas com a palavra, é preciso mais do que nunca desejar vida longa aos Cadernos Negros.

Belo Horizonte, fevereiro de 2018.

 

Referência

Cadernos Negros 40: contos afro-brasileiros. Organização de Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa. São Paulo: Quilombhoje, 2017.


* Eduardo de Assis Duarte é professor da UFMG, autor de Jorge Amado: romance em tempo de utopia (1996) e de Literatura, política, identidades (2005). E organizador, entre outros, de: Machado de Assis afrodescendente (2007); da coleção Literatura e Afrodescendência no Brasil: antologia crítica (4 vol., 2011); e dos volumes didáticos Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI (2014) e Literatura afro-brasileira: abordagens na sala de aula (2014). Coordena a Comissão Editorial do Portal literafro, disponível no endereço: www.letras.ufmg.br/literafro

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