Eliane Debus: uma análise negra da literatura infantil e juvenil 

Paulo Vinicius Baptista da Silva*

Este livro apresenta uma perspectiva de análise sobre a diversidade étnico-racial na literatura infantil e juvenil. A hipótese de Eliane Debus sobre o papel da literatura em “problematizar reflexões sobre práticas antirracistas para o universo da infância” (2017) vem discutida em múltiplas implicações, na síntese da trajetória e achados de pesquisa da autora, e tem seu potencial revelado em sua análise das contribuições de quatro autores/a de literatura infantil e juvenil: Joel Rufino dos Santos; Rogério Andrade Barbosa; Júlio Emílio Braz e Georgina Martins.

A seleção de escritores/a tem um ponto compartilhado com a própria Eliane; estes/as autores/as que têm a “pele cor de chocolate” (como se auto definiu Chimamanda Adichie) revelam em seus escritos o interesse em falar dos seus, de suas histórias ancestrais, de seus conflitos, de contradições que observam. A discussão que anuncia novidadeira e inicia no capítulo inicial é se, de forma similar aos autores que propõem uma literatura afro-brasileira, seria possível esta classificação, literatura negra ou afro-brasileira, para as publicações que são crescentes de literatura de recepção infantil e juvenil com temática africana ou afro-brasileira. À moda de Georgina Martins, Eliane não oferece uma resposta direta e muito menos cabal. Caberá a você, leitor, chegar à sua interpretação. Mas Debus apresenta muitos dados e uma rica discussão, ao longo do livro, que subsidia em muito a afirmação de uma literatura afrodescendente infantil e juvenil.

A poesia/epígrafe deste livro o apresenta de forma muito mais elaborada que estas linhas serão capazes de realizar. O possível para esta apresentação é propor uma interpretação das palavras do poema, que trazem a sabedoria polissêmica das mães, relacionando-a com as análises desenvolvidas por Debus.

Mãe tem um sentido metafórico de raiz, de ancestralidade, de matriz. Então, este livro analisa a escrita de obras dirigidas à infância que tem tal aspecto comum, buscam e revelam matrizes.
No comentário da Eliane Debus acerca da obra Literatura e afrodescendência no Brasil: Antologia Crítica assinala-se uma passagem que pode ser reveladora de tal aspecto: “com diferentes pontos de vista, ora até destoantes, mas empenhados em construir o projeto de uma literatura negra ou afro-brasileira” (DEBUS, 2017). Portanto, escritos de Joel Rufino dos Santos, Rogério Andrade Barbosa, Júlio Emilio Braz e Georgina Martins teriam o sentido de, consciente ou inconscientemente, operacionalizar um projeto de literatura negra ou afro-brasileira em livros voltados, em última instância, para infantes.

Um ponto a chamar a atenção numa estética negra em tais narrativas voltadas para a criança é a busca da origem. Joel Rufino dos Santos elege como temas passagens pouco exploradas sobre as formas de afirmação de personagens caros para a história afro-brasileira (Luiza Mahin e Luiz Gama; Zumbi; Domingos Jorge Velho, o “devorador de índios”). Rogério Andrade Barbosa faz a transposição das próprias histórias africanas para o público brasileiro. Júlio Emilio Braz também o realiza (Luiz Gama; Griot) e, nos livros aqui analisados debate os conflitos que afligem a personagens negras mirins, ou seja, traz para a ficção o ponto de vista do eu enunciador negro/a e suas agruras, deparando-se com a dupla consciência de ser negra/o na sociedade brasileira (emparedados?). Georgina Martins trabalha a poética nos conflitos arraigados na condição de ser criança nesta floresta cheia de perigos que é a sociedade brasileira e estas crianças têm cor; a ancestralidade se manifesta em Meu tataravó africano, cujos elementos de intertextualidade com A caixa de segredos, de Rogério Andrade Barbosa são perscrutados por Debus.

Temos uma temática recorrente nas obras tão distintas dos autores/a apresentados/a analisados/a, as manifestações nas narrativas da “mãe África”, das yabás, ancestralidade de feminina sapiência, do pranto e do consolo, da brandura e da violência, da alegria inteira e do andar descalço, das flores amassadas embaixo das pedras.

Uma marca correlata à ancestralidade é a importância da palavra dita, da oralidade. Em todos os casos, a transposição das histórias ouvidas, coletadas, criadas, (re)inventadas tem um vínculo forte com a tradição dos/as contadores/as de histórias. A escrita que se auto afirma nas africanidades vem diretamente relacionada à expressão dos/as griots, dos sábios que detém o conhecimento e o transmitem pela oratória. No caso de Joel Rufino dos Santos, a referência de contadora de histórias é sua mãe. A obra de Rogério Andrade Barbosa o configura, conforme argumenta Debus, como representante da griotagem na literatura infanto-juvenil brasileira. E nas coletâneas de contos africanos copilados/reescritos por Júlio Emílio Braz, as narrativas, conforme a análise de Debus, são marcas perpetuadas por gerações de narradores. Georgina Martins se apresenta como “filha de uma contadora de histórias com um fazedor de brinquedos[1]”. Na tradição dos dizeres dos griots os/a autores/a buscaram inspiração para sua poesia, para assuntar a vida, por brandura na fala, por propor dizeres fecundados na boca do mundo.

As palavras ganham gosto especial nas narrativas dos/a autores/a. Em Georgina Martins galgam caminhos poucos explorados, percorrem espaços das mazelas sociais e convidam à reflexão, abrindo as interpretações aos leitores, nos informa Debus. Em Júlio Emílio Braz representam o ausente, as narrativas estão impregnadas da oralidade e também tratam sobre temas árduos como a morte. Num caso explorado por Debus o poder da palavra é sublinhado como podendo levar a este fim trágico. Em Joel Rufino dos Santos temos a oralidade que impregna as temáticas dos povos excluídos e de vozes silenciadas em discursos oficiais, revela a autora deste livro. Em Rogério Andrade Barbosa também “o fio imemorial da oralidade” (2017) enreda as narrativas. O cuidado da poesia revelado nas diferentes narrativas põe reparo nas coisas, as palavras trabalhadas são dispostas de forma elaborada, com escolha lexical e gramatical que revelam ao mesmo tempo um falar que aproxima o leitor, que dirige e mantêm a atenção, ao mesmo tempo em que vigora a fruição, as frases organizadas de forma a remeter às contações orais.

A apresentação zelosa e a análise elaborada de Debus são um convite à leitura. Convite que se desdobra nas diversas perseguições de nossas escrevivências; que apresenta, ao desnudar obras que buscam fazer da palavra artifício, arte e ofício, dos cantos e falas de múltiplos livros apresentados ao leitor.
Boa degustação!

Curitiba, maio de 2017.

 

¹Da página web da autora, (www.georginamartins.com.br), página inicial. Acesso em: 03 maio 2017.

* Paulo Vinicius Baptista da Silva é Doutor em Psicologia Social pela PUC São Paulo, professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná e membro do NEAB – Núcleo de Estudos Afro-brasileiros desta Instituição. É autor, entre outros, de Racismo em livros didáticos: estudo sobre negros e brancos em livros de Língua Portuguesa (2008).