Apresentação

 Paulo Paim*

Abdias Nascimento – esse é um nome que deve ser reverenciado, no Brasil e em outras partes do mundo onde existam africanos e seus descendentes!

Já tivemos muitos batalhadores pela causa da igualdade racial, mas, se quisermos citar uma personalidade que se destacou e cujo trabalho significou muito para a melhora das condições dos menos favorecidos e dos negros, sem dúvida, Abdias merece ser colocado em lugar de destaque. Por isso mesmo é considerado o precursor do movimento negro no Brasil.

Neste ano de 2014, comemoramos seu centenário de nascimento, já que veio ao mundo em 14 de março de 1914 na cidade de Franca, Estado de São Paulo. E faleceu no Rio de Janeiro em 24 de maio de 2011, faltando bem pouco para completar um século de uma existência muito produtiva.

Em 1930, chegando em São Paulo com apenas 16 anos, Abdias começou a participar de atos públicos da Frente Negra Brasileira e a buscar formas de lutar contra a forte segregação racial que havia, então, naquela cidade.

Em 1944, fundou o Teatro Experimental do Negro, que promoveu a Convenção Nacional do Negro em 1945-46. Dessa Convenção se originaram propostas para a Assembléia Nacional Constituinte de 146, para inclusão de políticas públicas que beneficiassem a população afrodescendente e de um dispositivo que tornasse crime de lesa-pátria a discriminação racial.

Ainda como líder do Teatro Experimental do Negro, Abdias organizou o 1° Congresso do Negro Brasileiro em 1950.

Abdias Nascimento pertencia aos quadros do antigo PTB e, após o golpe militar de 1964, mesmo vivendo no exílio, participou da formação do PDT. Quando voltou ao Brasil, em 1981, liderou a criação do Movimento Negro do PDT.

Tornou-se o primeiro Deputado Federal negro que dedicou seu mandato prioritariamente à luta contra o racismo. Nesse período, apresentou projetos de lei que definiram o racismo como crime e criaram mecanismos de ação compensatória, visando diminuir as desigualdades que atingem os negros na sociedade brasileira.

Na década seguinte, quando assumiu o mandato de Senador (em 1991 e de 1997 a 1999), sucedendo o saudoso Darcy Ribeiro, manteve-se fiel à mesma linha de atuação já observada na Câmara dos Deputados.

No Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro, foi nomeado pelo Gover­nador Leonel Brizola como Secretário de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras (1991-1994). No final da década (1999-2000), assumiu a Secre­taria Estadual de Cidadania e Direitos Humanos do Rio de Janeiro.

Como nunca se curvou ao sistema em tempo algum, Abdias chegou a ser preso durante a ditadura de Getúlio Vargas por ter resistido a agressões racistas e por protestar contra a presença militar norte-americana na Baía da Guanabara.

Em 1955, idealizou e realizou o Concurso de Artes Plásticas sobre o tema Cristo Negro, que, por seu caráter polêmico, rendeu-lhe a condenação de setores da Igreja Católica, mas recebeu o apoio de Dom Hélder Câmara.

Incansável, Abdias trabalhou para criar o Museu de Arte Negra, que teve sua exposição inaugural no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em 1968. Por essa época, Abdias já era alvo de vários inquéritos policial-militares, que o impediram de retornar ao País, já que se encontrava em Nova York no dia da promulgação do Ato Institucional n. 5, que fechou o Congresso e instituiu uma violenta onda de repressão. Teve o passaporte apreendido e passou a ser considerado apátrida, sendo-lhe vedada a entrada em países como a França.

Sua importância no cenário internacional já era reconhecida, o que o levou, a partir ano de 1969, a atuar como Conferencista Visitante da Escola de Artes Dramáticas da Universidade Yale. Ainda foi Fellow de outra universidade de prestígio, a Wesleyan, e durante uma década professor titular da Universidade do Estado de Nova York. Nesse período, desenvolveu sua atuação como artista plástico, abordando os valores da cultura afro-brasileira e da luta pelos direitos humanos dos povos africanos de todo o mundo. A partir daí, desempenhou uma carreira internacional em que convivia com grandes intelectuais da época, a exemplo de Norman Mailer, John Cage, Wole Soyinka, Amiri Baraka (Leroi Jones), Cheikh Anta Diop, Aimé Césaire, Léon Damas, Julius Nyerere, C. L. R. James, Buckminster Fuller e outros.

Sua atuação em prol das mais variadas causas de nações africanas, bem como contra as discriminações de todo tipo por que passam os que têm raízes nesse continente, rendeu-lhe vários prêmios, valendo destacar: Prêmio UNESCO na Categoria Direitos Humanos e Cultura de Paz, em 2001, e Prêmio Comemorativo das Nações Unidas por Serviços Relevantes em Direitos Humanos, em 2003. Em 2004, por ocasião dos dez anos do fim do regime de apartheid, recebeu o prêmio de reconhecimento do Governo da República da África do Sul pelo seu grande envolvimento na campanha internacional em prol da democratização do país. Em 2009, foi indicado oficialmente ao Prêmio Nobel da Paz, mas já havia sido lembrado anteriormente como merecedor dessa grande honraria.

Também recebeu títulos de Doutor Honoris Causa das Universidades do Estado do Rio de Janeiro (1993), Federal da Bahia (2000), de Brasília (UnB) (2006), Obafemi Awolowo (Ilé Ifé, Nigéria, 2007) e do Estado da Bahia (UNEB) (2008).

Desde os anos 1970, Abdias já lutava pela instituição do Dia Nacional da Consciência Negra, estabelecido em 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares, por tudo que esse grande líder significou para as aspirações de liberdade dos africanos que vinham para o Brasil na ultrajante condição de escravos. Assim se expressou numa entrevista jornalística:

Eu já costumava dizer que a Lei Áurea não passava de uma mentira cívica. Sua comemoração todo ano fazia parte do coro de autoelogio que a elite escravocrata fazia em louvor a si mesma no intuito de convencer a si mesma e à população negra desse esbulho conhecido como “democracia racial”. Por isso o movimento negro caracterizou o dia 13 de maio como dia de reflexão sobre a realidade do racismo no Brasil.

O dia 20 de novembro simboliza a resistência dos africanos contra a escra­vatura. Essa resistência assume diversas expressões táticas e perpassa todo o período colonial. Durante esse período, em todo o território nacional, havia quilombos e outras formas de resistência que, em seu conjunto, desestabi­lizaram a economia mercantil e levaram à abolição da escravatura. Esse é o verdadeiro sentido da luta abolicionista, cujos protagonistas eram os próprios negros.

Impossível descrever toda a admiração que tenho por essa figura exemplar e na qual muitas vezes procuro espelhar-me na busca para proporcionar mais justiça social para as classes menos favorecidas deste País; em especial para os afrodescendentes, aos quais o País tanto deve pelas vicissitudes às quais os submeteu, principalmente durante o Brasil-Colônia e Império, e pelas diferenças ainda hoje observadas na sociedade, que os impedem de integrar-se totalmente e ascender aos postos cujo direito não lhes pode ser negado.

Foram numerosas as proposições que esse grande brasileiro, Abdias Nascimento, apresentou na Câmara dos Deputados e no Senado Federal nos períodos em que atuou nas duas Casas do Congresso. Proposições nas quais busco inspiração e ensinamento, reconhecendo em Abdias o precursor que foi da causa dos afrodescendentes. Talvez o grande destaque deva ser dado ao PL (Projeto de Lei) 1.332 de 1983, de cuja ementa se pode depreender o espírito da norma pretendida: “Dispõe sobre ação compensatória, visando a implementação do princípio da isonomia social do negro, em relação aos demais segmentos étnicos da população brasileira, conforme direito assegurado pelo artigo 153, parágrafo primeiro, da Constituição Federal”.

Infelizmente, essa proposição foi arquivada por resolução da Câmara, juntamente com muitas outras, às vésperas da entrada em vigor da nova Cons­tituição Federal.

Projeto com teor semelhante foi apresentado por Abdias no Senado, como PLS (projeto de Lei do Senado) 75, de 24 de abril de 1997. Cabe destacar, por fim, o PLS 52, de 3 de abril de 1997, que define os crimes de prática de racismo e discriminação.

Há um mundo de ações maravilhosas e repletas de benemerência na bio­grafia desse grande líder brasileiro do século XX. Espero que esta obra sirva para despertar ou reforçar, naqueles que reconhecem a necessidade de aperfeiçoar as ações compensatórias e fazer justiça aos afrodescendentes, a vontade de continuar essa luta pela justiça social e igualdade para todos os seres humanos.

Certamente, há de se considerar que o embrião para a elaboração do Estatuto da Igualdade Racial (Lei n° 12.288, de 20 de julho de 2010), cujo projeto eu tive a honra de apresentar quando era deputado, surgiu das ideias que já tinham sido apresentadas por Abdias Nascimento, maior defensor brasileiro, e um dos maiores defensores, internacionalmente, das causas dos afrodescendentes.

É importante notar que, em pleno século XXI, houve grande dificuldade para se conseguir essa conquista – a transformação em lei do Estatuto da Igual­dade Racial –, pois o projeto percorreu uma trajetória difícil pelos meandros do Congresso Nacional, demorando cerca de dez anos até ser aprovado.

É longo o caminho da aceitação social dos afrodescendentes, mas tenho certeza de que as conquistas até agora conseguidas nos dão esperança de dias melhores, com igualdade de direitos e reconhecimento do valor dessas pessoas em todos os setores do convívio humano.

Que a biografia de Abdias Nascimento inspire muitos e muitos brasileiros que lutam pelos direitos dos menos favorecidos!

Referências

NASCIMENTO, Elisa Larkin. Abdias Nascimento: grandes vultos que honraram o Senado. Brasília-DF: Senado Federal/Coordenação de Edições Técnicas, 2014.

PAIM, Paulo. Apresentação. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin. Abdias Nascimento: grandes vultos que honraram o Senado. Brasília-DF: Senado Federal/Coordenação de Edições Técnicas, 2014.

* Paulo Paim é Senador pelo Rio Grande do Sul pelo Partido dos Trabalhadores.

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