Seis páginas da memória negra feminina: Os cordéis de Jarid Arraes
Alen das Neves Silva*
Bruna Carla dos Santos**
A obra Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, de Jarid Arraes, publicada em 2017, traz à luz as histórias destas representantes negras que a historiografia brasileira corrente colocou no esquecimento. Este ato é bastante recorrente em nosso país, pois quer demonstrar que estar à margem e lutar por seus direitos é vergonhoso. Mas em Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, a autora abarca momentos distintos da história do Brasil em que estas mulheres estiveram ocultadas e destaca como a participação das mesmas nos eventos foi decisiva para alcançar os objetivos.
Na contracapa do livro, Jarid Arraes, nos fala algo muito tocante no que se refere ao nosso passado que se faz presente, que é não conhecermos os feitos destas várias mulheres negras que tiveram um papel histórico. Com isso, surge um dos motivos pelos quais resolve não só pesquisar suas vidas como dar-lhes voz em forma de cordéis, a fim de que cheguem a vários lugares, como a escritora mesmo assevera : “este projeto já está presente até nas bibliotecas de países estrangeiros, mas principalmente nas escolas brasileiras”.
As lutas pelo fim da escravidão, pela educação, e pelo ato de escrever, entre outros, nos séculos de vivência destas mulheres são exemplos que se corporificam nos cordéis de Arraes. A educação é uma marca feita na carne que muito impulsionou estas figuras históricas brasileiras (naturais ou naturalizadas). Em muitos dos cordéis, a educação foi o meio de se libertar e lutar por seus direitos. Assim, no texto dedicado a Antonieta de Barros (e em outros), as palavras de Jarid apontam para um memorialismo biográfico onde a possibilidade de aprender auxiliou na percepção desta mulher como um sujeito capaz de vociferar todas as suas angústias e mazelas. Um momento representativo é quando Arraes escreve: “Antonieta então fundou/ um curso particular/ Onde ensinou por toda sua vida como muito acreditou.” (p. 18). Não se pode afirmar que as vidas destas personagens foram marcadas pelo imobilismo, ao contrário, o dinamismo estava em sua própria essência destas, já que sua condição as obrigava a uma contínua e permanente mobilização.
A escritora Jarid, além de trazer as figuras destas mulheres, faz um trabalho com a memória das heroínas escolhidas, pois desnudá-la nos possibilita rememorar um passado feminino que marcou e marca nossa identidade. Os textos jaridianos nos fornecem um ponto de referência que estrutura nossa memória e a memória de uma coletividade, como enfatiza Michael Pollak, em seu texto “Memória, esquecimento, silêncio”, 1989, em que quando relembramos datas, festividades e personagens históricos, estes se tornam “lugares de memória”, conforme também teoriza Pierre Nora.
A leitura desta obra partindo da noção de “lugares de memória” é uma estratégia estético-conceitual para que temas como resistência, liberdade, escravidão, escrita/escrever, política, memória, religião afro e música venham a se revelar dentro de um ambiente primordialmente hostil, assim permitindo que se os questione e os discuta criticamente ao mesmo que provoca incômodo nos leitores. As violações a que estas mulheres (e tantas outras) foram submetidas apenas poderão ser compreendidas quando se contar e recontar das mais diversas formas, (aqui pensando nas modalidades textuais – poemas, romance, crônicas, contos, filmes, teatro, músicas, performances e etc.) porque será no contínuo que o termo “lugar”, de Pollak, se fará útil.
Ler Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis é tornar estas mulheres “lugares de memória”; mostrar quem foi Luiza Mahin, mulher africana vinda da Costa da Mina, que participou de grandes lutas, como a revolta dos Malês, em 1835 e Sabinada 1837. Luiza Mahin irá nos mostrar que a luta e a resistência contra a escravidão é algo que está no sangue, pois deu a luz ao poeta e um dos grandes abolicionistas brasileiros – Luiz Gama.
Entre outras grandes guerreiras, está Tereza de Benguela, líder durante duas décadas de um grande quilombo no Mato Grosso. Ao final, não podendo mais suportar a luta, o território foi invadido e, sendo capturada, teve a cabeça degolada. Devido a este fato, entra para a história como grande mulher negra, homenageada no dia 25 de julho, em que se comemora dia da mulher negra latina e caribenha.
Continuando o percurso por estas mulheres fortes e de enorme importância para a história brasileira, não se pode deixar de exemplificar as conquistas de Dandara dos Palmares que, ao lado de Zumbi, combateu à escravidão. O líder do Quilombo se impressionou com a tamanha bravura e ambição desta. Esta mulher traduz o que a luta contra a escravidão sempre quis dizer e, Jarid Arraes a documenta assim: “Até mesmo a sua morte/ De heroísmo foi repleta/ E a mensagem que anuncia/ Entendemos bem completa:/ Rejeitar a rendição/ É a nossa condição/ Como um grito de alerta.” (p. 51). Estas linhas de Arraes são as bases das lutas destas mulheres para serem enxergadas enquanto seres humanos e não meras mercadorias desfrutáveis em mundo masculino majoritariamente alvo e opressor.
Mais uma de nossas mulheres que estiveram à frente da luta contra a escravidão e a favor da liberdade e vida, foi Maria Felipa de Oliveira, nordestina de Itaparica-BA. Maria Felipa participou na luta de independência da Bahia, como muitas das mulheres que foram escolhidas para estar neste livro, não se renderam aos desmandos dos senhores e da escravidão.
Jarid aborda também Tia Ciata, mãe de santo e liderança comunitária, que com sua convicção e garra no que acreditava, benzeu várias pessoas, e esta religiosidade lhe deu coragem e força para cuidar de seus 14 filhos. Em Salvador, passou por muitas dificuldades, por não se dobrar a outra religião que não fosse a sua, e partiu para o Rio de Janeiro, cidade onde reconstruiu sua vida exercendo a função de yalorixá1 e tendo o samba como presença forte em sua vida, inclusive com vários discos gravados em sua casa, como o de Donga.
O livro traz mulheres corajosas que não se entregaram à escravidão e à perseguição. Eva Maria do Bonsucesso é uma destas mulheres: trabalhou como quitandeira no Rio de Janeiro, no século XIX, e foi levada a julgamento por ter corrido atrás de uma cabra, pois esta havia lhe “roubado” suas mercadorias. Além de ser lesada pelo que o animal havia pegado, o dono da cabra agride Eva Maria. Sendo levada em julgamento, Eva é absolvida com mais de trinta pessoas testemunhando em seu favor, comprovando sua justiça e firmeza em continuar a batalhar naquilo em que acreditava.
Outra grande mulher foi Maria Firmina dos Reis, nascida em São Luís, no estado do Maranhão, considerada uma das primeiras romancistas brasileiras, vindo a escrever seu grande romance Úrsula, publicado em 1959, considerado nosso primeiro romance abolicionista. Maria Firmina passou por muitos preconceitos – mulher, negra e intelectual em um momento difícil no Brasil – e os enfrentou com grande coragem para hoje ser finalmente reconhecida.
No mesmo limiar de Firmina, Carolina Maria de Jesus, também é uma das grandes homenageadas nos cordéis da escritora, com sua batalha contra o preconceito, a miséria e a exclusão. Carolina Maria de Jesus, desprestigiada por ser negra e favelada, tem sua vida marcada por dificuldades e sofrimentos que veremos em seus diários. Com muita peleja, Carolina conheceu a fama e o reconhecimento (que durou pouco tempo), porém deixou gravada sua história na literatura pela garra e visão realista com que documentou a realidade do “quarto de despejo” da metrópole mais rica do país.
A obra de Jarid Arraes traz à luz ainda as figuras femininas de Aqualtunue, Esperança Garcia, Laudelina de Campos, Mariana Crioula, Na Agontimé e Zacimba Gaba – mulheres que vivenciaram atrocidades e abusos em suas vidas, mas estas situações não foram impedimento para que se empoderassem e inscrevessem seus nomes na memória social negra brasileira. Não importando sua origem, brasileiras ou africanas, estas lutadoras são o insumo de uma liberdade da população negra. Diante do apagamento de sua condição de sujeito, hastearam suas bandeiras e deram suas vidas para que seus anseios se tornassem esperança de realizações até hoje almejadas.
Assim, escritoras como Conceição Evaristo, Jarid Arraes e outras expoentes negras nos mais diversos campos, são a continuidade das vozes e ações destas NEGRAS, sim em caixa alta, para que jamais sejam subjugadas, esquecidas, diminuídas e que sejam muito mais que lugares de memória. A elas não são necessários rótulos devido a seus feitos, mas sim o mostrar-se enquanto mulher, negra e sujeito. As personalidades aqui apresentadas ultrapassam a dimensão das páginas que a autora concede a cada uma, pois integram uma memória negra feminina que converge para a coletividade, apesar das especificidades próprias da individualidade que cada uma carrega na força e na crença que as constituem. Ler os versos de Jarid Arraes é perceber que a forma popular do cordel é capaz de nos transportar para as mais complexas situações históricas, muitas delas ausentes dos manuais escolares.
Belo Horizonte, 29 de setembro de 2017.
Referências
ARRAES, Jarid. Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis. São Paulo: Pólen, 2017.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n.3, p. 3-15, 1989.
1Yalorixá é um termo em iorubá, que tem como tradução para o português a expressão mãe-de-santo: sacerdotisa das religiões de matriz africana no Brasil, sejam estas o Candomblé ou a umbanda.
* Alen das Neves Silva é mestrando em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais e integrante do grupo de pesquisa “Afrodescendências na Literatura Brasileira”, desta mesma instituição.
** Bruna Carla dos Santos é Mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e integrante do grupo de pesquisa “Afrodescendências na Literatura Brasileira”, da UFMG.