O griot de Montes Claros

 Marcos Fabrício Lopes da Silva*

 

A gente tem mais liberdade e poder do que normalmente fazemos uso. A resiliência, cantada e contada, em verso-prosa, por Aciomar de Oliveira, veio para compreender as desrazões que impulsionam o ser humano a julgar e condenar aquilo que é diferente. O egoísmo é irmão do orgulho e um dos maiores obstáculos ao aprimoramento social. Em 1685, John Locke escreveu a Epístola da Tolerância e chegou à conclusão de que o desrespeito à diversidade humana vem por conta da indiferença imposta às coisas que estão fora da “ordem natural”. Muito mais do que a arte do bem-querer, Locke acreditava na capacidade autêntica de repensar valores, posturas e atitudes pessoais como o caminho mais sensato para que possamos alcançar a respeitabilidade individual e social, sem o apelo do temor como força do hábito.

Partindo da iluminação lapidada pelo poeta Pablo Neruda, a poesia de Aciomar de Oliveira, em Resiliência (2016), sabe contemplar as raízes do enviesado enquanto sublime ato de “sentar-se na beira do poço da sombra e pescar luz caída com paciência”. Combinar surrealismo com política, paixão com observação também é a marca registrada dos versos deste mineiro tão encantador em matéria de pessoa-ação-palavra. Refiro-me à tonalidade emblemática do bem-dizer sugerido por Aciomar de Oliveira que coloca seus ouvidos à disposição de todas as vozes do mundo, principalmente daquelas localizadas “onde a claridade está presa” (aqui, mais uma vez trazemos o citado poema Se cada dia cai, tecido por Neruda).

O conceito de “escrevivência”, proposta pela escritora Conceição Evaristo, nos leva, com razão e sensibilidade, a falar do ser humano que pinta a tela do papel com um tipo de amarelo só comparável à entrega dedicada de Van Gogh. Falo de uma literatura escrita de dentro pra fora, porque a escrita de fora pra dentro a gente já consegue logo identificar. Bastar olhar o pedestal livresco ocupado pela autoajuda e pelos best-sellers que policiam a nossa existência com receitas chinfrins de como colecionar dinheiro e descartar pessoas. Refiro-me ao tipo de literatura que fala do fundo da alma. E, por isso, não merece a porta dos fundos da nossa atenção. A experiência de felicidade e de paz experimentadas na leitura desta obra costurada pelo Griot de Montes Claros se coloca, delicadamente, como fundamento-mor em matéria de simplicidade afetiva e efetiva: “Busco versos mínimos que se queiram máximos/e ainda comuns,/pareçam equações de paz”. Tudo isso elevado ao primor que solicita o belo desenhar e redesenhar da vida: “Eu tenho o mar no nome/E o universo no coração.../Ando feito pincel de artista/Colorindo o mundo com paixão”.

A voz poética, em Aciomar de Oliveira, se inspira no empenho colaborativo, objetivando o êxito do sistema internacional de convivência, propósito nobre de entrelaçamento entre os povos que, infelizmente, vem sendo interditado pela ordem do discurso globalizante, assim, descrita pelo sociólogo Zygmunt Bauman, em Cegueira moral: a perda da sensibilidade na modernidade líquida (2014): “uma atitude consumista pode lubrificar as rodas da economia, e ela joga areia nos rolamentos da moral”. O princípio do texto de Aciomar é o verbo. O verbo que se faz carne divertida e alma esplendorosa. A verba, nem de longe, nos assombra, porque o capital, no fundo, não é capital, como é capital um amigo. Percebi que felicidade se expressa muito bem no amor de amizade. O poeta, de carne e osso, do cóccix até o pescoço, é daquele tipo de gente que afirma a singela rosa, mesmo quando o cinza do asfalto quer tudo dominar. Aciomar é daqueles poetas que mostram novas percepções para velhos costumes. Onde a posse se afirma, o respeito é negado. No mal da gaiola nunca cabe o bem do pássaro. Dito isso pelo poeta mineiro, à contrapelo da tradição dominadora-sentimental: “Listava todas as minhas paixões/como a lista de Schindler/No meio do caos a libertação”.

Poeta é quem, com compaixão e sabedoria, ajuda o outro a enxergar melhor a si mesmo. No texto Profissão de fé, o crítico Silviano Santiago elogia a literatura como poética do despiste capaz de colaborar na melhor compreensão das pistas deixadas pelas nervuras do real: “A literatura desloca o interesse único do leitor pelo quarto escuro do mundo real, para introduzi-lo num quarto ao lado, que é uma duplicação poética do quarto escuro. Naquele quarto ao lado, as relações humanas, históricas, sociais e econômicas são iluminadas subjetiva e fragmentariamente por uma luz distinta à do sol. A luz no quarto ao lado é da escrita literária e tem muito mais a ver com a luz que nos foi transmitida pelos antigos livros santos do que com a luz que depreendemos dos novos livros científicos”.

A poesia de Aciomar tira a trave dos nossos olhos, com a diferença de salientar que a visibilidade demasiada significa também o emprego da viseira do menos: “Faça-se a luz/Faça-se o eco/Faça-se a cor/Faça-se visível/Posto que o excesso de Luz/também nos torna invisíveis/Faça-se menos fogo/para que a água o contemple”. Considerando a preocupação do biólogo Humberto Maturana em destacar o amor como o maior fundamento da nossa sociabilidade, pois evidencia a ética do cuidado colaborativo, o modernista brasileiro Oswald de Andrade já sintetizava tal proposta de maneira muito cara: “amor/humor”. Neste sentido, a poesia de Aciomar de Oliveira consegue unir leveza e gaiatice, quando parecia somente reinar na atmosfera do afeto a nostalgia e a saudade. Sugiro a canção Fado tropical (1973), de Chico Buarque, para amplificar a escuta destes versos proclamados pelo Griot de Montes Claros: “Não te quero mais/longe de mim/não sou de pedra/soul de pétalas/em seus ouvidos”.

 

Brasília - DF, 22 de março de 2016.

 

Referência

OLIVEIRA, Aciomar de. Resiliência: diálogos de facebook. Belo Horizonte: Editora Poesias Escolhidas, 2016.

 

* Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor de Literatura Brasileira e Literatura Infanto-Juvenil pela Faculdade JK-Gama, no Distrito Federal. Doutor e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Jornalista formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Graduando em Letras-Português pela Universidade de Brasília (UnB). Poeta com quatro livros publicados: Dezlokado (2010), doelo (2014), Chapa quente (2015) e Aberto pra gente brincar de balanço (2017).