A prosa de Maria Firmina dos Reis no século XXI

Laísa Marra*

Acaba de ser lançada a muito esperada sexta edição do romance Úrsula, da maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917), pela Editora PUC Minas, de Belo Horizonte. A notícia, por si só, tem um importante significado. Primeiro porque se trata de um livro que estava esgotado até mesmo nos sebos virtuais. Depois porque, se tivermos em conta que a quinta edição foi feita em 2009 pelas editoras PUC Minas (MG) e Mulheres (SC) e que, antes disso, a quarta edição foi lançada em 2004, pelas mesmas editoras, podemos perceber que um romance romântico publicado inicialmente em 1859, no Maranhão, vem se consolidando junto a leitores do século XXI. Esse não é um acontecimento banal. Afinal, por que um livro escrito segundo formas românticas e, portanto, visando a leitores românticos – isto é, um público acostumado com essa forma narrativa que, por longo período foi dominante em todo Ocidente, com suas metrópoles e colônias – parece dizer mais aos brasileiros deste milênio do que aos oitocentistas?

Embora não possamos esgotar aqui as várias possibilidades de resposta a essa pergunta, é possível esboçar algumas conjecturas centradas na questão racial tematizada pelo livro. O enredo de Úrsula trata em primeiro plano da história de amor entre Úrsula e Tancredo, este um jovem sensível e afortunado, aquela uma mocinha igualmente sensível, porém bem menos afortunada. O conflito da narrativa tem como centro a figura do tio de Úrsula, o Comendador Fernando P, o qual ambiciona casar-se com a sobrinha independente da vontade dela. Até aí nenhuma novidade. Pelo contrário, para conduzir a história dos seus protagonistas, Maria Firmina dos Reis lança mão de estratégias folhetinescas comuns de sua época, entre elas o incesto; as coincidências; a idealização do amor e seu impedimento por parte de um vilão. Entretanto, costurado ao primeiro plano, há um universo distinto e pouco retratado em toda literatura oitocentista consagrada: a escravização dos africanos.

É justamente nesse ponto que a narrativa de Reis ganha em originalidade e se afasta da bibliografia produzida em sua época. Para construir as personagens negras e escravizadas Túlio, Susana e Antero, Maria Firmina dos Reis praticamente não tem modelos, já que na tradição brasileira do Romantismo, a qual se formava naquele momento, os africanos e afrodescendentes foram objetivamente invisibilizados em nome da criação de uma identidade brasileira que pudesse espelhar as ambições étnico-nacionalistas da elite pertencente ao centro do campo literário¹. É, portanto, admirável que Reis tenha dado corpo e voz a personagens negras e que, além disso, elas sejam representadas como seres humanos: pessoas que têm nome, história e memória. Pessoas que, ademais, discutem entre si o sentido de liberdade – conceito este fundamental para as revoluções do século XVIII, bem como para a estética do Romantismo.

Por esse viés, a contemporaneidade de Maria Firmina dos Reis reside na articulação de sua escrita artística a uma ética humanista antirracista. Como bem observa Eduardo de Assis Duarte (2017b) no posfácio "Úrsula e a desconstrução da razão negra ocidental", o qual acompanha esta sexta edição, Maria Firmina dos Reis é uma pioneira em muitos sentidos. Não só é uma das primeiras autoras a publicar romance no Brasil, como também é uma precursora no que diz respeito à tematização da escravidão, se mantendo até hoje como um ponto fora da curva na representação do negro na prosa brasileira canônica.

Além disso, vale enfatizar que ela é a primeira mulher a escrever um romance abolicionista na língua portuguesa, sendo que seus antecessores homens, e mesmo seus sucessores, o fizeram de forma inferior, precisamente porque não conseguiram, como o fez Reis, alçar suas personagens negras ao grau de indivíduos. Sem incorrer em exageros, o mais próximo que se pode chegar, pelo romance romântico, à experiência subjetiva de uma africana escravizada é na leitura do nono capítulo de Úrsula, no qual Susana conta, em discurso direto, sua vida na África, o cativeiro, e o trauma da diáspora. Assim sendo, temos nesse livro a primeira narrativa, em primeira pessoa, do que significou a travessia do Atlântico dentro do porão de um navio negreiro; bem como o processo de transformação de sujeitos em "mercadoria humana" (REIS, 2017, p. 103).

Verificar a importância de Maria Firmina dos Reis como intelectual de seu e de nosso século é um convite feito pela contextualização histórica incluída nesta edição. Nela, Eduardo de Assis Duarte (2017a) traça uma espécie de linha do tempo na qual elenca datas, eventos, autores africanos ou afrodescendentes, e obras que de alguma maneira foram essenciais para a construção do que entendemos hoje como uma tradição de ativismo e intelectualidade abolicionista. O que salta à vista na leitura dessa contextualização é que, de fato, Maria Firmina dos Reis foi "mulher de seu tempo e de seu país" (DUARTE, 2017a, p. 9), figurando ao lado de personalidades históricas que denunciaram o sistema escravagista – seja da perspectiva de quem foi vítima desse sistema, como a afro-caribenha Mary Prince, o afro-cubano Juan Francisco Manzano ou Mahommah Gardo Baquaqua; seja da perspectiva privilegiada das autoras brancas Nísia Floresta, brasileira; Harriet Beecher Stowe, estadunidense; Juana Manso de Noronha, argentina. Todos estes, autores que escreveram, entre 1831 e 1859, variados gêneros com objetivo abolicionista.

A propósito do termo abolicionista, o qual é pertinente nos dias atuais e inclusive acionado por Angela Davis ao se auto definir como uma feminista abolicionista, vale ressaltar que ele é utilizado pela narradora do conto “A escrava” (publicado em 1887 e também presente nesta edição de 2017) para designar "uma senhora de sentimentos sinceramente abolicionistas" (REIS, 2017, p. 193). Essa personagem aparece-nos como um alter ego de Reis no sentido de que ambas se utilizam da palavra escrita para buscar justiça para os cativos que, por não a dominarem, ficavam ainda mais vulneráveis à exploração e à vontade dos senhores.

O enredo de “A escrava” gira principalmente em torno dos seguintes conflitos: lei versus prática da lei; palavra escrita versus oral; senhores brancos opressores versus negros oprimidos. Assim como Susana (em Úrsula), a personagem Joana, protagonista do conto, narra em discurso direto sua história pessoal, marcada por desigualdades de força ancoradas não só nas leis escravagistas, mas também numa ideologia racial que estruturalmente privilegia os brancos à custa da desintegração da família e da pessoa negra. Desse modo, a fala de Joana – enraizada em sua vivência de dupla opressão, de gênero sexual e raça – pode simbolizar para nós, leitores, a potência da memória na luta travada com a História oficial pelo direito de narrar.

Voltando à provocação feita no início deste texto, Maria Firmina dos Reis talvez possa ser interpretada como uma autora romântica do século XXI, não só porque seu público principal é deste milênio, como também porque estamos em constante revisão de nosso passado histórico e de nossa herança artística. Para qualquer estudante acostumada(o) à presença das obras A escrava Isaura ou As vítimas-algozes nas escolas, é uma surpresa saber que existiu no Brasil da época da escravidão uma mulher afrodescendente que foi escritora, poeta, professora, compositora, folclorista e que, além disso, ousou publicar outra história das pessoas escravizadas. Em tempos de crise democrática e de consequente retrocesso dos direitos das minorias, Maria Firmina dos Reis é ainda hoje uma vanguardista antirracista.

Belo Horizonte, 22 de setembro de 2017.

Referências

BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. Tradução de Marta Kirst. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

DUARTE, Eduardo de Assis. Maria Firmina, mulher do seu tempo e do seu país (cronologia). In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula: romance; “A escrava”: conto. 6 ed. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2017a.

DUARTE, Eduardo de Assis. Úrsula e a desconstrução da razão negra ocidental (Posfácio). In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula: romance; “A escrava”: conto. 6 ed. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2017b.

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. 6 ed. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2017.

 

____________________________________________

1. Isso se deu a tal ponto que um crítico estrangeiro brasilianista, David Brookshaw (1983), se surpreendeu com a abissal desproporção entre a inexistência da figura do negro na literatura (especialmente até 1850) em comparação com sua presença generalizada na sociedade brasileira.

* Laísa Marra é professora, Mestra em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás e Doutora em Letras, Teoria da Literatura e Literatura Comparada, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora do NEIA - Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, e do Portal literafro. Autora do premiado ensaio Fetiche neo-orientalista, publicado em 2016 pela Editora UFG.