Vidas negras, vidas literárias (1978-2020)

Luiz Henrique Oliveira

 

Publicado pela editora Malê, em 2024, e já tendo recebido reconhecimento acadêmico, a obra Vidas negras, vidas literárias (1978-2020), de Vagner Amaro, é uma adaptação da sua tese de doutorado, defendida em 2023, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Amaro foi laureado com o Prêmio Capes de Tese, na área de Linguística e Literatura, em 2024, além de figurar entre os semifinalistas do Prêmio Jabuti Acadêmico, na categoria Letras, Linguística e Estudos Literários, neste mesmo ano.

 

O trabalho de Vagner Amaro traz uma análise rigorosa da trajetória existencial e literária de escritores e escritoras negros brasileiros. O olhar do estudioso percorre desde 1978, ano de fundação da série literária Cadernos Negros e do Movimento Negro Unificado – MNU, até 2020, ano em que eclode o movimento Black Lives Matter, nos Estados Unidos. Segundo o autor, estes dois marcos temporais revelam a inseparabilidade entre a produção literária e as ações políticas de parte do movimento negro, entendidos aqui de modo amplo.


Logo na introdução da obra, Amaro sinaliza rejeitar uma abordagem puramente formalista. E, por isso, apoia-se no conceito de "vida literária", formulado por Brito Broca (2005), entendendo-a como a literatura estudada em termos de sua vida social, um território de disputas e negociações. Tal referencial teórico principal permite ao autor investigar as redes de sociabilidade, a formação de grupos e as idiossincrasias dos escritores, de modo geral. Amaro argumenta que a paisagem literária brasileira, embora se distancie em alguns aspectos daquela retratada por Broca, ainda é um "território contestado", para utilizar de um termo de Regina Dalcastagnè (2012). O trabalho do autor negro em especial, portanto, não se restringiria à obra literária em si, mas se desdobraria na trajetória biossocial deste autor. Para além da dimensão estética, entrariam em cena, para a legitimação do texto, as articulações construídas para além da cena da escrita, isto é, as tramas presentes nos espaços de circulação das obras e, por certo, o papel do impacto do racismo estrutural nesse processo.

Vagner Amaro utiliza conceitos decisivos, como “racismo estrutural” (ALMEIDA, 2019), “necropolítica” (MBEMBE, 2018) e “epistemicídio” (CARNEIRO, 2005) para analisar como a vida de escritores e escritoras negros é atravessada e por essas lógicas. O trabalho demonstra que a vulnerabilidade à morte, uma das consequências da necropolítica, é um tema recorrente na literatura negra do período analisado. Ao analisar, por exemplo, o poema "Certidão de óbito" de Conceição Evaristo, o autor explora como o texto denuncia a condição de vulnerabilidade da população negra e como "a certidão de óbito veio lavrada desde os negreiros".

 

A "miopia racial" da branquitude na formação cultural brasileira é tema do livro. Essa miopia, conforme Amaro, resultou em um descrédito secular da intelectualidade negra, que, apesar de sua existência, não era "lembrada" ou "vista" nos cânones literários. Por isso, o autor discute o epistemicídio, ou seja, a destruição do conhecimento e das formas de pensamento das pessoas de pele negra, como um fator que historicamente desqualificou e invisibilizou a produção intelectual e literária de muitos brasileiros. Logo, a perspectiva teórica de Amaro é fundamental para entender o motivo pelo qual a literatura de negra (como enfatiza o autor) ter existido, em sua maioria, fora da legitimidade conferida pelo campo literário instituído.

 

Num segundo movimento, o livro aprofunda a definição da literatura negra brasileira, abordando a complexidade do conceito (literatura negra, literatura de autoria negra, literatura afro-brasileira, literatura negro-brasileira). O estudo sinaliza que, apesar das distinções, as nomenclaturas convergem para um argumento: a centralidade do negro como autor ou tema.

 

Dois conceitos nesta altura do livro são centrais para as análises empreendidas daí em diante: “escrevivência” e “ancestralidade”. O autor utiliza a “escrevivência”, de Conceição Evaristo, para analisar o discurso literário da autoria negra. A escrevivência, em resumo, não se destinaria a "ninar os da casa grande", mas a "incomodá-los em seus sonos injustos", nas palavras de Evaristo. Arrisco dizer que se trata de um registro de memória social, uma ferramenta para a formação de uma identidade individual e coletiva. Por sua vez, a ancestralidade é um conceito que permite ao autor conectar obras de diferentes períodos, como o romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, à produção contemporânea. A ancestralidade, na visão do autor, é a base de uma cosmovisão africana, em que a tradição é dialética e o tempo é espiralar, não linear. Essa perspectiva permite entender a literatura negra como uma "estética confluente", ou seja, uma rede que se baseia em uma experiência comum afro-negro-descendente.

 

Num terceiro movimento, a obra revela a desigualdade no mercado editorial brasileiro por meio de dados de pesquisas quantitativas, como as coordenadas por Regina Dalcastagnè (2012) e de Luiz Henrique Oliveira e de Fabiane Rodrigues (2022). O trabalho de Amaro ressalta que as publicações de escritores e escritoras negros foram significativamente menores em comparação com as de autores brancos. A pesquisa também traz à tona o papel crucial de espaços de sociabilidade e de editoras independentes na construção da vida literária negra. O autor, que é fundador da editora Malê, como bem o sabemos, analisa o seu próprio catálogo para demonstrar como os livros publicados afirmam que "vidas negras importam" e se contrapõem ao epistemicídio.

Num quarto e final movimento, o livro discute a importância da circulação ampla e do engajamento dos autores e autoras na formação de leitores das várias camadas sociais. Amaro coloca em xeque o "esvaziamento da vida literária" que, segundo alguns pesquisadores mencionados na obra, teria ocorrido a partir da década de 1980. Vagner Amaro procura mostrar ainda que, ao menos para os escritores negros, a vida literária não esvaziou, mas continuou a existir em espaços próprios, muitas vezes distantes do circuito hegemônico.

 

Em suma, a meu ver, é indiscutível a relevância acadêmica e social o livro Vidas negras, vidas literárias (1978-2020), de Vagner Amaro. O estudo não apenas preenche uma lacuna nos estudos literários brasileiros ao dedicar-se de forma aprofundada à vida e à obra de autores e autoras negros, mas principalmente propõe uma metodologia inovadora e engajada. Ao unir o conceito de "vida literária" com as teorias do movimento negro, o autor demonstra de forma categórica que a literatura negra não pode ser lida fora de sua experiência social, marcada pelo racismo e pela luta constante pela vida e pela representação.

 

Não seria exagerado afirmar que o livro também seria um gesto de escrevivência. Em última análise, a obra de Vagner Amaro é uma ferramenta indispensável para o pesquisador interessado na desconstrução do epistemicídio e na reivindicação da vida literária negra em sua plenitude.

 

Belo Horizonte, setembro de 2025.

 

Referências

 

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen livros, 2019.

 

BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1900. Rio de Janeiro: ABL, 2005.

 

CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.

 

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2012.

 

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: N-1 edições, 2018, 80p.

 

OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de; RODRIGUES, Fabiane Cristine. Trajetórias editoriais da literatura de autoria negra brasileira: poesia, conto, romance e não ficção: poesia, conto, romance e não ficção. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2022.

 

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* Professor do CEFET-MG


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