A terra dá, a terra quer – Antônio Bispo dos Santos

 

Érica Luciana de Souza Silva

 

Não fizemos os quilombos sozinhos. Para que

fizéssemos os quilombos, foi preciso trazer os

nossos saberes de África, mas os povos indígenas

daqui nos disseram que o que lá funcionava de um

jeito, aqui funcionava de outro. Nessa confluência

de saberes, formamos os quilombos, inventados pelos

povos afroconfluentes, em conversa com os povos

indígenas. No dia em que os quilombos perderem

o medo das favelas, que as favelas confiarem nos

quilombos e se juntarem às aldeias, todos em

confluência, o asfalto vai derrete!

 

Nêgo Bispo (2023)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Antônio Bispo dos Santos, ou Nêgo Bispo, é natural do Vale do Rio Berlengas, no Piauí. Sua formação inicial se deu pelas mãos de mestras e mestres de ofício do quilombo Saco-Curtume, no município de São João do Piauí. É um intelectual que defende o olhar sobre a ciência a partir das epistemologias brasileiras. Suas obras – Quilombos, modos e significados (2007), Colonização, Quilombos: modos e significados (2015) – compreendem essa ressignificação de mundo da ciência, da sabedoria e do conhecimento. É também um importante líder quilombola com atuações na Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ/PI) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).

 

Nego Bispo propõe sua cosmopercepção, que é constituída a partir de sua formação quilombola e, com ela, defende as comunidades rurais, seus territórios, símbolos e modos de vida. Dessa forma, o pensamento de Nêgo Bispo é construído, apontando conhecimentos e epistemologias que são formulados a partir do conhecimento das comunidades negras rurais ou comunidades afro-pindorâmicas, expressão utilizada pelo pensador para se referir aos povos originários de africanos, indígenas/pindorâmicos. Tal denominação foi cunhada por Nego Bispo em substituição a termos nomeados pelos colonizadores.

 

Em sua obra A terra dá, a terra quer (2023), publicada pela Editora Ubu, Nêgo Bispo traz as marcas sinalizadas nos parágrafos anteriores. Esse livro não comporta textos essencialmente literários. São, sobretudo, escritos que revelam o modo de viver de quilombolas da região do Piauí. Contudo, a obra não forma um compêndio de regras e dicas. É uma escrita poética, que revela a cosmopercepção de Nêgo Bispo, como já apontado:

 

Outro pulsar das memórias de criança é o caminho da roça, que fazíamos junto às gerações mais velhas, a geração mãe a geração avó. [...] Pulsam as memórias do amanhecer em uma casa construída com materiais locais, com uma parte do teto feita de telhas de adobe cru e outra parte feita de palha e madeira. A arte é conversa das almas porque vai do indivíduo para o comunitarismo, pois ela é compartilhada. A cultura é o contrário. Nós não temos cultura, nós temos modos – modos de ver, de sentir, de fazer as coisas, modos de vida. (p. 10, 11 e 23).

 

Esse é um dos pontos principais a serem observados na escrita do autor, pois, ao apresentar o seu modo de ler e interpretar o mundo, ele provoca o leitor que não possui a mesma experiência. São apresentadas verdades, visões e ciências muitas vezes desconhecidas por quem não compartilha a mesma vivência. É um livro construído para os que estão fora do quilombo e que precisam aprender sobre esses povos e conviver com eles em harmonia.

 

Na arquitetura quilombola, a cozinha é o espaço mais amplo. É um espaço de recepção. Quem chega vai para a cozinha. Nos quilombos, apesar de não parecer, quanto mais mulheres estão na cozinha, mais elas têm poder. Quando estão cozinhando, elas não estão sozinhas: quem chega à cozinha ajuda a cozinhar. Elas coordenam aquele espaço. [...] Os homens vão chegando e mostrando suas oficinas, seus trabalhos, sua roça... O grande momento da festa é a comida: é ela que agrega todo mundo. E é quem cozinhou que coordena aquele grande momento. (p. 63).

 

A obra é constituída por seis capítulos cujos títulos são “Semear palavras”, “Cidades e cosmofobia”, “Somos compartilhantes”, “Arquitetura e contracolonialismo”, “Colonialismo de submissão” e “Criar solto, plantar cercado”. Por meio desses breves capítulos, Nêgo Bispo discute assuntos como o colonialismo, suas práticas dominadoras e aniquiladoras; a arquitetura em acordo com o modo de viver de sua comunidade, a oralidade nas comunidades quilombolas, o conceito de transfluência, a convivência e não convivência entre cidade e campo, a que o autor chama de cosmofobia. Ao dissertar sobre tais significações, Santos (2023) expõe o termo contracolonialismo que, de acordo com ele, é o uso do colonialismo contra ele mesmo:

 

Os indígenas viviam no Brasil em um sistema de cosmologia politeísta. Viviam integrados cosmologicamente, não viviam humanisticamente. Chegaram então os portugueses com as suas humanidades, e tentaram aplicá-las às cosmologias dos nossos povos. Não funcionou. Surgiu assim o contracolonialismo. O contracolonialismo é simples: é você querer me colonizar e eu não aceitar que você me colonize, é eu me defender. O contracolonialismo é um modo de vida diferente do colonialismo. [...] Criamos um antídoto: estamos tirando o veneno do colonialismo para transformá-lo em antídoto contra ele próprio. (p. 58 e 59).

Com sua sabedoria, o autor ensina que adestrar e colonizar são atitudes iguais:

Tanto o adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia, distanciando-o de seus sagrados, impondo-lhe novos modos de vida e colocando-lhe outro nome. (p. 12).

 

Assim, como uma espécie de parábola, usando figuras de comparação e metáfora, imagens de seu cotidiano, Santos (2023) explica a intricada, elaborada e cruel ação colonial de desapropriar, dominar e escravizar. Sua escrita simples elucida termos e conceitos abstratos e muitas vezes, distante dos leitores.

 

Nêgo Bispo também destaca os vínculos culturais dos territórios quilombolas, os quais ainda possuem uma circulação bastante restrita e sem muito acesso ao meio acadêmico. Para as epistemologias que nos apresenta, nota-se que, muitos ainda as consideram como folclore ou crendices. Não como ciência! O autor afirma e destaca que são ciências produzidas por um povo e oriundas de seu modo de viver. Nesse sentido, ele contesta o colonialismo, suas influências e procura ressaltar o protagonismo do povo quilombola na história brasileira.

 

Antônio Bispo não imagina um mundo. Ele fala de um mundo: o seu mundo quilombola que dialoga em equivalência com os demais mundos. Tais falas inevitavelmente causam tensões, pois são perspectivas distintas para mundos distintos e que, em 500 anos de Brasil, nunca foram consideradas. O conflito gerado aponta que um Brasil detentor e produtor de ciência, bem como o conhecimento sobre ele, ainda é desconhecido por muitos. O silenciamento e a invisibilização circunscritas a esses povos está na base do racismo estrutural brasileiro. Ouvir, ler, reconhecer e estudar este mundo é uma das formas de luta antirracista no Brasil.

 

É possível notar ainda uma semelhança entre Nêgo Bispo e o martinicano Édouard Glissant, autor que também aborda tais perspectivas: ambos delineiam “um pensamento capaz de colher formas objetivas e subjetivas não consideradas pelo campo epistemológico das matrizes culturais do Ocidente” (KIFFER e PEREIRA, 2021, p. 12). O mundo ocidental, tradicionalmente, ignora e toma como inferior o que lhe é diferente. Nessa perspectiva, conhecimentos quilombolas, práticas das rezadeiras, sabedorias indígenas, culinárias diversas, métodos de construção e engenharia, bem como materiais alternativos, tudo isso é desprezado. Ler Antônio Bispo dos Santos é ouvir esses mundos silenciados falarem.

 

A terra dá, a terra quer é um livro necessário para os dias de polaridade política e cultural em que vivemos. Sua leitura aponta que há vários mundos concomitantes dentro do até então considerado mundo universal: “moeda única, língua única, mentes poucas” (p. 31). Uma proposição de unicidade, de universalização, quando o que se tem são vários mundos distintos em equivalência, não cabe na cosmovisão de Nêgo Bispo: “O mundo é grande e tem lugar para todo mundo. O mundo é redondo exatamente para que as pessoas não se atropelem.” (p. 54). A urgência situa-se na compreensão, na aceitação e na harmonização entre os diversos mundos e modos de viver. Esta é a proposição de Antônio Bispo dos Santos, ou de Nêgo Bispo.

 

Juiz de Fora, novembro de 2023.

 

Referência

 

Enciclopédia Antropológica: Antônio Bispo dos Santos. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/antonio-bispo-dos-santos

Acesso em: 16/11/2023.

 

GLISSANT, Édouard. Poética da relação. Trad. Marcela Vieira, Eduardo Jorge de Oliveira; prefácio Ana Kiffer e Edimilson de Almeida Pereira. 1 ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

 

SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora/PISEAGRAMA, 2023.

 

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* Doutora em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professora no Instituto Federal Fluminense (IFF), em Campos dos Goytacazes.

 

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