Teatralidades-aquilombamento:

várias formas de pensar-ser-estar em cena e no mundo

 

 Cíntia Guedes*

 

O teatro está em fuga e, para estudar rotas e executar planos, Soraya Martins aposta em uma abordagem de corpo presente das variadas expressões da cena negra belorizontina, fazendo de Teatralidades-aquilombamentos: várias formas de pensar-ser-estar em cena e no mundo uma oportunidade para aqueles que estão interessados nos modos pelos quais o quilombo se refaz nas performances artísticas contra-coloniais. 

Recebi com alegria o desafio de prefaciar a obra, e o fiz desde "fora" dos campos de estudos das artes cênicas, da teoria ou da crítica do teatro. Escrevo como professora-performer-pesquisadora, interessada nas artes afrodiaspóricas contemporâneas, em suas extensões e torções. Escrevo tentando apontar chaves de leitura e promover fissuras que sirvam como entradas para o texto, o qual certamente guarda muitas outras brechas às quais não fui capaz de acenar. Ofereço um prefaciar que aprende com a obra a desistir do desejo totalizante, descritivo ou meramente analítico de um trabalho de pesquisa e criação. Permito-me embarcar na leitura atenta ao modo como o livro dá contorno ao interesse das artes negras em presentificar experiências efêmeras de liberdade1.

As experiências estudadas, re-apresentadas no livro enquanto Cenas, não podem ser descritas a partir de uma unidade formal ou de linguagem; seja um evento, um prêmio, uma performance, ou um espetáculo, _ leitor_ encontrará abordagens diretas e afetuosas de acontecimentos que, nos projetos aquilombamentos que emergem no texto, expressam os múltiplos caminhos de fazer-pensar as artes negras.

Na cadência dos capítulos que conduzem a leitura, encontramos a fragmentação enquanto qualidade do olhar daquela que escreve como quem costura sentidos para eventos que diferem por natureza, mas convergem enquanto movimento de transformação radical do modo de perceber e estar em cena.

Ainda nas primeiras páginas, encontramos as evidências de que a autora escreve desde diferentes posições enunciativas, operando modos de conhecer e estar em relação aos experimentos. As posições discursivas de Soraya Martins estão encruzilhadas entre si, trata-se de escrever como curadora-espectadora-performer, promovendo a irrigação de perspectivas que escapam à miopia da lente especialista, e enriquecem as abordagens.

Outra escolha da autora é a recusa de uma escrita de cunho denunciativa. Sem prescrições, o compromisso de Martins desenha-se por um texto que persegue a insistência da vida abundante e multifacetada que emerge desde que a autora conclama, desde o título, como teatralidades-aquilombamentos, acontecimentos que borram a fronteira entre a cena e a vida, e que poderiam facilmente ser denominadas teatralidades-negras, mas que, pertinentemente, não o são. Entretanto, ainda que não esteja resumido a essa função, é preciso notar que o livro habilita _ leitor_ a articular um diagnóstico de como são estruturadas as bilheterias invisíveis2 e os jogos de interesses que regem os teatros que chegam ou não a acontecer.

É possível capturar o lugar de intimidade da autora com sua própria escrita, e isso é um dado, nos informa sobre uma pesquisa comprometida não apenas com a análise, mas também com o trabalho fabulativo que o próprio texto pode realizar. Trata-se de uma escrita incorporada, e não é pouco permitir que se leia em um texto os rastros de um corpo que fala desde um território específico, e que ousa enunciar aquilo que sabe porque sentiu, percebeu e viveu, tudo em primeira pessoa.

A escrevivência, como modo de produzir conhecimento sobre e com as artes negras, tem sido finalmente um lugar possível nas pesquisas em artes. Para além dela, o que chama atenção no presente livro são os muitos corpos de enunciação pelos quais a pesquisadora se faz presente, emergindo em diferentes e estratégicas posições ao longo do texto, assumindo presença e agência, e tornando-se um locus de investigação.

Diante das posições da autora, faz-se pertinente perguntar: Afinal, é possível liberar as teatralidades que emanam desde territórios e corporeidades negras da função socialmente definida pelo imaginário branco de representar a negritude? Ou de outro modo: como apostar no reconhecimento do compromisso ético-estético dessas produções, e mergulhar no movimento criativo, especulativo e incapturável da negrura?

Em Teatralidades-aquilombamentos, o que pode ser definido como teatralidades negras perde o contorno definido, e ganha dimensões de movimento e provisoriedade, assim como os rolezinhos3, anunciam as cenas que ainda estão por vir. O texto nos convida a percorrer caminhos de elaboração da negrura para além da fixação identitária.

Também por isso não se pode esperar de Teatralidades-aquilombamentos um estudo das representações ou uma crítica analítica do modo hegemônico de produção da cena negra no teatro belorizontino, e sim uma ferramenta de produção epistêmica que diz, sobretudo, a respeito de uma movimentação ético-estética que, através do corpo-arquivo da autora, inscreve-se como documento de uma história que escapa à temporalidade linear.

O que pode acontecer quando gaguejamos negra sem a certeza estagnante dos discursos empoderados? É possível criar processos de implicação, identificação e solidariedade com cenas nas quais somos capazes de reconhecer a negrura, mas sabemos que ela não pretende nos representar? Quando seremos capazes de falar em voz alta que toda vontade de representação guarda uma porção de colonialidade?

Teatralidades-aquilombamentos nos coloca diante das cenas do mundo, mobiliza uma vontade de desmantelamento do dispositivo racial que, inaugurado com o empreendimento colonial e em pleno funcionamento, circunscreve a negritude na história moderna a partir da fixação identitária, definindo-a pela/na relação com a violência. Será preciso liberar tudo aquilo que chamamos negr_ de um território simbólico colonizado, deixar que transmute, que habite novas corporeidades e siga por caminhos desconhecidos.

Já na antecena dos escritos, a autora cria um quadro de autorreferências históricas e oferece contorno às teatralidades que interessam à obra. De forma panorâmica, demonstra alguns dos modos pelos quais é promovida a desnutrição das cenas negras ao longo da história recente de dois dos principais festivais de teatro Belo Horizonte, o FIT e o FAN, além de retomar acontecimentos dos últimos 30 anos, como fundação de grupos, cursos e espetáculos, situando _ leitor_ no território em disputa desde o qual a pesquisa emerge.

As cenas que se seguem são como re-de-composições das experiências aquilombamentos abordadas a ato do texto, em todas elas, encontramos a insistência em identificar os modos pelos quais as teatralidades-aquilombamentos negociam suas existências em termos de sensibilidade, como engendram possibilidades estéticas e convocam novas éticas para co-habitação do sistema das artes e seus regimes de representação. Em cada cena, uma caixa de ferramentas para escapar do cativeiro estético, ou seja, dos modos de perceber engendrados pelos regimes brancocentricos da visualidade.

O livro permite estudar as tecnologias pelas quais as teatralidades-aquilombamentos se espalham e tomam os territórios materiais e simbólicos da cidade. Trata-se de conceber outros mundos no que se entrevê, e também no que não se vê das cenas, encontrar nelas experimentos de diversidade e inventividade, forjados não apenas por confrontações diretas, mas também por negociações sutis no âmbito da linguagem (a ironia), transgressões cotidianas (os rolezinhos), fraturas e re-composição das memórias (Outras rosas), re-ocupação do território (segunda preta), dentre outros procedimentos.

A fugitividade aparece como chave de leitura, as rotas do texto oferecem caminhos para perceber as operações simbólicas, ideológicas e semânticas, articuladas em processos contínuos de adaptação, persistência e irrigação imaginativa nas teatralidades estudadas. Não à toa, a cena de abertura do livro trata do quilombo enquanto movimento: Aquilombar. Ecoando Beatriz Nascimento e em conversa com Edouard Glissant, Martins toma a noção de quilombo como possibilidade poética, geradora de imaginários e de outras formas de estar junt_s, em cena e fora delas.

De modo ampliado, o quilombo que Beatriz Nascimento conceitua está relacionado à capacidade da vida negra em escapar de uma certa inscrição no tempo da história linear, e co-criar novos modos de conviver e habitar os territórios. Se quilombos são " brechas e aberturas estreitas no sistema que reagem ao colonialismo cultural e criam espaços para a experimentação de novas éticas em arte" (Martins, p. 20), ou seja, "um tempo-lugar onde os rastros e os vestígios que indicam os movimentos e as mediações próprias da diáspora, um sistema de trocas políticas e culturais que oblitera os regimes de representação e os regimes de representatividade" (ibid, p.27), fica evidente que estar em aquilombamento é estar em movimento, sendo essa a condição de existência não apenas das teatralidades-aquilombamentos, mas da própria vida negra, que como nos conta Leda Maria Martins - cuja obra-vida é também fundamento desses escritos -, está sempre em processos de transcriação.

As elaborações de Leda Maria Martins, afinal, aparecem como dispositivo conceitual e metodológico do presente livro. O corpo negro não é uma substância, é uma teia de relações4, e essas relações estão no texto e na vivência que possibilitou a escrita do mesmo. Soraya Martins faz de sua própria memória dispositivo para re-conhecer as cenas, e lança mão de múltiplas referências para sustentar o que precisa ser lido e vivido.

Assim, o quilombo re-acontece no livro, enquanto refeitura de um conjunto de práticas cénicas adaptativas, pelas quais _s artistas negr_s viv_s ensaiam possibilidades de coexistência e forjam relações de liberdade. Na articulação das cenas podemos perceber a formação de teias, muitas rotas, passagens partilhadas, atores que se repetem e sustentam os acontecimentos, sendo o livro também um documento que registra a movida de cooperação de uma geração de criador_s negros que sabem desde onde vem e que são capazes de abrir múltiplos porvires.

Ao apostar na fabulação de um território-tempo comum, colocando acontecimentos descontínuos formalmente em relação íntima com uma certa ética do aquilombar, a autora convoca um teatro que vem, e o faz de forma a evidenciar que ele nunca parou de chegar. Teatralidades-aquilombamentos é uma experimentação de escrita que coopera para que possamos, enfim, decolar do terreno da crítica e aterrizar onde a cena transforma a vida que, por sua vez, transforma a cena. O livro promove um mergulho no locus movediço da negrura, terra preta e fértil na qual, em infinito voleio, as teatralidades negras belorizontinas seguem como um contínuo ao longo da história que é outra, e é múltipla. 

 

Notas

1. Castiel Vitorino Brasileiro, em Exú Tranca Rua das Almas (2020, s/p), disponível em: https://ehcho.org/conteudo/exutrancaruadasalmas

 2. Bilheterias invisíveis é um termo usado por José Eduardo em falas e entrevistas. O curador e idealizador do Acervo da Laje endereça assim os modos pelos quais as artes negras e periféricas, mesmo quando incluídas no sistema das artes hegemônicas, seguem encontrando processos de exclusão, seja no tratamento dado aos artistas e obras, seja no tratamento dado ao público que as artes negras e ditas periféricas mobilizam.

3. Ver cena 2.

4. MARTINS, 1995, p. 66, APUD MARTINS, 2022, P. 121.

Referência

MARTINS, Soraya. Teatralidades-aquilombamento: várias formas de pensar-ser-estar em cena e no mundo. Belo Horizonte: Editora Javali, 2023.

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* Cíntia Guedes é Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Professora da Universidade Federal da Bahia - UFBA, na área de concentração em Perspectivas Afrodiaspóricas nas Artes.