Sobrevivendo ao Racismo

(Prefácio)

Itamar Vieira Junior*

 

 

Durante muito tempo vivemos sob a farsa de que o Brasil era uma democracia racial. Um país mestiço, erguido a partir da mistura de três raças. “Aqui”, tentavam nos convencer, “a escravidão não foi tão cruel como nos Estados Unidos”. Nem mesmo vivemos o apartheid como na África do Sul ou fomos segregados como as pessoas negras do sul do país americano. A cultura africana era celebrada na mesa, na dança e mesmo no futebol. Um poderoso executivo de uma rede de televisão publicou um livro onde refutava que o país fosse racista. Ao mesmo tempo, as ideias de degenerescência e de determinismo racial de Nina Rodrigues volta e meia surgiam discretamente nas conversas cotidianas com ares de tese científica.

A educadora Luana Tolentino, autora deste Sobrevivendo ao racismo, narra sua experiência como mulher negra brasileira. Primeiro como criança periférica, lugar ocupado ostensivamente por pessoas pretas e pardas. Depois como professora e intelectual, dando seu testemunho pessoal de como o racismo pode ser uma máquina de destruir humanos, e com eles suas dignidades e sonhos. A partir de suas crônicas de grande fluidez e que falam diretamente a quem lê, a autora nos oferta um relato sensível das histórias de pessoas negras e de como suas vidas são atravessadas todos os dias por um passado que não foi devidamente enfrentado. 

Luana Tolentino se põe na centralidade de sua narrativa, com relatos do preconceito sofrido no ambiente escolar durante sua infância, passando pela maturidade e pelos casos de racismo e violência que se tornaram conhecidos da sociedade nos últimos anos. Algumas crônicas são epistolares e se destinam a interlocutores que conheceremos ao longo da leitura. Outras são narrativas contundentes de casos de grande apelo público como o caso de Mirtes Renata e seu filho Miguel ou Marielle Franco. Contudo, o que sobressai nos seus textos é a certeza de que nas relações raciais de uma sociedade diversa, só é possível superar o racismo compreendendo toda a teia de ambiguidades e paradoxos que existe nas relações entre pessoas negras e seu entorno.

No mundo contemporâneo, pessoas negras continuam a habitar os “porões dos tumbeiros” que trouxeram seus ancestrais para o continente americano. Ali se inaugurou um novo momento da história da humanidade, maximizado pelo empreendimento capitalista colonial: pessoas negras tiveram suas existências reduzidas a mero bem-econômico com o objetivo de ter sua força de trabalho explorada em prol do enriquecimento dos impérios e de alguns poucos homens. Foram três séculos e meio de desumanização que ainda requer tempo e educação para ser desconstruída. 

Saidiya Hartman escreveu que ainda vivemos a sobrevida da escravidão, tempo em que um ranking de vida e valor foi inaugurado propagando que vidas negras importam menos e promovendo injustiças que continuam a nos atravessar nos nossos dias. Quando observamos os índices de desenvolvimento humano, o perfil racial dos encarcerados, dos que têm os menores salários, dos que continuam a sofrer com a falta de oportunidades, ou mesmo a serem escravizados, percebemos que há uma longa tarefa pela frente. Esse embate deve ser assumido por todos, por pessoas negras e brancas, com o objetivo de que uma vida sem discriminação seja possível entre nós, porque só haverá democracia de fato quando o racismo for derrotado.

Durante a leitura deste livro recordei de James Baldwin e seu Notas de um filho nativo. Através de seus ensaios, o autor nos faz refletir que pessoas negras continuam a viver o exílio de seus ancestrais escravizados à espera de serem integradas à sociedade como cidadãos plenos de direitos, ou seja, que não serão distinguidos pela cor de sua pele. Diante de tanta violência e discriminação, causava espanto a Baldwin que as pessoas negras ainda resistissem: “o que causa espanto não é que tantos afundem na desgraça, mas que tantos consigam sobreviver.” Luana Tolentino tem sobrevivido e estende suas mãos aos leitores com seu importante relato.

Mas reconhece que a pacificação não será fácil porque “o mundo branco é poderoso demais, autocomplacente demais, excessivamente dado a perpetrar humilhações e, acima de tudo, ignorante e inocente demais para que isso seja possível.” Consciente de que o ódio só consegue destruir quem odeia, Baldwin, que recusava a aceitação de qualquer injustiça, indica o caminho do combate: “Essa luta começa, porém, no coração, e agora era responsabilidade minha manter meu coração livre do ódio e do desespero”. Não ser escravo do ódio deve também ser o desejo de liberdade de todos nós. 

 

Referência

TOLENTINO, Luana. Sobrevivendo ao racismo. Campinas-SP: Papirus 7 Mares, 2023.

 

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* Itamar Vieira Junior é geógrafo e doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela UFBA. Seu romance Torto Arado, vencedor dos prêmios Leya, Oceanos e Jabuti é um dos maiores sucessos da literatura brasileira das últimas décadas, tendo sido traduzido em mais de vinte países, com futura adaptação para o audiovisual. É também autor de Dias (2012), A oração do carrasco (2017), Doramar e a Odisseia (2021) e Salvar o Fogo (2023).

 

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