Carolina Maria de Jesus e sua morada poética

 

Maria Carolina de Godoy*

 

 

O interesse pela obra de Carolina Maria de Jesus ocorre, na maioria das vezes, em virtude da divulgação de Quarto de Despejo: diário de uma favelada (1960). Tornou-se a entrada para sua produção, que a crítica tem mostrado ser ampla e repleta de portas a serem abertas, como tão bem evidencia o livro de Amanda Crispim.

A poesia de Carolina Maria de Jesus: um estudo de seu projeto estético, de suas temáticas e de sua natureza quilombola convida leitores e leitoras a adentrarem a obra poética de Carolina, ou da poetisa, como é chamada ao longo do livro, por meio de uma escrita fluida, envolvente, sem perder a profundidade analítica e o diálogo contínuo com a teoria e a crítica. Elucida, ao lado de outras vozes, o projeto literário da autora, construído no cerne da narrativa oral, na breve alfabetização escolar e no desejo de trazer à luz, pela palavra literária, o mundo pulsante que carregava em seu corpo de mulher negra.

Vida e obra entrelaçadas dão o tom do primeiro capítulo sobre a formação da escritora, e o enfoque centra-se nos modos de letramento com os quais Carolina teve contato, presentes na forma e no conteúdo de seus poemas. Memória marcante de sua infância, o avô Benedito foi responsável por instigar a menina Bitita a pensar sobre moral, ética e religiosidade cristã, como revelam os poemas “O ébrio”, ao tratar do alcoolismo sob a forma de versos curtos similares a provérbios, e “Ingenuidade”, exaltação às virtudes cristãs, conforme demonstram as análises de Amanda Crispim.

Na caminhada do letramento, a imersão nas congadas, nas palavras de Rui Barbosa, na leitura dos clássicos e na cultura emanada de seu entorno levou a autora a fazer das artes – literatura e música – a força motriz para sobreviver à fome e cantar, como um aedo contemporâneo, o amor, a maternidade, a religião, a política, a condição negra no Brasil em “atitude quilombola”, nas palavras da estudiosa Crispim. O método de comparação entre as diferentes versões dos poemas (manuscritas e datiloscritas), que deram origem às publicações Antologia pessoal (1996) e Clíris: poemas recolhidos (2019), é utilizado pela estudiosa com o intuito de afastar as interferências editoriais e revela a preocupação linguística marcada nos poemas. Esses traços são apontados na análise, por exemplo, das versões de “Saudade de mãe”, a partir de usos da acentuação gráfica clássica portuguesa, que contribui para descortinar o processo criativo de Carolina, pautado na reescrita e na busca pela melhor expressão poética.

Gerações de autoras e autores negros são postos ao lado de Carolina, nos capítulos subsequentes, e o resultado de cuidadosas reflexões mostra de que modo a autora foi recebida em sua época de produção e as reverberações de seus escritos em autoras contemporâneas.

A retomada de Luiz Gama, Lino Guedes, Solano Trindade, entre outros, em constante diálogo com teoria e crítica, contribui para leitores e leitoras conhecerem a trajetória e a convergência das produções de autores negros, além de promover o reconhecimento de nomes tantas vezes esquecidos pela historiografia literária tradicional, apesar de existir fortuna crítica significativa em torno de suas obras. Contudo, de acordo com Crispim (p. 161), não é nesse grupo inicial que a poetisa Carolina encontra seu espaço, uma vez que não foi plenamente compreendida em suas vertentes poéticas: “[...] não conseguiam compreender o projeto multifacetado da autora, que não se restringia à questão racial, mas incluía a observância de diversas questões político-sociais e, também, existenciais.”

A análise do poema “Os feijões” corrobora a ideia da atualidade da produção de Carolina, que, em seu tempo, vislumbrou as linhas tênues que ligam gênero, raça, classe social e oferecem um panorama mais amplo para os debates em torno de política e sociedade, principalmente, no que se refere a mulheres e homens negros. A poesia de Carolina aponta essas inter-relações e, ainda assim, não foi reconhecida.

Vozes mulheres”, de Conceição Evaristo, é o ponto de partida para traçar a linhagem de escritoras negras, no capítulo 3. Ao longo do percurso analítico do livro, aproximam-se autoras, críticas e teóricas: Maria Firmina dos Reis, Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Gizêlda Melo do Nascimento, Sueli Carneiro, bell hooks, Lélia Gonzalez, Grada Kilomba, Spivak, Fernanda Miranda, Raffaella Fernandez, entre outras.

Nesse momento, intensificam-se os diálogos entre as autoras negras, que formam um grande círculo de acolhimento ao redor de Carolina Maria de Jesus, recuperando-se uma imagem cara às tradições africanas. Destacam-se os poemas “Meus filhos”, “Maria Rosa”, “Noivas de maio” e “Desilusão”, que colocam em primeiro plano o sofrimento amoroso, a maternidade, a crítica à instituição do casamento e a solidão. Sua poesia encontra abrigo no corpo das mulheres negras. Escrevivências.

Quadros” é o poema de abertura do último capítulo, que mostra as variadas temáticas sobre as quais Carolina se debruça em exercício frequente de anotações para seus futuros poemas, como aponta Crispim. A estudiosa desconstrói a ideia de Carolina ter sido revelada por Audálio Dantas e descreve suas estratégias para ser publicada, ressaltando, mais uma vez, clara consciência do movimento poético, isto é, da relação entre autor, obra e público sobre a qual fala o crítico Antonio Candido. A divisão sugerida para a produção poética da autora, nessa última parte, centra-se em recortes temporais: antes do auge de Quarto de despejo; durante o período de evidência nos meios literários da época; e posterior ao sucesso.

O olhar cuidadoso e a sensibilidade de Amanda Crispim conduzem leitores e leitoras na jornada pelas moradas de Carolina, abrindo portas e janelas do quarto de despejo, da casa de alvenaria, do sítio, e iluminando cantos de sua poesia, antes desconhecidos. Fragmentos das obras em prosa dialogam com os poemas e delineiam um percurso de leitura para a produção literária carolineana.

Assim, a natureza, o bucolismo, a crítica social e a liberdade são temas exaltados em versos ritmados de “Trinado”, “As aves” e “O colono e o fazendeiro”. O amor platônico, a mulher idealizada e o nacionalismo surgem em “Segredo oculto”, “Meu Brasil” e “Minha Pátria”, exemplos de retomada da tradição clássica em sua obra. Fome, guerra, desigualdades sociais, reforma agrária, a imagem de Jesus libertador e a homenagem a pessoas notórias por suas lutas estão presentes em “O pobre e o rico”, “As terras”, “Quando Cristo regressar”, “João Brasileiro”, “O operário” e “Vidas”. Ao refinamento desse estudo, preocupado em apontar as tensões na poética de Carolina, não passam despercebidas as versões consideradas “amenas” ou aquelas indicadas por “não inclui”, frutos da autocensura.

Os poemas “Quarto de despejo” e “Agruras de poeta” assinalam a consciência poética da autora, tantas vezes ressaltada em sua obra, que, segundo Crispim, aproxima-os de um manifesto. Marcam a volta para o campo e o desencanto: “Reminiscências”, “A velhice e a mocidade”, “O infeliz”, “A carta”, entre outros poemas que anunciam o fim da jornada pelas moradas da autora e a certeza de que o livro de Amanda Crispim – mulher, negra, professora e crítica literária – coloca-a entre as principais referências de estudos sobre a obra de Carolina Maria de Jesus. Fica a certeza de que há resposta para o verso de “Atualidades” – “Vivo ao léu sem ter morada”: Carolina, a literatura foi sua morada.

Referência

FERREIRA, Amanda Crispim. A poesia de Carolina Maria de Jesus: um estudo de seu projeto estético, de suas temáticas e de sua natureza quilombola. Rio de Janeiro: Malê, 2022.

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*Maria Carolina de Godoy é Professora Associada do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina, pesquisadora associada do PACC – Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ e líder do grupo de pesquisa “Literatura afro-brasileira e sua divulgação em rede”, do CNPq.

 

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