Entre a auto edição e o quilombo editorial

 

Eduardo de Assis Duarte*

 

 

 

Mesquinho e humilde

livro é este

que vos apresento, leitor.

Sei qude passará entre

o indiferentismo glacial de uns

e o riso mofador de outros,

e ainda assim

o dou a lume.

 

Maria Firmina dos Reis

1859

 

 

As palavras em epígrafe, oriundas da primeira romancista negra da língua portuguesa, remetem a tempos e mentalidades marcadas pelo preconceito em que se fundamentou a opressão de gênero também no campo da literatura. Situação esta agravada pela desumanização decorrente de séculos vividos sob o taco da chibata senhorial e de seus muitos pelourinhos, físicos e psíquicos. Da combinação entre patriarcado e escravatura construiu-se um país onde vozes/escrituras femininas e, sobretudo, negras tinham que enfrentar a indiferença e o escárnio para grafar no papel suas angústias e esperanças, seus versos e estórias tão próximas de nosso retrato em preto e branco. E pagar caro pela ousadia que irá destinar seus nomes e escritos ao poço fundo do esquecimento. Nem por isto se calaram, persistiram. E publicaram, em patente desafio ao arquivo literário oficial, só nas últimas décadas do século XX posto em questão por olhos e ouvidos atentos aos escritos negros de agora, mas também aos de um passado que para muitos ainda não passou.

Assinado por Luiz Henrique Oliveira e Fabiane Cristine Rodrigues, o presente volume, empenhado em situar, analisar e demarcar estatisticamente a trajetória editorial da produção literária negra em nosso país, chega na hora certa. Nestas primeiras décadas do século XXI, assistimos a um vertiginoso crescimento desta vertente de nossas letras, não só em termos de publicações e editoras voltadas para a questão, mas, em especial, do grande contingente de jovens leitoras e leitores empenhados não apenas em fruir tais textos, mas também em se tornar sujeitos de uma criação poética, prosaica ou ensaística. Dos microfones do slam ao texto digital e, mesmo impresso; das graduações, mestrados e doutorados aos artigos, monografias, dissertações e teses; e das experiências em coletâneas como Cadernos Negros e tantas outras ao livro autoral, não são poucas as vozes e falas voltadas para a inscrição literária de suas vivências, reflexões, angústias, sentimentos, fantasias.

No momento em que escritos de Carlos de Assumpção, Conceição Evaristo, Cuti, Carolina Maria de Jesus, Oswaldo de Camargo, Geni Guimarães, Miriam Alves, Jeferson Tenório, Eliana Alves Cruz, Itamar Vieira Junior e muitos mais se impõem como referência literária para o grande público brasileiro e estrangeiro, e não apenas para a juventude negra, o trabalho de Rodrigues e Oliveira corrobora e confere autenticidade histórica ao mantra nossos passos vêm de longe, sempre lembrado por Sueli Carneiro entre outras vozes, como as acima citadas.

O mapeamento parte de duas figuras de grande estatura intelectual e política, ambas vítimas de memoricídio – Maria Firmina dos Reis e Luiz Gama –, e toma como ponto de partida 1859, ano em que ambos fazem sua estreia em publicações individuais, a primeira na ficção, o segundo na poesia. A partir desse marco significativo, corporificado na relevância de uma narrativa como Úrsula – além de abolicionista, primeiro romance publicado por uma mulher negra em toda a lusofonia – e dos poemas reunidos em Primeiras trovas burlescas de Getulino pioneiro em todos os sentidos da melhor poesia afro-brasileira –, o presente estudo faz um amplo levantamento da atividade editorial voltada para escritos de autoria afrodescendente, englobando poesia, conto, romance e não-ficção.

E volta ao passado de lupa na mão, a computar autores, autoras, publicações, gêneros e casas editoriais, muitas delas ainda desconhecidas, verdadeiros quilombos editoriais na feliz designação crítica presente na parte final do livro. Mas vai além: à exatidão das estatísticas agrega informações de relevo a propósito do ambiente político e cultural dos períodos em que se divide a cartografia elaborada com esmero, a computar também a geografia da produção literária do período, com destaque para cidades, estados e regiões.

E, mais de uma vez, faz emergir a verdade obviamente crua, ligada à hegemonia do eixo Rio/São Paulo, com os indicadores de produção e consumo praticamente definindo quais autores e obras irão figurar no grande arquivo da literatura nacional. E dos números e estatísticas cuidadosamente elaboradas, vê-se como o fator econômico chega a assumir os rumos das leituras de milhões de pessoas e figurar como poderoso arconte, a definir o que irá para as estantes da “alta literatura”... e os que restarão esquecidos no regaço nem sempre atento das literaturas regionais e/ou das chamadas “minorias”.

E isto não é de hoje, mas desde sempre.

De acordo com a afirmação da pesquisadora Regina Dalcastagnè, da UnB, na orelha do livro, “Oliveira e Rodrigues não apenas historiam e cartografam a publicação de obras de autoria negro/afro-brasileira, abrangendo prosa, poesia e não-ficção. Também interrogam o impacto no campo literário e no mercado editorial em uma pesquisa séria e comprometida com a democratização desses espaços. Este livro é, assim, uma contribuição necessária ao debate sobre a literatura e relações raciais no Brasil.”

Chega, pois, em boa hora a pesquisa que desnuda em números os mecanismos operacionais da indústria do livro no Brasil. E que irá, certamente, contribuir para não apenas melhor compreendermos o fenômeno envolvendo quem pode e quem não pode publicar seus escritos, bem como chamar nossa atenção de leitores para os processos e procedimentos de superação desses obstáculos históricos.

Belo Horizonte, novembro de 2022

Referência

OLIVEIRA, Luiz Henrique; RODRIGUES, Fabiane Cristiane. Trajetórias editoriais da literatura de autoria negra brasileira. Rio de Janeiro: Malê, 2022.

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 * Eduardo de Assis Duarte é autor de Jorge Amado, romance em tempo de utopia (1996) e de Literatura, política, identidades (2005). Organizador, entre outros, de Machado de Assis afrodescendente (3. ed. rev. ampl. 2020); Literatura e Afrodescendência no Brasil antologia crítica (2. Reimpr. 2021); Literatura afro-brasileira 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., 2019); e Literatura afro-brasileira abordagens na sala de aula (2. ed., 2019). Coordena o literafro Portal da Literatura Afro-brasileira , disponível no endereço: www.letras.ufmg.br/literafro.

 

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