Beatriz Nascimento: Uma história feita por mãos negras

 

 

Lorena Cristina de Oliveira Barbosa*

 

 

 George Orwell, em sua obra 1984, afirma: a história é contada pelos vencedores. A partir dessa afirmação, podemos pensar em como a História do Brasil foi, por muitos anos, contada a partir da perspectiva dos que, aos olhos de uma sociedade neocolonial, saíram como os grandes vencedores. Por isso, romper com a narrativa hegemônica e reforçar a perspectiva de intelectuais negros e negras sobre questões filosóficas, historiográficas, sociais e de outras áreas do conhecimento é uma pauta urgente. 

Dessa forma, é imprescindível que conheçamos o extenso trabalho da professora, historiadora e poeta sergipana Beatriz Nascimento. Influente nos estudos das relações raciais brasileiras, Beatriz ganhou notoriedade em organizações acadêmicas do movimento negro, com produções relevantes acerca do conceito de quilombo na História, raça, racismo e sexismo.  Além disso, ela também impulsionou a produção cinematográfica “Ôrí”, um documentário brasileiro, produzido em 1989 por Raquel Gerber que, através da pesquisa e narração da historiadora, acompanha entre 1977 e 1988 as atividades do movimento negro nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Alagoas, conectando as pautas políticas e culturais com as tradições de países como Senegal, Mali e Costa do Marfim, localizados na África Ocidental.

Pensadora insurgente, Beatriz dedicou a sua vida a resgatar a história do negro no Brasil. Uma história negra, feita por pessoas negras, com o intuito de romper com quatro séculos de invisibilização numa sociedade da qual elas participaram em todos os níveis. Com a organização de Alex Ratts, professor, geógrafo e antropólogo brasileiro, 24 textos de Beatriz que discorrem sobre questões como escravismo, quilombo, intelectualidade, relações de raça e gênero, movimento negro e cultura, compõem a obra Uma história feita por mãos negras, lançada pela editora Zahar. 

O volume reúne textos expressivos da intelectual, e faz-se essencial para não apenas aqueles que admiram o seu trabalho, mas também para os que ainda não a conhecem. Para quem se preocupa em pensar um Brasil de ontem, hoje e amanhã, a leitura traz artigos importantes, que contestam, por exemplo, o mito da democracia racial, reforçado por sociólogos emblemáticos como Gilberto Freyre, e a situação da mulher negra no mercado de trabalho que, desde a época escravocrata, “é uma fornecedora de mão de obra em potencial, concorrendo com o tráfico negreiro” (p.56). 

O livro se divide em quatro partes, de acordo com os eixos temáticos do trabalho de Beatriz Nascimento. Embora alguns temas recebam mais atenção do que outros, questões essenciais do seu trabalho, como a revisitação e a crítica a algumas produções negacionistas e equivocadas são importantes para nos lembrar de que, assim como hoje, essas questões já eram problemátizadas desde a década de 1970. 

Não deixaremos de mencionar, claro, um dos textos mais importantes da sua carreira acadêmica, “Por uma história do homem negro”, no qual Beatriz reivindica a importância do estudo da história da raça negra, dentro de uma história do Brasil que ainda precisa ser feita. Em seus escritos, indaga: “Quem somos nós, pretos, humanamente?” (p. 39).

Outro destaque da coletânea é a rica produção de Beatriz acerca dos quilombos e suas figuras históricas. Em seus estudos, preocupa-se em tratar os quilombos com a sua devida seriedade, mostrando-nos a sua importância social, suas subjetividades, seus líderes históricos e a sua relação com a estrutura da sociedade contemporânea. 

Podemos constatar que a obra de Beatriz Nascimento para a construção de uma nova perspectiva da história do Brasil é de extrema importância, seja para entender o país como um todo, a partir do passado, seja para uma nova visão do que queremos para o futuro. Olhar para o nosso país hoje, cuja fome revisita milhares de famílias, sobretudo as negras, em que o negacionismo e o obscurantismo tomam força novamente, e ler Beatriz, que contribuiu tanto para o que nos assola, é uma espécie de afago. Por isso, não podemos nunca dizer que a sua obra se tornou obsoleta, embora seus textos mais recentes datem de 1994. 

Para tanto, Uma história feita por mãos negras nos relembra quem somos, o que queremos, e aquilo que ainda podemos ser enquanto um país que se preocupa com as questões sociais, raciais e históricas de um passado que não passou. E que a sua memória, assim como a sua produção acadêmica e intelectual, continuem vivas dentro de nós.

Belo Horizonte, setembro de 2022

 

Referências

ORWELL, George. 1984. São Paulo: IBEP, 2003.

RATTS, Alex (Org.). Beatriz Nascimento: Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

 

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* Lorena Cristina de Oliveira Barbosa é professora de Língua Portuguesa e Literatura, graduada em Letras pela UFMG, pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA, desta Instituição. Como ficcionista, participa do volume 42 dos Cadernos Negros (2019, contos).

 

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