Apresentação

Maria Nazareth Soares Fonseca*

 

 

 

Os textos que compõem o livro Olhares sobre a literatura afro-brasileira, de Florentina Sousa, apresentam diferentes percepções de questões específicas da literatura produzida por escritores e escritoras que assumem pontos de vista identificados com a afrodescendência. O título dado ao livro deixa evidente que a autora quer lançar, sobre o material cultural e literário que investiga, olhares capazes de apreender os traçados da escrita literária e da abordagem critica produzida por afrodescendentes.

Com esse propósito, o livro ressalta a obra literária dos escritores Luiz Gama, Maria Firmina dos Reis, Cruz e Souza e Machado de Assis, com o intuito de demonstrar porque esses escritores podem ser considerados precursores de uma vertente literária que, no Brasil, irá se firmar somente a partir de meados do século XX. Aspectos da obra desses escritores precursores deixam evidente que a questão da escravização de africanos e as demandas da população brasileira descendente dos escravizados aparecem na cena literária brasileira, de forma bastante questionadora, desde o século XIX. Os debates em torno da violência imposta pela escravidão e as questões dela decorrentes estão presentes na obra desses escritores precursores, ainda que nem sempre apontadas pela crítica mais antiga.

Por outro lado, vários artigos do livro insistem em demonstrar que as questões postas pelos escritores-precursores integram a participação ativa de intelectuais negros que ficaram ocultados na cena pública brasileira em virtude de critérios ideológicos que fizeram com que muitos escritores e intelectuais afrodescendentes tenham sido pouco referidos ao longo da discussão dos projetos de nação, no Brasil.

Como a autora do livro afirma, no texto “Vozes negras na literatura afro-brasileira e insurgência”, somente após a década de 1970, século XX, com o gradual enfraquecimento da Ditadura Militar, instalada no Brasil em 1964, começam a surgir vozes que aclamam a produção artística, critica e literária de artistas, intelectuais e escritores que celebraram o imaginário do negro brasileiro. Essa discussão se mostra em vários artigos do livro e intenta resgatar a memória de escritores e intelectuais que, desde o século XIX enriquecem o cenário artístico e literário com temas e discussões voltados aos escravizados africanos e às heranças deixadas por eles, nos espaços do Novo Mundo. Nessa direção, alguns artigos do livro acolhem o legado deixado por intelectuais como Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Clóvis Moura e outros engajados na luta pela visibilidade dos negros e negras na cultura brasileira e na discussão de questões fundamentais da população afro-brasileira. Esse importante legado, como esclarecem alguns artigos do livro, motiva a criação dos Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (os NEABs), alguns atuantes desde a década de 1990, sendo que a maioria deles surge no início do século XXI. Os Núcleos de Estudos Afro-brasileiros são, sem dúvida, responsáveis pela difusão de reflexões inovadoras sobre a cultura e a literatura afro-brasileira, porque rastreiam, inclusive, a memória deixada por escravizados, em diferentes idiomas, por ex-escravizados e afrodescendentes.

No campo específico da produção literária, alguns artigos aprofundam discussões sobre a literatura produzida por escritores e escritoras afrodescendentes, com o intuito de pontuar questões específicas desse modo de produzir literatura. O artigo “Beatriz do Nascimento – uma leitura sobre poesia e identidades” percorre a intensa participação da historiadora, intelectual e poetisa, em momentos diversos, e amplia a discussão sobre o fato de a literatura brasileira, na maioria das vezes, encenar negros e negras sempre como objeto, assumindo o pensamento racialista que passa a vigorar no século XX e que considera os originários da África, sobretudo os da África subsaariana destituídos de subjetividade e humanidade. Essa visão, ao ser legitimada por textos da literatura brasileira, irá contribuir para que se considerem negros e negras incapazes de reflexão e de produção de obras literárias de fôlego. Na contramão dessa visão, o artigo em questão nos apresenta Beatriz Nascimento também como poetisa, expondo seus poemas em que estão encenados seus desejos e anseios reforçados por sua experiência concreta em questões específicas da população negra no Brasil.

No texto “Cruz e Sousa, um poeta afro-brasileiro”, Florentina Sousa procura ressaltar a face militante do poeta catarinense, ressaltando a feição afro-brasileira da obra do escritor que ficou silenciada porque a crítica preocupava-se em destacar, na obra do poeta, o seu engenho como criador de formas estéticas valorizadas pelo simbolismo. Em direção oposta, o artigo faz menção às pressões sofridas pelo poeta, decorrentes do racismo característico do meio e do tempo em que viveu. O artigo deixa claro que, além do trabalho altamente poético que se volta à exploração de aspectos musicais da linguagem poética, Cruz e Sousa sempre esteve atento à realidade vivida pelos escravizados, questionando-a em poemas certamente motivados por sua militância no movimento abolicionista.

Nos artigos “Outros olhares sobre a literatura afro-brasileira”, “Vozes negras na literatura afro-brasileira e insurgências” e “Literatura afro-brasileira, uma “fala entre línguas”, são discutidas questões específicas da produção e recepção da literatura produzida por escritores e escritoras envolvidos com as questões específicas da afro-brasilidade. Nesses artigos, são salientados pontos de vista específicos da formação de um pensamento crítico voltado não apenas à produção literária, mas também à discussão de questões da cultura brasileira, particularmente as relacionadas com a questão racial. Fica destacado o impulso dado pela Lei 10.639/2003, que motivou o fortalecimento das discussões sobre o lugar dos negros e negras na cultura brasileira, e sobre a produção artística e literária afro-brasileira. São destacadas publicações importantes que explicitam os caminhos percorridos pela intelectualidade negra, pelos movimentos que lutam contra o preconceito racial e a estigmatização do corpo e da história dos afrodescendentes.

Além de artigos mais diretamente voltados a aspectos da produção e recepção da literatura afro-brasileira, outros destacam os diálogos entre a América e a África, em consequência da diáspora imposta aos africanos pelos regimes escravagista e colonial. No traçado das consequências decorrentes da violência implantada, na América, pelo colonialismo europeu, são referidas produções que procuram registrar as transformações produzidas pelos africanos trazidos nos espaços do Novo Mundo. Os diálogos da América com a África permitem que se pense em espaços que poderiam ser denominados de afro-latinos porque, metonimicamente, inscrevem as africanidades no interior do que se denomina América Latina, marcando a presença de africanos nos diálogos, trânsitos e trocas culturais tanto com os colonizares que os trouxeram da África, quanto com os diferentes povos habitantes das Américas. O artigo “Memórias afro-latinas” destaca a circulação, na América Latina, de visões e percepções sobre os povos africanos, demonstrando a persistência de considerações racialistas que postulam a inferioridade dos africanos quanto as que, na contramão, reconhecem a força, resistência e conhecimentos demonstrados por eles no enfrentamento da violência imposta pelos sistemas escravocrata e colonial.

A discussão sobre a intelectualidade negra no Brasil se mostra em vários artigos do livro, sendo destacada, de forma mais pontual, nos textos “Intelectuais negros no Brasil: realidade/caso de insurgências e resistências” e “Mulher, cultura e insubordinação na diáspora”. No primeiro texto, a autora aponta o fortalecimento de investigações voltadas à atuação de intelectuais negros sobretudo em decorrência da uma maior inserção de pesquisadores e pesquisadoras de diferentes grupos étnico-raciais nas universidades brasileiras. No segundo artigo, a discussão volta-se à presença de mulheres negras, na diáspora e no Brasil, na elaboração de estratégias de sobrevivência e de mobilidade que denunciam o abandono social imposto ao segmento afro-brasileiro, situação muitas vezes reforçada por atitudes sexistas e machistas existentes até mesmo no âmbito da exclusão.

A leitura dos artigos que compõem o livro Olhares sobre a literatura afro-brasileira permite um significativo trânsito por questões voltadas à cultura e à literatura afro-brasileiras. Incentiva a que se acompanhem os percursos demarcados pela presença dos africanos nos espaços do chamado Novo Mundo, da América Latina, em especial. Os artigos procuram retomar o esforço desempenhado por ativistas, intelectuais, escritores e escritoras que, desde o século XIX, lutam pela abertura de espaços onde seja possível ouvir a voz dos afro-brasileiros que se assumem sujeitos do seu dizer. Nesse aspecto, o livro se faz espaço de fala e de escuta de afro-brasileiros, demonstrando a força do pensamento e da literatura afro-brasileira desde seus precursores, no século XIX, e em textos de escritores e escritoras que, ao longo do século XX, vêm contribuindo para o seu fortalecimento, sem deixar de assinalar o importante papel desempenhado pelos Cadernos Negros e por antologias críticas que altamente significativas na discussão proposta pelo livro.

O olhar atento e perspicaz de Florentina Souza sobre a literatura e a cultura afro-brasileiras, exposto nos vários artigos que compõem o livro Olhares sobre a literatura afro-brasileira, convida os leitores e pesquisadores a participarem das discussões propostas.

Referência

SOUZA, Florentina da Silva. Olhares sobre a literatura afro-brasileira. Salvador: Quarteto Editora, 2019.


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*Maria Nazareth Soares Fonseca é professora aposentada dos cursos de Letras da UFMG e da PUC Minas. Pesquisadora do CNPq e do CEA/UFMG, além de diversos ensaios e artigos críticos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros, organizou os livros Brasil afro-brasileiro (2000), Poéticas afro-brasileiras (2003), Literaturas africanas de língua portuguesa – percursos da memória e outros trânsitos (2008), entre outros. É também autora de Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015), além de coorganizadora da coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2a Reimpr., 2021, 4 vol.), recentemente considerado, em pesquisa realizada pela Folha de S. Paulo, um dos 200 livros mais importantes para se compreender o Brasil.

 

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