Maria Firmina dos Reis e o cotidiano da escravidão no Brasil:
um guia (quase) definitivo sobre a vida e a obra
da mais ilustre das maranhenses

 

Rafael Balseiro Zin*

 

Aguardado ansiosamente por todos aqueles que admiram ou então que se dedicam a investigar determinados aspectos que compõem a vida e a obra da primeira romancista do Brasil, e lançado oficialmente em 11 de março de 2022 nas dependências da Associação dos Magistrados do Maranhão, em São Luís, eis que, finalmente, chega às mãos do público-leitor o mais que bem-vindo Maria Firmina dos Reis e o cotidiano da escravidão no Brasil, obra de estreia escrita pelo juiz de direito e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Guimarães, Agenor Gomes. Dividido em treze capítulos distribuídos em um total de 362 páginas, o leitor atento e curioso encontrará nesse precioso volume uma quantidade inédita de informações acerca da maranhense, que vai desde a reconstituição da árvore genealógica de sua família; passando por documentações até então acauteladas em arquivos públicos e privados diversos, como inventários, procurações, certidões de batismo, de casamento e de óbito; além de 81 registros fotográficos que ilustram o cotidiano vivido e o processo de recuperação da trajetória de vida e do legado de uma das personalidades mais instigantes da história política, artística e intelectual brasileiras.

Nascida em 11 de outubro de 1825 na ilha de São Luís, capital da antiga província do Maranhão, entre outros feitos que fizeram de sua existência algo um tanto particular, Maria Firmina dos Reis é autora de Úrsula, reconhecido atualmente como o primeiro romance de autoria negra e feminina da nossa literatura, além de ter sido a primeira obra do gênero a conter em sua narrativa um posicionamento político explicitamente contrário à escravidão. Quebrando as barreiras impostas pelas dinâmicas patriarcais e escravistas, e tendo obtido certo reconhecimento em vida, hoje sabemos que a romancista teve participação ativa enquanto cidadã e artífice no Império, ao longo de noventa e dois anos de uma vida dedicada a escrever, a ler e a ensinar. Infelizmente, mesmo tendo ocupado um lugar de destaque no cenário cultural maranhense oitocentista, fato é que o seu nome ficou por décadas esquecido, muito provavelmente, em decorrência de um possível silenciamento ideológico vindo das elites condutoras da vida política e intelectual brasileiras. Faleceu em 11 de novembro de 1917, cega, pobre e sem nenhuma honraria, na casa de uma amiga que vivera como escravizada e em companhia de Leude Guimarães, um de seus filhos de criação.

Visando preencher parte considerável das lacunas contidas nos principais estudos que trataram da vida e da obra de Maria Firmina dos Reis dos anos 1970 em diante – movimento esse iniciado pelo escritor e pesquisador José Nascimento Morais Filho (1922-2009) e por sua equipe de assistentes entre 1973 e 1975, que resultou no primeiro esboço de uma biografia sobre ela, intitulada Maria Firmina, fragmentos de uma vida; e buscando melhor compreender o protagonismo, as relações pessoais e os caminhos trilhados pela romancista no Maranhão de sua época, Agenor Gomes se lançou na árdua tarefa de percorrer os principais locais frequentados por Maria Firmina dos Reis nos rincões da província, desvendando determinadas facetas de seu ativismo nos campos da educação e da cultura popular; o seu engajamento político em prol das mulheres e da libertação dos cativos; bem como suas afinidades eletivas e demais redes de sociabilidade. O resultado de todo esse esforço encontra-se publicado em seu livro de estreia, que é apresentado pelo próprio autor como uma espécie de biografia da escritora, embora vá muito além de uma simples biografia. A edição primorosa preparada pela editora da Academia Maranhense de Letras conta com o prefácio da professora e pesquisadora Luiza Lobo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, além do posfácio de José Ewerton Neto e a orelha do livro de Lourival Serejo, ambos escritores pertencentes aos quadros da instituição.

Iniciado em 2018 no bojo das comemorações alusivas ao centenário de falecimento de Maria Firmina dos Reis, após localizar e analisar inúmeras fontes primárias do século XIX e início do XX, Agenor Gomes conseguiu reunir em seu estudo um conjunto riquíssimo de documentos até então desconhecidos por parte dos pesquisadores, que estavam alocados em acervos de difícil acesso ou de acesso restrito, como os da Serventia Extrajudicial de Guimarães e do Arquivo da Diocese de Pinheiro, ambos no Maranhão. Entre as tantas novidades reveladas por ele, Agenor conseguiu, por exemplo, comprovar tanto a filiação de Maria Firmina quanto o nome até então não revelado de sua avó materna, a escrava Engrácia, progenitora de sua mãe Leonor Felippa dos Reis, nascida na segunda metade do século XVIII, em 1778, na região da Guiné, localizada na África ocidental. Assim como Leonor, Engrácia também havia sido propriedade de Caetano José Teixeira, comendador da Ordem de Cristo e conhecido traficante de almas no circuito que transportava as mercadorias do porto do Cacheu, na Guiné, até o porto de São Luís, na costa maranhense.

Em paralelo a esse processo, o pesquisador também consultou demais documentos disponíveis no Arquivo Público do Maranhão, no Arquivo do Tribunal de Justiça do Maranhão, na Biblioteca Pública Benedito Leite, em São Luís, além da Biblioteca e do Arquivo nacionais, situados no Rio de Janeiro. Em periódicos locais da década de 1820, Agenor Gomes conseguiu confirmar que João Pedro Esteves foi, de fato, o pai da romancista, tendo trabalhado como furriel na Companhia de Cavalaria Franca do Maranhão, na capital da província, antiga patente militar superior a cabo e inferior a sargento, informação essa também desconhecida até então. Antes de obter a patente, João Pedro havia estabelecido sociedade com o comendador Caetano José Teixeira e demais parceiros, voltada para a realização de atividades comerciais que incluíam, entre outras frentes, o comércio de negros escravizados vindos da África ocidental – o que nos leva a crer que, foi justamente em meio a uma dessas incursões que o mercador teve contato com Leonor Felippa dos Reis, tendo a engravidado em algum momento. A participação de João Pedro Esteves no Conselho de Jurados da Província do Maranhão, em 1833, foi a última informação que o pesquisador conseguiu obter sobre o pai da romancista nos jornais de São Luís que sobreviveram ao tempo. Assim como fizera Luiz Gama (1830-1882) em sua famosa carta autobiográfica endereçada a Lúcio de Mendonça, datada em 25 de julho de 1880, Maria Firmina dos Reis, até onde sabemos, jamais fez quaisquer menções ao nome de seu pai, inclusive em seu Álbum de recordações, espécie de diário íntimo mantido pela escritora.

Outro aspecto que chama a atenção em meio às tantas revelações feitas por Agenor Gomes em seu livro está na confirmação definitiva da data de nascimento de Maria Firmina dos Reis, que nasceu de fato em 11 de outubro de 1825, informação consolidada entre os pesquisadores de 1975 a 2017, mas que foi modificada em setembro daquele ano para o 11 de março de 1822, após a descoberta de uma solicitação de justificação em seu batistério junto à Câmara Eclesiástica Episcopal local, feita em 1847, a pedido da própria solicitante, quando ela contava com 22 anos. O documento em questão está sob a guarda do Arquivo Público do Maranhão. Desmontando a artimanha realizada pela futura professora para acrescentar três anos a mais em seu registro de batismo, visando a sua participação no concurso para professora de primeiras letras na Vila de Guimarães, que exigia a idade mínima de 25 anos para a assunção do cargo, Agenor reorganiza o tabuleiro de informações disponíveis sobre Maria Firmina dos Reis, encerrando de uma vez por todas a polêmica sobre sua verdadeira data de nascimento, desconfiança essa que se estendeu por cerca de cinco anos, de setembro de 2017 a março de 2022.

Se, no início, o primeiro movimento encabeçado por José Nascimento Morais Filho ainda na década de 1970 foi o de reconstituir a trajetória da nossa protagonista por meio de uma vida em fragmentos, agora, muitos desses fragmentos se reconectam na atualidade, através do valoroso trabalho empreendido por Agenor Gomes, um dos mais talentosos pesquisadores sobre Maria Firmina dos Reis de todos os tempos, nesse guia (quase) definitivo sobre a vida e a obra da maranhense. E digo “quase”, aqui, não por demérito ou por efeito retórico, mas justamente para reforçar que todo estudo, em si, é uma obra inacabada e, por isso mesmo, abre margens para que novos avanços sejam realizados, com o intuito de darmos continuidade às discussões até aqui apresentadas e de aperfeiçoarmos as informações e interpretações sobre Maria Firmina dos Reis ora disponíveis. Aos que tiverem interesse em percorrer os caminhos trilhados por Agenor Gomes nesse trabalho de fôlego e de imersão, garanto se tratar de uma experiência incrível e que promete fortes emoções. Vida longa ao autor de Maria Firmina dos Reis e o cotidiano da escravidão no Brasil e que o seu mais novo livro reverbere positivamente, encantando os leitores de norte a sul e disseminando nos quatro cantos do país o atual estado da arte das pesquisas que buscam recuperar o legado e a presença histórica da primeira romancista do Brasil.

São Paulo, junho de 2022

Referência

GOMES, Agenor. Maria Firmina dos Reis e o cotidiano da escravidão no Brasil. Prefácio de Luiza Lobo. Posfácio de José E. Neto. São Luís: AML, 2022.

Nota: O livro encontra-se disponível na Livraria da Associação Maranhense de Escritores Independentes, a Amei, no São Luís Shopping, localizado na Avenida Professor Carlos Cunha, nº 1000, em São Luís do Maranhão. Para compras feitas pela internet, o livro encontra-se disponível na loja virtual da Amei (www.ameilivraria.com).

 

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* Rafael Balseiro Zin, é Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política desta instituição, figura entre os mais destacados estudiosos da vida e da obra da escritora maranhense. É autor, entre outros, de Maria Firmina dos Reis: a trajetória intelectual de uma escritora afrodescendente no Brasil oitocentista (2019).

 

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