Raça e República no Brasil

 

Antônio Sérgio Alfredo Guimarães*

 

O ensaio que vocês lerão analisa um evento, um período histórico e um sentimento. Um sentimento que aos poucos, ao longo de muitos anos, transformou-se em pensamento compartilhado pela população negra brasileira. Ano após ano, a luta contra o cativeiro, das resistências individuais aos quilombos, fora tecendo o que viria a ser o abolicionismo, transformado nos anos 1880 no primeiro grande movimento social brasileiro, como bem entendeu Angela Alonso. O abolicionismo embalou entre o povo, os libertos e os escravizados, os nossos sonhos de liberdade e de justiça. Contra esses sonhos se opuseram os donos do poder. Mas a abolição do trabalho escravo foi feita pela Monarquia, alimentando no povo a esperança de que o fim do cativeiro se consolidaria, no que pese a resistência dos poderosos.

A República de 1889, todavia, embaralhou todas as cartas postas à mesa pelo abolicionismo, e acabou por promover a rearticulação do bloco no poder. É que depois de maio de 1888 a causa republicana ganhou, aos poucos, a adesão dos escravistas, que continuaram buscando reparação pelas vidas que escravizavam. Ficou com o povo o sentimento de abolição inacabada, de liberdade a meias.

Nossos melhores sociólogos e historiadores já se debruçaram sobre esse sentimento para compreendê-lo. Conceitos como revolução inacabada, persistência do passado, revolução conservadora, donos do poder, foram mobilizados para entendê-lo. Na linguagem da política ativista, desde 1889 o povo negro deu-se como tarefa reorganizar a luta por uma segunda abolição.

Matheus Gato tenta, neste livro, uma estratégia nova para pensar tal sentimento. Focaliza num acontecimento-chave do período crítico da transição entre maio de 1888 e novembro de 1889; a fuzilaria assassina desferida sobre uma multidão popular que procurava defender os direitos recém-conquistados, mas não ainda plenamente usufruídos, pela Abolição, em São Luís do Maranhão, a 17 de novembro de 1889. Quem ordenou a carga sobre os manifestantes pretendeu não compreender o porquê do protesto: que liberdade e direitos estariam ameaçados, se nem existiam? Só a ignorância popular poderia, naquele rincão do Brasil, acalentar ainda os sonhos abolicionistas. Ah, a boa consciência dos poderosos!

Penetrar nessa camada tão sólida de ideologias, de desconhecimento do outro, de estabelecimento da desigualdade enquanto norma, a que o outro não pode ascender sem o seu próprio viés, foi essa a tarefa de Matheus. Para tanto, buscou as ferramentas das ciências sociais e o método da história social. Concentrar-se num evento que consolida o período, reconstituí-lo pacientemente a partir de evidências e fragmentos, compreender os pontos de vista que guiaram as percepções de contemporâneos àqueles acontecimentos da história oficial, tencioná-las em interpretações várias para, ao fim, descobrir um mundo de sentidos diversos da ação.

O leitor terá a oportunidade de acompanhar, na reconstrução do evento de 17 de novembro de 1889, a formação de um Brasil contemporâneo que não se limitou ao Maranhão. Naquele interregno crítico entre a Abolição e o golpe republicano, com o povo nas ruas em defesa da Monarquia, dando continuidade à mobilização abolicionista, estava em jogo o direito à propriedade fundiária, assim como a defesa da antiga ordem em que o escravo era ele mesmo uma propriedade. Uns lutavam por acesso à terra como único modo de garantir a liberdade assegurada pela emancipação, já os ex-senhores lutavam para serem ressarcidos da liberdade dos primeiros.

A ordem racial que começara a ser explicitada no abolicionismo passa, então, a ser reconstruída a partir de marcadores corporais, raciais e étnicos, como a cor e os costumes, para manter a antiga ordem social de privilégios de classes e de categorias sociais. A já consolidada classe remediada de cor, os negros e mulatos nascidos livres, os libertos ainda durante o escravismo, assim como os emancipados no 13 de Maio, são todos agora reclassificados por esses marcadores raciais, que vão adquirir novo significado. A cor (ampliada para incorporar traços físicos e culturais associados aos africanos) passará a ser o signo maior de posição social.

A razão da desconfiança dos negros com a República é assim exposta por Matheus de maneira brilhante, emprenhando de lógica e clareza um comportamento reativo que os brancos contemporâneos não conseguiram entender. Da mesma forma, o autor reconstrói o modo como os republicanos terão de aplacar as esperanças dos que se viram reduzidos à liberdade sem meios de sobrevivência senão novas formas de sujeição. Um dos pontos altos do livro é a sua narrativa sobre a destruição dos pelourinhos e a invenção simbólica de uma fraternidade racial que sustentasse a desigualdade social marcada pela cor na Primeira República.

Nessa empreitada histórica, chama atenção o modo como Matheus dialoga com suas fontes e com a vasta bibliografia pertinente, como é capaz de enquadrar socialmente o historiador que antes dele narrou os acontecimentos, a literatura ficcional ou memorialista dos que presenciaram os eventos, assim como os jornais da época e suas outras fontes. Ele consegue, desse modo, dar um novo lugar interpretativo para a sociologia consagrada de Gilberto Freyre, quando este sugere que a violência e o terror foram ensaiados como instrumentos de controle da população negra; de Florestan Fernandes, quando este erige o regime republicano como pressuposto para a cidadania dos negros; da chamada escola paulista, da qual inverte a afirmação da raça como persistência do passado, postulando trata-se apenas do nascedouro da modernidade brasileira.

Do ponto de vista interpretativo, o ensaio é construído em diálogo com a historiografia atual sobre o pós-abolição, a sociologia histórica do período e a reflexão sociológica corrente sobre raça, cor e classificações raciais. Balanceando do modo rigoroso as ciências sociais e a reconstrução histórica, com cuidado, prudência, evidências empíricas e interpretação de textos e documentos, Matheus nos ensina um pouco mais do modo como se formou o Brasil contemporâneo.

Por fim, me permitam uma nota pessoal. Para quem, como eu, teve a responsabilidade de orienta a trajetória do autor pelos anos de formação pós-graduada, estabelecendo com ele um diálogo que pudesse aplacar – sempre provisoriamente – a sua curiosidade intelectual e teórica, este ensaio é o coroamento de um ofício simples e, ao mesmo tempo, muito complexo – o de ensinar o que se sabe e aprender com quem se ensina: o ofício de professor, que transforma em colega e amigo o ex-aluno.

Nota

* Texto de apresentação do livro, gentilmente cedido pelo autor.

Referência

GATO, Matheus. O massacre dos libertos: sobre raça e república no Brasil (1888-1889). São Paulo: Perspectiva, 2020.

Antônio Sérgio Alfredo Guimarães é professor titular da Universidade de São Paulo (USP), Tinker Visiting Professor na Universidade de Chicago (Sociology e Center of Latin American Studies), e membro vitalício do Clare Hall, University of Cambridge, Reino Unido, onde foi titular da cátedra Simón Bolívar no ano letivo 2016-2017.

 

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