A escritora afro-brasileira: ativismo e arte literária

 

Luiz Henrique de Oliveira*

 

A escritora afro-brasileira: ativismo e arte literária (Belo Horizonte: Nandyala, 2016) é o mais recente livro organizado por Dawn Duke, Professora Associada de Espanhol e Português no Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras Modernas da Universidade de Tennessee (Knoxville). Duke é especialista em Literaturas Afro-latino-americanas e em Estudos Culturais. Escreveu também Literary passion: ideological commitment toward a legacy of women writers (2008), além de diversos artigos sobre etnicidade, gênero e escrita literária em Cuba, Brasil, República Dominicana e Porto Rico.

No trabalho de 2016, a organizadora oferece ao leitor brasileiro um formato bastante peculiar de crítica produzida na Academia norte-americana. A obra confere espaço a depoimentos, textos teóricos e excertos literários de cada uma das autoras nela constantes: Cristiane Sobral; Mel Adún; Conceição Evaristo; Débora Almeida; Esmeralda Ribeiro; e Mirian Alves. Não se trata de um livro sobre as autoras afro-brasileiras, mas sim de um livro com estas autoras. Desta maneira, as vozes destas mulheres ganham amplitude porque ouvidas em sua multiplicidade, talvez reencenando o que a própria Conceição Evaristo chama de “escrevivência”, ou seja, a escrita a partir de um corpo, de uma condição de uma experiência.

Depreende-se o desejo de um afastamento franco por parte da organizadora em relação à noção de morte do autor. O sujeito empírico, ao abordar por si sua trajetória e vivências, deixa clara a interferência da vida na criação literária e, da mesma forma, da criação literária na vida destes sujeitos.

O ativismo aqui não é visto de maneira pejorativa: ao contrário, a trajetória destas escritoras em movimentos negros ou mesmo suas experiências a partir da condição étnica que as pautam dizem muito da forma e do conteúdo de suas produções ficcionais ou não ficcionais. Longe de qualquer possibilidade panfletária ou mesmo de qualquer insinuação de ordem autobiográfica em suas obras, as autoras, por meio do referido ativismo, analisam as condições de rupturas desejáveis com o racismo que assola este país em diversos níveis e setores.

A questão geracional é colocada não só em termos de fontes e influências. As vozes destas mulheres elencadas desfia uma trama discursiva que coloca a escrita como cerne de uma tradição feminina empenhada em enfrentar preconceitos étnicos e de gênero. Os depoimentos apontam para um contexto de abertura de caminhos inaugurados por Maria Firmina dos Reis, passando por Carolina Maria de Jesus, até chegar à geração de Cadernos Negros e, finalmente, às seis autoras contidas no livro. Arrisco dizer que as “vozes-mulheres” no livro de Dawn Duke, atualizam as irmandades negras, contudo agora em termos de depoimentos, ensaios e literatura.

Ao abrir espaço à reflexão de natureza teórica, cada autora, seja acadêmica ou não, pode ser ouvida, ao mesmo tempo, como crítica e intelectual. Isso porque, uma vez especialistas em um saber de ordem prático, como a literatura, elas catalisam as experiências suas de suas comunidades a fim de refletirem sobre os campos literário e social. No primeiro caso, as reflexões ganham contornos amplos em todas as falas, embora tenhamos pontos em comum a todas as falas. A começar pela abordagem do mercado editorial brasileiro e sua relação nem sempre acolhedora aos escritores negros. Daí quiçá a postura unânime sobre a necessidade de alteração campo literário brasileiro, caso os autores negros queiram perceber seus textos em circulação. Um dos temas então encontrados nas falas e textos ensaísticos das autoras é justamente aquele referente aos mecanismos de publicação e circulação da literatura afro-brasileira, principalmente quando se trata de autoria feminina. Outra preocupação é a denúncia da representação das personagens negras na literatura nacional, ainda carregada de estereótipos. Esta preocupação convoca outro debate, qual seja o da construção do protagonismo negro nesta vertente literária de que falamos. De forma semelhante, o desafio da formação do leitor brasileiro, principalmente quando de pele escura e que pouco se reconhece na literatura brasileira tout court.

Há, contudo, especificidades nos lugares de fala das escritoras. A potência do teatro faz parte das reflexões de Cristiane Sobral e Débora Almeida. O ativismo digital de Mel Adún coaduna as questões de ordem editorial responsáveis pela circulação da literatura negra brasileira. Na mesma linha de raciocínio, Esmeralda Ribeiro também o faz ao tratar de Cadernos Negros ontem e hoje. Em termos mais especificamente ficcionais, Conceição Evaristo e Miriam Alves discutem o papel da literatura que fazem e o diálogo sempre necessário desta forma de escrita com a tradição e com o cotidiano. Estas vertentes temáticas não colocam fim à variedade de assuntos abordados por cada uma das escritoras. É, antes, uma tentativa apenas didática de dividir as seções do livro por blocos temáticos. Até porque, a rigor, os temas se entrecruzam de modo a sugerir um mosaico de visões e compreensões sobre o campo literário em questão.

Talvez como forma de apresentação aos leitores ou mesmo como um corolário capaz de demonstrar o compromisso com a teoria, as seções literárias de cada autora têm lugar garantido livro organizado pela Professora norte-americana. E este formato distinto na cena crítica, ao menos em termos brasileiros, prioriza o que a autora tem a dizer ao invés de ouvirmos unicamente o pesquisador. Não que a pesquisadora Dawn Duke tenha se abdicado do gesto ensaístico. Ela o faz, na abertura do livro, como espécie de chamado de atenção a um “espetáculo teórico literário” que começará páginas adiante. Abramos as cortinas de nossas estantes, pois, a este livro de significativa envergadura no âmbito dos estudos sobre a literatura afro-brasileira.

Referência

DUKE, Dawn Alexis. (Org.) A escritora afro-brasileira: ativismo e arte literária. Belo Horizonte: Nandyala, 2016.

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* Luiz Henrique de Oliveira é Mestre e Doutor em Letras, Estudos Literários pela UFMG e professor do CEFET-MG, campus Belo Horizonte. É autor de Poéticas negras - representação do negro em Castro Alves e Cuti (2010) e Negrismo - Percursos e configurações em romances brasileiros do século XX (1928-1984). Estuda literatura afro-brasileira, em especial temas relacionados ao campo editorial.

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