Sem medo de colocar o pensamento negro

na mira das atuais discussões*

 

Ana Zélia Maria Moreira**

Escritos negros: crítica e jornalismo literário, de Tom Farias, vem incorporar contribuições imensuráveis ao conhecimento de nossas letras, prevalentemente para a reconstituição histórica do pensamento do negro, em interface com distintas áreas do conhecimento e aprofundamento de temáticas como pan-africanismo, negritude, escravidão, racismo, entre outras presentes na cultura e na produção literária afro-brasileira.

Estruturado em três partes, Escritos negros apresenta uma coletânea de setenta e oito textos de crítica literária – matérias jornalísticas, resenhas de livros, síntese de entrevistas, ensaio acadêmico, além de cinquenta verbetes biográficos que dimensionam a atuação de escritores e escritoras negras na literatura brasileira –, tudo isto numa linguagem acessível, que facilita a compreensão do leitor. A produção intelectual de Tom Farias é conhecida: biógrafo de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), José do Patrocínio (1853-1905), e Cruz e Sousa (1861-1898), do qual é também um estudioso dedicado, com várias publicações e prêmios; jornalista e crítico literário de escritores africanos e afrodescendentes dentre eles, Paulina Chiziane, Ungulani Ba Ka Khosa, Machado de Assis, Lima Barreto, Maria Firmina dos Reis, Conceição Evaristo, Elisa Lucinda, Salgado Maranhão, Paulo Lins; e, também, ficcionista, com dois romances publicados, Os crimes do Rio Vermelho e, mais recentemente, A bolha.

Evidencia-se nessa coletânea um número considerável de autores e autoras de descendência negra – figuras conhecidas e outras ignoradas pelo grande público, cuja produção remete a diferentes gêneros literários, indo da poesia à ficção e à crítica. Em recorte temporal, do final do século 17 aos dias atuais, essa produção intelectual contribui para o aprofundamento de estudos em distintas áreas do conhecimento e em contextos interdisciplinares, temas relevantes e atuais, atinentes à literatura, à história e à cultura afro-brasileira. 

Além de reunir três décadas de jornalismo e crítica literária publicados na grande imprensa, a coletânea traz também textos não publicados na íntegra ou inéditos que resistiram ao tempo e se mantém atuais. Recuperar e tornar públicos esses trabalhos demonstra a sensibilidade literária e compromisso profissional do autor, no que considera evidências efetivas de ação pública “como aspecto do apagamento como um cunho ideológico, uma espécie de política de Estado, abraçada na República, mas manifestada desde a Colônia e o Império”. Utilizados “como instrumentos próprios para silenciar e inviabilizar, de um lado, autoras e autores negros, o seu legado, de outro, suas raízes africanas e produções intelectuais”.

Em Escritos negros, Tom Farias estabelece com maestria uma relação íntima com suas publicações anteriores, num processo de aprofundamento de temas e autores, aproximando-os de tópicos atuais que ampliam a discussão, tais como o racismo, cotas raciais, voz aos excluídos, dentre outros. A exemplo os estudos biográficos de Cruz e Sousa, José do Patrocínio e Carolina Maria de Jesus, os Escritos vêm acrescentar informações preciosas para a construção de conhecimento crítico sobre a autoria negra na literatura brasileira, em grande medida não contemplada nos manuais acadêmicos.

Nesse universo o leitor tem acesso a informações de relevo sobre autores da literatura brasileira, do passado e do presente dentre eles, Machado de Assis, célebre como autor de contos e romances, mas também teatrólogo, poeta, cronista e jornalista; Maria Firmina dos Reis, primeira mulher negra a publicar um romance em toda a lusofonia;  Teixeira e Souza, primeiro romancista brasileiro, autor de O filho do pescador (1843); Cruz e Souza, conhecido como poeta, mas também homem de teatro, jornalista e militante político; Abdias Nascimento, ator e fundador, em 1944, do TEN – Teatro experimental do negro, além de ensaísta de peso, militante político, poeta, artista plástico e jornalista; Martinho da Vila, conhecido como cantor e compositor, mas também voltado para o mundo das letras, com publicações infantis, juvenis, biográficas, ensaios e romances; e, ainda, Nei Lopes, autor de vasta produção, que vai do samba a dicionários e enciclopédias, sem descuidar da publicação de poemas, contos e romances.

Pensar e refletir sobre a participação do negro, com destaque para seu protagonismo econômico e social, é fundamentar as discussões atuais por meio das veredas da literatura afro-brasileira. É o que faz com maestria Tom Farias nessa preciosa recolha de textos críticos produzidos ao longo de toda uma trajetória de pesquisador e estudioso empenhado em aprimorar cada vez mais sua participação no jornalismo cultural brasileiro.

Natal-RN, março de 2021

Referência

FARIAS, Tom. Escritos negros: crítica e jornalismo literário. Rio de Janeiro: Malê, 2020.


Notas

* In: Estado de Minas, 16/03/2021, Caderno Pensar, p. 4.

** Ana Zélia Maria Moreira é arquiteta e urbanista e socióloga, doutora em Educação e mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Vice-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo-CAU/RN, integrante do Núcleo de Documentação e Memória e docente na Pós-Graduação do Instituto de Educação Superior Presidente Kennedy/IFESP e dedicação aos estudos de arquitetura escolar, cangaço, história e memória de negros.

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