Luiz Gama, homem de imprensa

Gustavo Bicalho*

 

Por muito tempo, as pesquisas sobre a vida e obra de Luiz Gama (1830-1882), único escritor e intelectual negro brasileiro a ter sofrido a escravidão, tiveram como principal fonte a carta escrita ao jovem amigo e escritor Lúcio de Mendonça, no ano de 1880 e o artigo que dela derivou, em 1881. A presença contemporânea de Luiz Gama no panteão público de grandes personagens afro-brasileiros da história do Brasil como, entre outros, “patrono da abolição”1 deve-se, em grande parte, a divulgação do impressionante e excepcional relato presente na carta e a um longo trabalho coletivo de resgate e resistência cultural que envolve desde pesquisadores, militantes, escritores e agentes culturais diversos.

Tamanha ênfase, no entanto, na imagem e na trajetória biográfica de Luiz Gama reveladas pela carta falhou em nos oferecer o contato direto e necessário com o pensamento, o talento literário e retórico, a visão de mundo, enfim, a voz de um indivíduo que viveu, observou e se relacionou com seu tempo e contexto sobretudo pela via da linguagem. Débito típico de um país que pouco se dispõe a escutar os ecos da própria história. 

Atenta há mais de vinte anos a essa grave lacuna, a professora e pesquisadora Dra. Lígia Fonseca Ferreira, vem realizando um trabalho consistente de pesquisa e resgate dos textos do autor das Primeiras Trovas Burlescas (1859), livro de entrada de Luiz Gama no mundo das letras reeditado pela pesquisadora em 2001. Seus trabalhos têm cuidadosamente resgatado dos nem sempre acessíveis e por vezes perecíveis arquivos nacionais os textos escritos por nosso primeiro “autor negro” e, também, um dos pioneiros da imprensa no Brasil. Esse último aspecto de Gama, ocupa o cerne do  mais recente livro de Lígia Ferreira, Lições de Resistência - artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (2020).

Os que tiveram a sorte de conhecer seu volume anterior Com a palavra Luiz Gama (2011) já se surpreendiam com “a pena audaz” do jornalista que, nos doze artigos reunidos pela antologia, desafiava juízes e políticos de alto escalão -- como o conselheiro Nabuco de Araújo, pai de Joaquim Nabuco e uma das mais poderosas lideranças da ala conservadora do império --, em seu flagrante desrespeito às leis e aos valores éticos e morais que juravam defender no exercício da função pública. Agora, com os 61 artigos integrais publicados em Lições de Resistência, dos quais 42 inéditos, publicados no entre São Paulo e o Rio de Janeiro entre 1864 e 1882, as surpresas se multiplicam aos montes com a prolificidade escrita de um Luiz Gama que, para além da militância abolicionista, se consolidava e se fazia respeitar como homem de letras na imprensa. É a primeira vez que temos contato com a grande maioria dos textos jornalísticos de Luiz Gama na íntegra, fato pouco condizente com o poder de influência e o significado histórico desses textos, que articulam de maneira ímpar a verve testemunhal do cidadão negro, ex-escravizado, à profunda análise política, jurídica e filosófica de seu tempo. Tudo isso em uma sociedade sombreada pelo racismo científico e pelo desobedecimento sistêmico às já frouxas leis que regulavam a escravidão.

Dentre tais leis, sua favorita era a de 7 de novembro de 1831, que determinava livres todos os escravos que adentrassem os portos brasileiros vindos do exterior e criminalizava seus detentores e proprietários como sequestradores. Apoiado nessa e em outras leis do país, com profundo conhecimento dos autos, das jurisdições e dos fundamentos filosóficos transnacionais do direito brasileiro, Luiz Gama, “de pena em punho”, lançava uma a uma ao chão a reputação de seus adversários, a quem emprestava o título preciso de “salteadores da liberdade”.

Nem só de retórica jurídica, porém, se fazem as “lições de resistência” presentes no livro. A leitura dos “novos” textos nos revelam que Luiz Gama não se restringiu ao uso instrumental da página dos jornais. Deixou-nos, em seus variados escritos, um pensamento de país e uma escrita de liberdade, articulados, aliás com alguns dos principais pensadores progressistas de seu tempo, como os franceses Ernest Renan e Édouard de Laboulaye. Os inéditos nos mostram, ainda, que, como todo grande escritor, Gama foi um grande leitor e soube trazer para o interior de sua escrita ensaística o diálogo fecundo com a literatura clássica, assim como a de autores contemporâneos seus, com os quais compartilhou laços de amizade, parceria político-ideológica e mútua admiração.

É este outro trunfo essencial do livro de Ferreira, aliás. Os conhecidos laços de amizade e as redes de sociabilidade estabelecidas por Gama ganham novos elementos que revelam não só a progressiva conquista de autonomia do ex-escravizado, mas sobretudo seu protagonismo nas mais diversas frentes políticas e culturais de que participou em vida. A atuação fundamental no interior do Club Radical Paulistano, na maçonaria abolicionista e filantrópica representada pela Casa América e na editoração e redação de diversos periódicos, entre outros, coloca Gama no cerne da vida política de São Paulo e em articulação direta com as principais frentes republicanas e abolicionistas do Rio de Janeiro, capital do Império.

Para contextualizar essa dinâmica de laços, diálogos e co-influências, Lígia Fonseca Ferreira nos oferece um paratexto consistente, composto por  extensa introdução, uma cronologia temática que se estende de 1822 até os dias de hoje, uma bibliografia fundamental sobre o autor, um apêndice com quatro cartas escritas por Luiz Gama e o famoso artigo biográfico escrito por Lúcio de Mendonça, além do corpo robusto de 265 notas descritivas e explicativas que “escoltam”2 o texto documental. Em Lições de Resistência, o leitor é presentado, portanto, com o conteúdo de dois livros em um só: no centro, a reunião de documentos históricos, contendo os textos de Luiz Gama na imprensa, carregada de ineditismo e capaz de nos colocar em contato direto com a voz de um raro escritor, que experimentou e combateu a escravidão brasileira de dentro para fora; ao redor e por todo lado, os comentários críticos de uma pesquisadora incansável, atenta às relações complexas entre passado e presente legíveis nos textos do autor.

Como homem de imprensa, Luiz Gama mostra-se um arguto observador dos acontecimentos contemporâneos. “De pena em punho”, jamais deixava passar em branco os atos de injustiça e violência contra negros, pobres, imigrantes e desvalidos de que tomava conhecimento. Lidos com o cuidado que merecem hoje, os textos de Luiz Gama nos oferecem ferramentas essenciais para o enfrentamento do racismo sistêmico e estrutural, do “memoricídio”, do ódio racial e das profundas desigualdades que recheiam as páginas dos noticiários atuais.

Belo Horizonte, dezembro de 2020

Notas

[1] A Lei 13.629, publicada em 13 de abril de 2016,declara o advogado Luiz Gama “patrono da abolição da  escravidão do Brasil”. Pela lei 13.628, do mesmo ano, Gama foi inscrito no Livro dos Heróis da Pátria.

[2] Lígia Fonseca Ferreira apropria-se do método utilizado por Colette Becker em sua edição da correspondência de Émile Zola, em que as notas da organizadora cumprem o papel de “discurso de escolta” ao documento epistolar.

Referências

FERREIRA, Lígia Fonseca. Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro. Organização, introdução e notas de Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2020.
______ (Org). Com a palavra, Luiz Gama : poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011.
GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas. Edição preparada por Lígia F. Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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* Gustavo de Oliveira Bicalho é professor, Mestre e Doutorando em Letras, Teoria da Literatura e Literatura Comparada, pela UFMG. Pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade - NEIA, colaborador do literafro, e coautor de Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., 2019).


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