Voz(es) da escrevivência 

Constância Lima Duarte*

Cristiane Côrtes**

Maria do Rosário Alves Pereira***

 

Apesar das acontecências do banzo
há de nos restar a crença
na precisão de viver
e a sapiente leitura
das entre-falhas da linha-vida.

Conceição Evaristo.

 

Uma escritora que a cada novo livro amplia sua presença na cena literária brasileira contemporânea, e consolida projeção internacional, assim é Conceição Evaristo. Seu nome já há alguns anos é regularmente citado nos eventos acadêmicos, e sua produção, constituída de poemas, contos, romances e ensaios, em parte já traduzida para o inglês, francês, espanhol e italiano, tem provocado inúmeras leituras – entre teses e dissertações, ensaios e artigos críticos – tal sua riqueza e atualidade. No Salão do Livro de Paris, em 2014, quando o Brasil foi o país homenageado, ela integrou a comitiva de quarenta escritores convidados, e a imprensa registrou o “assédio” e a “sensação” que teria causado junto ao público e jornalistas estrangeiros. Além disso, foi a escolhida para representar os colegas por ocasião da visita do presidente francês, François Hollande, ao espaço brasileiro.

O primeiro poema veio a público em 1990, no décimo terceiro volume de Cadernos Negros, publicação coletiva do grupo Quilombhoje, de São Paulo, e, desde então, a autora tornou-se presença constante na cena literária afro-brasileira. A estreia individual se deu com o romance Ponciá Vicêncio, em 2003, cuja personagem emblematiza a herança da escravidão. Evaristo retoma parodicamente o modelo do bildungsroman europeu, para colocar a personagem numa sofrida trajetória de abortos e anulação de si mesma. O enredo entrelaça história social e individual, e vem comovendo milhares de leitores em todo o país e no exterior.

A este se seguiram: Becos da memória (2006), pungente e atualíssima ficcionalização do drama cotidiano dos excluídos, a enfrentar o poder que os expulsa de suas moradias; Poemas da recordação e outros movimentos (2008), em que a autora exibe seu talento e sensibilidade no trato com a palavra, a nos proporcionar momentos de profundo enlevo poético; Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), surpreendente pela forma inovadora a orquestrar “depoimentos” que entrelaçam dramas femininos de humilhação e dor; Olhos d’água (2014), volume tocante por conduzir poeticamente narrativas por vezes trágicas de seres perdidos no cotidiano das grandes cidades, que mereceu o Prêmio Jabuti Categoria Conto de 2015; e o recém-lançado Histórias de leves enganos e parecenças (2016), a inaugurar a entrada da ficcionista nas formas narrativas do fantástico e do maravilhoso.

Negra e de origem humilde, é desse lugar que Conceição fala. Nascida em Belo Horizonte, a escritora superou as dificuldades materiais da infância, conciliando os estudos com o trabalho até formar-se professora, mestre e doutora em literatura. Sua obra está marcada por uma poética da alteridade comprometida com a crítica social, a história dos afrodescendentes, a ancestralidade cultural, ao lado de profundas reflexões sobre a mulher. Daí, seus protagonistas – Ponciá, Alírio, Maria, Davenga, Natalina – figurarem como porta-vozes de um coletivo marcado pela violência cotidiana perpetrada no asfalto e nas comunidades periféricas das grandes cidades: vítimas da mal disfarçada opressão ainda hoje imposta ao povo negro, e representadas de acordo com a melhor tradição da literatura da diáspora negra no Ocidente. A escritora situa seus dramas em meio a reflexões sobre raça e gênero, sem deixar sua literatura cair na cilada da idealização ou da militância.

Foi a admiração pela obra dessa autora, o reconhecimento de sua importância para a literatura brasileira, e o desejo de contribuir para divulgá-la ainda mais junto aos estudiosos e novos leitores, que nos levou a reunir estes textos.

O livro se estrutura em cinco partes, que se entrelaçam, dialogam e ampliam seus leques de significação, emergindo como instigantes suplementos de leitura. Alguns foram apresentados nos Colóquios Mulheres em Letras, que o Grupo de Pesquisa Letras de Minas organiza anualmente; outros foram incluídos com o propósito de revelar a diversidade de estudos e abordagens que a obra proporciona, ao compará-la com a de outros autores (e autoras) brasileiros e estrangeiros.

A primeira parte – “Diáspora e escrevivência: desafios da contemporaneidade” – trata de questões muito presentes nos congressos acadêmicos. Da prosa à poesia, o projeto da “escrevivência” acolhe o corpo negro feminino, seu ser e existir subalternos, suas vozes e atitudes. O estudo de Stelamaris Coser, “Circuitos transnacionais, entrelaçamentos diaspóricos”, é norteador neste sentido, pois situa com muita propriedade a obra de Conceição Evaristo no cenário da crítica nacional e estrangeira. Também os de Marcos Antonio Alexandre, Cristiane Côrtes, Juliana Borges, Luiz Henrique de Oliveira e Dalva Aguiar Nascimento acrescentam novas perspectivas e possibilidades de leitura.

A segunda parte – “Trauma e memória” – apresenta artigos que contemplam a temática do silêncio e do silenciamento, e dialoga intimamente com o citado projeto. Os textos de Simone Schmidt, Terezinha Taborda Moreira, Aline Deyques Vieira e Marcos Fabrício Lopes da Silva enriquecem a sessão ao trazer a discussão da memória e do trauma como aspectos de relevo na escrita de Evaristo.

A terceira – “Gênero e violência: lágrimas e insubmissão” – reúne artigos que evidenciam a coragem da escritora em tratar um tema pouco explorado na literatura gendrada. As reflexões aí reunidas – em especial de Natália Fontes, Simone Teodoro e Elisangela Lopes Fialho – tratam de apropriações e releituras do trágico, emolduradas pela brutalidade que vitima a mulher. E Laile Ribeiro de Abreu, Eduardo de Assis Duarte e Maria Inês de Moraes Marreco comparam com propriedade o texto evaristiano com os de Rachel de Queiroz, Rubem Fonseca e Paulina Chiziane.

A quarta parte – “O corpo negro em cena” – destaca a questão da afrodescendência e da negritude transcriadas em enredos de forte impacto, de onde emerge a trajetória do sujeito afro-brasileiro. Integram a seção o prefácio de Olhos d´água, assinado por Heloísa Toller; a reflexão de Aline Arruda sobre o erotismo; as leituras perspicazes de Maria do Rosário Alves Pereira, Imaculada Nascimento, Iêdo de Oliveira Paes e Adélcio de Souza Cruz, sobre personagens emblemáticas da obra de Conceição Evaristo.

O volume se encerra com “Em busca da magia da palavra”, de Assunção de Maria Sousa e Silva, que volta suas observações para Histórias de leves enganos e parecenças, e aborda a entrada de Evaristo pelo universo da magia e do sobrenatural. Trata-se, aliás, da concretização de um antigo projeto da escritora que, em mais de uma palestra mencionou a ausência da ficção científica e do realismo mágico na literatura afro-brasileira. Em seguida, o leitor encontrará indicações de fontes de consulta, bem como o rol de traduções e publicações.

No momento em que a escritora completa setenta anos intensamente vividos, acumulando mais experiências e sabedoria, entregamos este Escrevivências como contribuição à recepção crítica, e como homenagem por seu percurso vitorioso que amplia o mundo da literatura para outras mulheres negras.
 

Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem;
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
(Conceição Evaristo, “Da calma e do silêncio”).

 

Referência 

DUARTE, Constância Lima; CÔRTES, Cristiane; PEREIRA, Maria do Rosário Alves (Org.). Escrevivências: Identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo. Belo Horizonte: Idea Editora, 2016.

* Constância Lima Duarte é professora da Faculdade de Letras da UFMG, pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA e ao Centro de Estudos Literários e Culturais – CELC, desta instituição, além de coordenadora do grupo interinstitucional de pesquisa Mulheres em Letras. É autora, entre outros, de Nísia Floresta, vida e obra (2.ed., 2008), Dicionário de escritores mineiros (2010) e Imprensa feminina e feminista no Brasil, dicionário ilustrado (2016). Além de organizar inúmeras publicações, é responsável pelo resgate e reedição do livro pioneiro de Nísia Floresta Direitos das mulheres e injustiça dos homens (3. ed., 1989).

** Cristiane Felipe Ribeiro De Araujo Côrtes é Doutoranda em Literatura Comparada pela UFMG. Graduada em Letras, Especialista em Educação e Africanidades pelo CEAD, UNB, Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade (NEIA/FALE/UFMG) e do Grupo de Pesquisa Letras de Minas (FALE/UFMG); mestre em Teoria da Literatura pela UFMG e professora de Língua Portuguesa e Literatura do CEFET MG.

*** Maria do Rosário Alves Pereira é graduada em Letras, Mestre em Literatura Brasileira pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, da UFMG, com dissertação sobre Lygia Fagundes Telles. É doutora em Literatura Brasileira pela UFMG e professora do CEFET-MG.

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