Maria Firmina dos Reis por Rafael Balseiro Zin

Miguel Wady Chaia*

 

O presente livro, caro leitor, está estruturado em torno de dois encontros que imprimem significados e valores que poderão agraciar a sua leitura. O primeiro deles se deu a partir do contato de Rafael Balseiro Zin com os escritos de Maria Firmina dos Reis, ainda em seus anos de graduação. Após ter investigado a trajetória de vida e o paradigma ideológico do advogado abolicionista Luiz Gonzaga Pinto da Gama, que publicou suas Primeiras trovas burlescas de Getulino no mesmo ano em que a maranhense trouxe a lume o romance Úrsula, 1859, Zin se deparou com a presença de dois autores fundantes da literatura afro-brasileira.

A sensibilidade estética e o interesse do pesquisador pelas questões políticas que envolvem ser negro e escritor no Brasil do século XIX, consequentemente, foram afetadas por esse primeiro contato com um romance inaugural, que resultou na séria pesquisa e na densa reflexão presentes neste livro. A problematização de caráter social e artístico, assim, indicam o lugar adequado e específico da fala do autor para analisar o fenômeno Maria Firmina dos Reis, no bojo político, cultural, econômico e intelectual do Brasil dos oitocentos.

O segundo encontro é constituído pela confrontação entre uma forma de saber artístico e uma forma de conhecimento sociológico, uma vez que, aqui, temos a obra literária sendo analisada pelo olhar e pelos conceitos próprios das ciências humanas e sociais. O potencial gerado pela obra de arte é forte justamente por conter em si as relações sociais circundantes do seu tempo e por transmitir o sentimento do mundo – potencial este, aliás, constantemente perseguido por Carlos Drummond de Andrade em suas criações. O que se verifica neste livro, portanto, é o esforço do autor para se apropriar desses potenciais decantados pelos escritos de Maria Firmina dos Reis, simultaneamente municiado pela imaginação sociológica e pelo estabelecimento dos vínculos presentes na relação entre vida e obra.

Cabe ressaltar a longa e frutífera tradição no país – retomada constantemente pelo pesquisador ao longo de sua reflexão – dos estudos sociais, históricos e filosóficos embasados na literatura, formada consistentemente por trabalhos como os de Antonio Candido, Roberto Schwarz, Lilia Moritz Schwarcz, Norma Telles, entre tantos outros. Nesse sentido, este livro se apresenta como uma importante contribuição para os estudos na área de literatura e sociedade, além de ampliar o horizonte para o debate sobre a presença e a participação da população negra na história do país.

Considerando esses dois encontros, verificamos que o livro junta os fios condutores entre o passado e tempo presente da vida brasileira, tecendo uma necessária avaliação crítica da nossa história política e indicando a urgência e a pertinência de se colocar no lugar certo a contribuição orgânica dos afrodescendentes para a formação do Brasil. Ao mesmo tempo, Rafael Balseiro Zin aborda a complexa e instigante história de Maria Firmina dos Reis, que, resistindo como pôde e se valendo das tensões contidas na relação entre ser escritora e ativista, mulher e negra, maranhense e brasileira, além de jornalista e professora, torna-se uma matriz explicativa do Brasil oitocentista pela força expressiva da sua arte e pela potência criativa que a sua própria trajetória de vida sugere.

Para alicerçar seus estudos, o autor ouviu as “falas” da maranhense contidas em seus escritos para então realizar uma leitura mais ampla de sua obra ficcional. Paralelamente a isso, trabalhou os textos como dispositivos literários embebidos nas circunstâncias políticas e sociais do Brasil da segunda metade do século XIX, baseando-se na análise interna e nas relações desses mesmos textos com a história, localizando os marcadores de sua pesquisa, tais como as noções de abolicionismo, preconceito étnico, discriminação racial e de gênero.

Trata-se, sem dúvida, de incluir a produção literária de Maria Firmina dos Reis e o percurso de sua vida na perspectiva da arte como forma de resistência, além da arte como forma de conhecimento. Até porque, a escritora gerou um conjunto de ideias até então embrionárias e que, hoje, inegavelmente, constituem a constelação do pensamento político maranhense e brasileiro, fato confirmado por Zin neste estudo, de maneira sistemática e consistente. Por meio de uma abordagem sociológica, que se mistura às perspectivas política e histórica, o autor imprime sentido às forças que estavam em combate no Brasil do século XIX, tomando os escritos da maranhense como objetos de sua análise. Vale notar que o pesquisador adota um olhar crítico da sociedade brasileira, porém sensível, uma vez que seu tema exige um método adequado das ciências sociais para tratar das questões raciais e de gênero, trazendo uma contribuição inovadora para se compreender esse período específico da nossa história e suas graves tensões.

Percorrendo esse caminho, Rafael Balseiro Zin nos apresenta uma escritora caleidoscópica, que gerou múltiplas facetas em sua trajetória e que reafirmou a importância e a grandeza da consciência crítica para a consolidação da sua condição de artista, mulher e negra, em pleno Brasil oitocentista. As reflexões contidas no livro, assim, podem ser tocadas pela nossa percepção de leitor, no sentido de se resgatar o legado firminiano e seus ensinamentos. Digo percepção, pois toda a análise e escrita de Zin têm a paixão acompanhando sua abordagem sofisticada e imbuída de racionalidade estética e sociológica.

Não menos importante, ao consultar e buscar os sentidos na história, o pesquisador não somente passa do regional maranhense para o nacional brasileiro, como também constrói uma ponte dos anos mil e oitocentos para os dias de hoje, indicando a permanência de desigualdades sociais e econômicas que são estruturais em nosso país e a urgência de se abordar tais questões, para que possamos, inclusive, vislumbrar dias melhores.

Finalmente, vale frisar que, se o conjunto da obra de Maria Firmina dos Reis teve a sua primeira recuperação somente a partir da década de 1960, o começo do século XXI tem se revelado como um momento frutífero de retomada dos trabalhos que se dedicam a analisar a vida e a obra dessa escritora pioneira, com diversas pesquisas já concluídas, além de outras em andamento. Por essa razão, o autor também nos oferece, ao final do livro, na parte destinada às referências, um rol das obras da maranhense reeditadas recentemente e uma listagem atualizada das dissertações e teses que exploram aspectos específicos de sua trajetória de vida e de sua produção literária – iniciativa, essa, mais que bem-vinda, uma vez que repõe na atualidade a fortuna crítica dedicada à autora e a relevante produção intelectual em torno do seu nome. E assim, caro leitor, revisitar os contextos político, cultural, econômico e intelectual do Brasil do século XIX, como este livro se propõe, torna-se uma oportunidade ímpar para aqueles que buscam recompor a história, dela participar e, também, ampliar o seu conhecimento acerca de uma das personalidades mais interessantes da literatura brasileira. Quanta grandeza encontramos na mulher negra e escritora Maria Firmina dos Reis.

Referência

ZIN, Rafael Balseiro. Maria Firmina dos Reis: a trajetória intelectual de uma escritora afrodescendente no Brasil oitocentista. São Paulo: Aetia Editorial, 2019.

 


* Miguel Wady Chaia é professor do Departamento de Política e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, além de coordenador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (Neamp/PUC-SP).


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