Erguendo a voz: transformando o silêncio em revolução

 Cátia Maringolo*

 

 

 [...] neste livro
eu estava fazendo as coisas
de outra maneira,
e o que me atrasava
tinha a ver com a revelação,
com o que significava revelar
coisas pessoais.
Na própria construção deste livro,
erguer a voz,
como apresentado no primeiro ensaio,
é a explicação para meu incômodo,
minha relutância.
Tem a ver com revelar o pessoal.
Tem a ver com escrita — com o que significa dizer as coisas no papel.
Tem a ver com punição — com todos aqueles anos da infância em diante, quando me machucaram
por eu dizer verdades,
por falar do ultrajante,
falar do meu jeito chocante,
indomável e sagaz,
ou com
“temos que ir tão fundo assim?”,
como às vezes
questionam os amigos.

(hooks, 2019, p. 24)

 

O livro Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra de bell hooks, uma das mais importantes pensadoras feministas, críticas e teóricas negras, é a segunda publicação de três outras lançadas em 2019 pela editora Elefante, uma editora independente localizada na cidade de São Paulo[1]. O livro, publicado originalmente em 1989, contém 24 capítulos que versam sobre estudos feministas, autorrecuperação, educação como prática da liberdade, militarismo, pedagogia, além de trazer também entrevistas.

Já conhecida do público brasileiro, apesar das poucas traduções, tendo em vista a enorme produção bibliográfica, bell hooks é considerada uma das mais proeminentes e ativas vozes dos movimentos feministas e cujas produções e pensamentos ultrapassam as fronteiras estadunidenses, encontrando ouvidos nos mais diversos espaços e para um público das mais diversas origens, idades, dentro e particularmente fora dos muros da academia. hooks é, de fato, uma das mais lidas e estudadas pensadoras contemporâneas feministas: perceptível pelo aumento no número de traduções em língua portuguesa, porém em particular pela proliferação de seus textos e escritos que podem ser encontrados em artigos acadêmicos e nas diversas páginas, blogs e espaços das redes sociais.

Tendo publicado até o momento mais de trinta livros (individuais e em colaboração) que versam de temas amplos como crítica feminista, masculinidade, literatura infantil, raça, gênero, artes visuais, mídia, amor, educação, hooks inicia sua produção com a publicação de um livro de poemas And there we wept: poems [E lá choramos: poemas], em 1978, seguido do icônico estudo crítico feminista Ain’t I a woman: Black women and feminism [Eu não sou uma mulher: mulheres negras e feminismo] de 1981, e ainda sem tradução para o português.

O livro Ain’t I a woman inaugura e, de certo modo, traça um delineamento dos assuntos que seriam tratados posteriormente pela autora nas obras que seguiram: sua preocupação com uma crítica, prática e teoria feministas, que se estabelecem a partir da percepção interligada de raça e gênero (ênfase constantemente feita pela autora em suas publicações: apontando a dificuldade do feminismo preconizado por mulheres brancas, em particular, mulheres brancas privilegiadas, de assumirem a opressão de gênero como mais preponderante e urgente, sem observarem as opressões de classe e também de raça, categorias que muitas das vezes são esquecidas ou negligenciadas) e o interesse de hooks por educação, como presente em Ensinando a transgredir. Influenciada fortemente pelo pensador e educador brasileiro Paulo Freire, hooks acredita em uma educação como ferramenta emancipatória e libertária, enfatizando seu caráter transformativo e transformador.

Erguer a voz, como afirmado pelo trecho acima, introduz de maneira mais contundente uma radicalização em noções como público e privado; entre discursos subjetivos e objetivos, entre o biográfico e o acadêmico, entre escrita acadêmica e científica e reflexões pessoais. Neste livro, hooks estabelece importantes considerações sobre pensamento feminista e pensamento negro a partir de suas experiências como uma mulher negra nascida em 1952 no sul dos Estados Unidos, proveniente de uma família pobre da classe trabalhadora.

Tendo nascido ainda durante o período de segregação, bell hooks reflete sobre sua formação escolar, sobre o contato com autoras e autores negros ainda criança e a importância destes em sua formação e conscientização crítica. Discorre sobre seus sonhos de ir para a faculdade, sobre as dificuldades de ser uma mulher negra estudando em universidades dessegredadas nos anos de 1970, sobre se encontrar distante de familiares e de sua comunidade, sobre os desafios, dilemas e barreiras encontradas por pessoas provenientes de grupos oprimidos, em particular mulheres negras.

As experiências descritas no livro reverberam mundo afora e tocam profundamente minha experiência também como mulher negra brasileira acadêmica e educadora vinda de uma família da classe trabalhadora. A sensação de não estar sozinha e a urgência de se caminhar do silêncio para a fala, a urgência de se erguer a voz, como constantemente retomado no livro por hooks, me incita a me erguer e a transformar silêncios que me foram impostos em ação e revolução.

A autora demonstra sua preocupação também com a importância de as pessoas brancas se educarem e abordarem seus privilégios, para não serem somente não-racistas, mas essencialmente antirracistas (como nos adverte Angela Davis). Além disso, adverte sobre as intricadas e complexas relações de poder, sobre os perigos de se reproduzir opressão e exclusão, dizendo que

É preciso lembrar, enquanto pensarmos criticamente sobre dominação que nós todos temos a capacidade de agir de maneiras que oprimem, dominam, machucam (seja esse poder institucionalizado ou não). É preciso lembrar que, primeiro, precisamos enfrentar o opressor em potencial dentro de nós — precisamos resgatar a vítima em potencial dentro de nós. Caso contrário, não podemos ter esperança de liberdade, de ver o fim da dominação. (hooks, 2019, p. 60)

Ao demonstrar o potencial opressor em cada de um nós, a autora afirma a importância de tomarmos cuidado para não reproduzirmos a opressão, em suas mais variadas facetas, partindo das relações familiares, dentro de nossas casas, onde muitas vezes exercemos posições de poder, consequentemente oprimindo e machucando — mesmo acreditando estarmos criando e cuidando de nossas filhas e filhos para o mundo, no final das contas estamos muitas das vezes ensinando sobre quem pode e quando pode falar, sobre quem merece ser ouvido. O mesmo nas relações íntimas e/ou amorosas, quando machucamos e inferiorizamos ou somos feridos e oprimidos pelas pessoas com quais nos relacionamos. hooks fala das situações familiares e íntimas em que somos machucadas, feridas e punidas, por falar sem termos permissão, por falar aberta e corajosamente, por “erguer a voz”, nos colocando em posição de igualdade e desafiando relações de poder.

 Sobre o silêncio, a autora nos diz que ele surge como uma “estratégia de sobrevivência”, pois “muitos indivíduos de grupos oprimidos aprendem a reprimir ideias, especialmente aquelas consideradas opositoras. Da escravidão em diante, as pessoas negras nos Estados Unidos aprendemos a nos resguardar em nossa fala. Dizer a coisa errada podia levar à punição severa ou à morte.” (hooks, 2019, p. 327). Assim, erguer a voz se torna um modo de transitarmos da posição de objetos para sujeitos, de nos libertarmos.

No livro Feminist theory: from margin to center [Teoria feminista: da margem ao centro] publicado em 1984, a autora fornece uma definição que me foi muito cara e que acredito ser extremamente pertinente e, ao mesmo tempo, revolucionária. No livro afirma que feminismo é um movimento cuja finalidade é acabar com o machismo/sexismo, a exploração e opressão sexista. É uma definição que implica reconhecer as opressões machistas e cujo objetivo último é acabar com as exclusões.

Falando sobre as dificuldades em juntar as partes do livro, materializá-lo, a autora comenta tanto sobre a importância e a necessidade de falar, de erguer a voz, de responder, quanto de relatar experiências pessoais e as implicações dessas para o pensamento, crítica, teoria e prática feminista e negra, como também sobre a importância de se nomear, de se autonomear, sobre estabelecer os parâmetros a partir dos quais relatar nossas experiências, sobre a relação entre a vida pessoal e práticas feministas, indo de encontro a preceitos teóricos e acadêmicos que pregam a objetividade e neutralidade do discurso científico. hooks enfatiza a todo o momento que o pessoal é político no sentido de que as vozes e as falas de mulheres negras reverberam e desestabilizam discursos racistas camuflados de verdades científicas e acadêmicas e aponta que o combate ao silêncio e ao silenciamento remonta a uma fala ancestral.

Para mim, nomear tem a ver com empoderamento — além de ser também uma fonte de tremendo prazer. [...] É uma forma de reconhecer a força vital em todo objeto. Frequentemente, os nomes que dou às coisas e às pessoas estão relacionados com o meu passado. São maneiras de preservar e honrar aspectos daquele passado. Falar sobre reconhecimento ancestral dentro das tradições africanas é uma maneira de falar sobre como aprendemos com os povos que podemos nunca ter conhecido, mas que vivem em nós novamente. (hooks, 2019, p. 36)

Que possamos, enquanto mulheres negras brasileiras, falar e erguer nossas vozes contra a opressão e exclusão machista, contra o patriarcado e contra todas as formas de opressão e exclusão racista da supremacia branca. Que possamos juntas a partir da palavra, a partir das vozes de nossas ancestrais revolucionar nossos mundos, pois a palavra é força e resistência. Ergamos nossas vozes!

Belo Horizonte, setembro de 2019

Referência

HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Trad. Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.


[1] Pela editora Elefante foram publicados: Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie Borges. Prefácio de Rosane Borges. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução de Cátia Maringolo. Prefácio de Mariléa de Almeida. Anseios: raça, gênero e políticas culturais. Tradução de Jamille Pinheiro. Prefácio de Luciane Ramos Silva. Publicados anteriormente: Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2ª edição. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla, Editora Martins Fontes, 2013.  O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Tradução de Ana Luiza Libânio. Editora Rosa dos Tempos. 4 edições.

 * Cátia Cristina Bocaiuva Maringolo é professora de Língua e Literaturas de Língua Inglesa. Mestre em Estudos Literários pela UNESP/FCL e doutoranda em Letras: Estudos Literários pela UFMG. Traduziu, entre outros, Erguer a voz, de bell hooks e Our Nig, de Harriet Wilson (no prelo), considerado o primeiro romance publicado nos Estados Unidos por uma mulher negra.

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