Apresentando Pensadores negros – pensadoras negras: Brasil séculos XIX e XX

Harion Custódio*

Lá vem o navio negreiro
Com carga de resistência
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de inteligência
(Solano Trindade)

 

Eis que no ano de 2016 o arquivo dos estudos afro-brasileiros se enriquece ao ser publicado o vigoroso livro Pensadores negros – pensadoras negras: Brasil, séculos XIX e XX. Organizado por Sidney Chalhoub – professor titular no departamento de História da Universidade Estadual de Campinas e autor de Machado de Assis, historiador (2003) – e Ana Flávia Magalhães Pinto – doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas, autora de Imprensa negra no Brasil do século XIX (2010) –, a obra consolidou-se primeiramente a partir dos esforços do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (NEAB – UFRB) que pelo seu vistoso trabalho e atuação no campo da pesquisa sobre questões étnico-raciais no Brasil, foi escolhido em edital da Coleção UNIAFRO1 para compor a referida organização.

O livro, como nos diz Chalhoub e Ana Flávia na apresentação, “faz parte de uma gama variada de esforços do governo federal e de setores da sociedade civil para fortalecer a implementação das Leis n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008” e tem como objetivo primário a “formação acadêmica de nossos professores”.2 Vale ressaltar, também, que Pensadores negros – pensadoras negras, pode (e deve) ser apreciado por qualquer um que se interesse por temas associados à história do negro brasileiro, dado o alto teor de qualidade e inteligibilidade dos textos que compõem a organização.

Cada um dos textos (vinte ao todo, sendo dezenove artigos e uma entrevista) se atém ao estudo sobre um(a) pensador(a) negro(a) dos séculos XIX e XX. Os capítulos possuem propriedades biográficas e analíticas, isto é, apresentam detalhes sobre a biografia e trazem reflexões sobre algum detalhe da obra do(a) pensador(a). Doravante, procurarei descrever brevemente o que cada texto traz de específico. Para isso, dividirei o livro em três grupos: o primeiro dedicado aos intelectuais cuja principal atuação foi durante o período escravista; o segundo para os autores que foram mais ativos no pós-abolição imediato, isto é, final do século XIX e início do século XX; por último, aqueles cujo ápice do pensamento se deu a partir de meados do século XX.

“Cor e política no segundo reinado: o editor Paula Brito e o debate entre liberais e conservadores na imprensa do Rio de Janeiro (1840-1850)” é o artigo que abre o livro. Nele, Rodrigo Camargo de Godoi discute sobre o papel de Francisco de Paula Brito na contribuição para a imprensa de sua época, além de dar início a uma imprensa negra brasileira. Nascido em 2 de dezembro de 1809, na cidade do Rio de Janeiro, Paula Brito foi livreiro, editor, tipógrafo, jornalista e poeta. Filho de pais pobres, mas que conseguiram liberdade em vida, o editor foi alfabetizado por seu avô materno. Com a carreira consolidada e dono de uma importante tipografia no Rio de Janeiro, Paula Brito editou e publicou o jornal O homem de cor, que durou entre 14 de setembro a 4 de novembro de 1833 e veiculava ideias antirracistas. Em um de seus volumes, escrevia, possivelmente, Paula Brito, (pois os artigos não eram assinados devido às perseguições realizadas pelo império da época): “não há um representante das nossas cores, dos Empregos Públicos, e de toda parte nos excluíram”.3 Em alguns de seus escritos, jornalísticos e poéticos, o editor denunciava o tráfico ilegal de africanos e a exclusão de cidadãos de cor dos tecidos “elevados” da sociedade. Cabe ressaltar que Paula Brito era associado ao Partido Conservador e proprietário de mão de obra escravizada. Com todas as contradições possíveis, o poeta se envolvia em profundas discussões políticas por meio de seus escritos.

O envolvimento em questões políticas é marcante ao se tratar de pensadores e pensadoras negras. Apesar de diferentes modos de abordar a questão racial e sua relação com a sociedade, reflexões e constatações sobre o ser negro no Brasil, por consequência, na política, são indissociáveis das produções dos intelectuais e artistas negros. Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama, Machado de Assis e José do Patrocínio foram escritores oitocentistas que, em suas particularidades, contribuíram para a formulação de campos de estudo e conhecimento sobre o negro brasileiro, assim como na formação de uma tradição militante – ressalto, cada um a seu modo – abolicionista, antirracista, em prol da emancipação do sujeito negro, a fim de recuperar e afirmar sua humanidade.

Em “Maria Firmina dos Reis: na contracorrente do escravismo, o negro como referência moral”, Eduardo de Assis Duarte traz ao leitor aspectos da vida e obra da romancista maranhanse, mulher negra e liberta, nascida em 11 de outubro de 1825. Ao realizar uma contundente leitura do romance Úrsula, publicado em 1859, o pesquisador afirma:

Pela primeira vez em nossas letras, a África é tematizada e surge – para além de ser o cenário do sequestro –, como espaço de civilização em que o individual e o comunitário se harmonizam, em que se planta e se colhe, se casa e se fazem filhos, em que existem valores e sentimentos de família e de pátria. [...] outro espaço também surge pela primeira vez na literatura brasileira: o porão do navio negreiro.4

Trata-se de uma inovadora obra para a época em que foi escrita, pois tematizou e representou o processo da diáspora negra, conferindo ao negro protagonismo e aspectos humanizados, veiculando ideias antiescravagistas, contrariando os paradigmas racistas e escravocratas da época. Além disso, “Maria Firmina dos Reis desconstrói igualmente uma história literária etnocêntrica e masculina”,5 nas palavras do autor do texto.

Machado de Assis, por sua vez, foi outro literato e homem de imprensa negro cuja obra foi inovadora e até mesmo estabeleceu um marco na literatura brasileira. Sua obra literária, marcada por sofisticados efeitos de linguagem, como a ironia e a sátira, e um viés dissimulado, dificulta com que sejam apreendidos explicitamente argumentos que permitam identificar uma posição do escritor em relação ao negro brasileiro. Para quem recusa em aceitar a crítica de Machado ao “mundo branco” da época – escravismo, darwinismo social, eugenia, preconceito –, em “Escravidão e racismo em obras de Machado de Assis”, Sidney Chalhoub nos apresenta argumentos infalíveis sobre o trabalho do escritor em contrariar e criticar os fundamentos do modus operandi do sistema patriarcal escravista em sua obra literária, assim como demonstra sua atuação enquanto funcionário do Ministério da Agricultura em prol da libertação dos escravizados.

Luiz Gama, por sua vez, utilizou de outras estratégias ao combater o racismo e a escravidão, isso é o que nos mostra o artigo de Elciene Azevedo, intitulado “‘Se negro sou, ou sou bode, pouco importa, o que isso pode?’: inclusão e cidadania na pena de Luiz Gama”. Um dos ícones de luta dos movimentos negros contemporâneos, Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em Salvador em 21 de julho de 1830. Filho de Luiza Mahin e de um abastado fidalgo português, Gama teve uma biografia singular e extraordinária. Vendido pelo próprio pai após sua falência, o poeta e militante consegue a duros passos conseguir sua liberdade e se tornar amanuense da Secretaria de Polícia de São Paulo, em 1856. Ali travou contato com figuras de setores da elite paulista e estuda por conta própria matérias de advocacia. Nesse ínterim, publica Primeiras trovas burlescas de Getulino, em que aborda explicitamente temas relativos à sua cor e cria uma narrativa poética contra-hegemônica ao criticar o racismo e os processos de branqueamento vigentes na sociedade brasileira. Conseguindo se tornar um eminente advogado autodidata, na época chamado de rábula, Luiz Gama foi responsável direto pela liberdade de aproximadamente quinhentos escravos.

Outra figura abolicionista de crucial importância cujo tom de ativismo e eloquência era próximo ao de Luiz Gama foi José do Patrocínio. Com uma biografia igualmente árdua, nascido em 8 de outubro de 1854, foi filho de um cônego e uma quitandeira liberta. O capítulo “José do Patrocínio: abolição, racismo e uma pedra no caminho chamada Sílvio Romero”, escrito por Ana Flávia Magalhães Pinto, foca principalmente nas polêmicas entre Patrocínio e o historiador eugenista Sílvio Romero. Na ocasião do casamento de Patrocínio com uma moça branca, Sílvio Romero aproveitou o evento para atacar, sob falsa identidade, o jornalista negro por meio dos periódicos conservadores Revista Brazileira e O Corsário, desaprovando e criticando o casamento inter-racial. Patrocínio, influente homem de imprensa e republicano, rebateu os argumentos do historiador publicando artigos na Gazeta da tarde, jornal de cunho abolicionista do qual Patrocínio foi eleito diretor no ano de 1881.

O artigo “André Rebouças e o pós-abolição: entre a África e o Brasil (1888-1898)”, escrito por Hebe Matos, realiza uma leitura das cartas escritas pelo engenheiro abolicionista nos seus cadernos de Registro de Correspondência, nos anos de 1891 e 1893, em que planejou e realizou sua viajem a África. Nascido em 13 de janeiro de 1838, foi filho do conselheiro Antônio Rebouças. Proveniente de uma pequena classe média negra bahiana, André recebeu escolaridade de qualidade e se formou em engenharia. Mesmo não pertencente às classes pobres, o escritor foi vítima de brutais preconceitos de cor, fato que motivou seu desejo de sair do Brasil. Encantado pelo ambiente moderno e tecnocrático do EUA, Rebouças viaja para o referido país da América do Norte, fugindo do ambiente hostil do Brasil oitocentista. Mesmo distante não deixaria de contribuir com artigos e textos jornalísticos contrários à criticando a escravidão. Desiludido com a realidade segregacionista norte-americana, o escritor viaja à Europa para pouco tempo depois realizar sua viajem pela África, tendo como destino final a África do Sul. Como nos deixa entrever em seu diário, Rebouças se decepcionou com a realidade colonial e do mesmo modo racista dos países dominados pela Europa. Sem pátria segura, o pensador auto exilado termina sua vida desencantado com os efeitos da modernização que os países colonialistas implementavam. Isso fez com que o intelectual desenvolvesse uma linha de reflexão sobre a dupla consciência do homem negro, aproximando-o de pensadores como W.E.B. Dubois, como nos diz a autora do artigo.

Dupla consciência, aliás, era o que descrevia o estado de todos os intelectuais negros do século XIX. Essa consciência de emparedamento, nas palavras do poeta Cruz e Sousa, que impede os negros de oportunidades e os afasta de uma humanidade. E disso tinha sabedoria Arthur da Rocha, como nos mostra Cássia Daiane Macedo da Silveira e Marcus Vinícius de Freitas Rosa no artigo “O voo de Ícaro: Arthur da Rocha e o mundo letrado na Porto Alegre do final do século XIX”. Nascido em 1859 e falecido no mesmo ano da promulgação da Lei Áurea, Arthur foi poeta, dramaturgo e jornalista. No periódico literário Álbum de domingo, o escritor desenvolveu um pseudônimo de nome K. Zeca, uma espécie de flâneur oitocentista que comentava sobre as festas e locais que frequentava, quase sempre dos setores da elite, e criticava as práticas racistas e preconceituosas inerentes a esses grupos. Escreve a singular peça José, cujo protagonista é um homem negro liberto que se esforça para conseguir a alforria de sua mãe. A peça reflete sobre os complexos sistemas de dependência e favoritismo que acometiam os negros libertos em relação aos seus senhores.

Outro grande crítico das políticas de dependência e favor, assim como das oligarquias foi Lima Barreto. Magali Gouveia em “Lima Barreto: dilemas e embates de um intelectual mulato na república dos Bruzundangas” nos mostra como o autor de Clara dos Anjos criticou a condição precária a que os negros foram relegados no pós-abolição, não havendo, portanto, uma inserção integral deles nos tecidos da sociedade. Lima também “se preocupou em combater o apagamento das memórias das lutas dos escravizados pela liberdade”6 em algumas de suas crônicas, além de “reivindicar o reconhecimento da contribuição expressiva dos segmentos populacionais de origem africana”7, como, por exemplo, a crônica “Macaquitos”, em que o autor rebate argumentos racistas de um jornal argentino sobre a seleção brasileira. Lima Barreto também foi crítico ferrenho do imperialismo norte-americano.

Outros dois escritores negros no período pós-abolição empenhados na luta antirracista e no resgate da história da luta dos negros brasileiros foram Manuel Querino e José Benedito Correia Leite. O primeiro, alvo da leitura de Sabrina Gledhill no artigo “De guerreiros a doutores negros: a contribuição de Manuel Querino”, nos apresenta aspectos da vida e obra do estudioso. Abolicionista, fundou o Partido Operário e a Liga Operária Bahiana. Dedicou grande parte da sua obra para lutar contra o silenciamento e embranquecimento da História Oficial, que excluía a contribuição do negro brasileiro na formação cultural, intelectual e social do país. Para isso escreveu O colono como fator da civilização brasileira (1918), negando os princípios da ciência e da hegemonia intelectual da época que colocavam o sujeito afro-brasileiro como inferior, e ainda o artigo “Os homens de cor preta na história” (1923).

Já o segundo (nascido em 1900), objeto da leitura de Medeiros da Silva com o texto “José Benedito Correia Leite e a rememoração de um passado coletivo”, foi uma importante figura para a consolidação dos primórdios dos movimentos negros brasileiros. Fundou os jornais Clarim da Alvorada e A chibata, ambos de cunho esquerdista e orientados pela luta contra o racismo. Correia Leite viveu em um contexto de associativismo negro, em que algumas associações ativistas de cunho afrocentrado e reivindicativo começavam a surgir pelo país. Na década de 1930, participou da Frente Negra Brasileira e, em 1947, ajudou a fundar a Associação dos Negros Brasileiros (ANB), que teve seu fim diante da repressão do contexto pós-1964.

Era um momento diferente para o negro brasileiro, que impunha novos desafios políticos e sociais no momento de repressão e autoritarismo do Estado Novo e, depois, do golpe civil-militar de 1964. Mas era também um momento de união e formação de uma rede de articulação de sujeitos que se reconheciam enquanto negros, que formulavam pensamentos e reivindicações políticas em torno da questão racial. É nesse contexto que vemos a atuação de Virgínia Leone Bicudo (1910-2003) e Maria de Lurdes Vale Nascimento que trazem para o debate racial a peculiaridade da situação das mulheres negras. “Os segredos de Virgínia: estudos de atitudes e preconceito de cor na São Paulo dos anos 1940-1950”, escrito por Janaína Damaceno, nos traz a história de vida de Virgínia Bicudo. Mestiça, a duras penas conseguiu se formar em Ciências Políticas e Sociais pela Escola Livre de Sociologia e Políticas (ELSP) em 1938. No mestrado, em 1945 defendeu a primeira tese sobre relações raciais no Brasil, “da primeira turma de pós-graduação em Sociologia do país, tendo como orientador Donald Pierson”.8 A tese se chama Estudos de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Participou, ainda, do projeto UNESCO, coordenado por Florestan Fernandes e Roger Bastide, com o trabalho Atitudes de alunos de grupos escolares em relação com a cor de seus colegas. Virgínia foi pioneira ao abordar o problema do racismo no meio infantil e educacional, e cunhou o termo “peso de cor”, para caracterizar o fenômeno que faz o negro introjetar os desejos do branco sobre si.

Já em “A hora da estrela: Maria de Lurdes Vale Nascimento e as ‘amigas leitoras’ do jornal O Quilombo”, escrito por Giovana Xavier, tomamos conhecimento sobre a atuação desta outra intelectual negra. Assistente social, jornalista e ativista social, a pensadora lutou contra o preconceito de cor e machismo vigentes na sociedade brasileira, e também no movimento negro. Entre 1948-1950, conduziu a coluna “Fala mulher” no jornal Quilombo, dirigido por Abdias Nascimento. Além disso, “foi precursora, ao lado de Ruth de Souza, Lea Garcia, Guiomar Matos e outras, da defesa da regulamentação do trabalho doméstico”.9 Foi responsável também pela “criação da Escola de Domésticas, do Abrigo do Negrinho Abandonado e do Jardim de Infância, Teatro Infantil, Teatro de bonecos”.10 Maria de Lurdes Nascimento foi pioneira ao reivindicar os direitos das trabalhadoras domésticas e relacionar a predominância de cor a tal ofício aos efeitos da escravidão.

A partir do décimo terceiro capítulo, o livro toma uma outra proporção ao trazer para a cena autores cuja produção intelectual e artística se robustece a partir de meados do século XX, chegando a atravessar os momentos do golpe civil-militar de 1964. É nesse contexto que surge a teoria do Quilombismo de Abdias Nascimento, como podemos ver em “Abdias do Nascimento: teatro, revolta e quilombismo na organização do ativismo negro no Brasil”, escrito por Márcio Macedo. Desiludido com a ideia de democracia racial, mito que, quando jovem, acreditava que seria possível se consolidar, o criador do Teatro Experimental do Negro e do jornal Quilombo, passa a interpretar a ideia de democracia racial como uma falsa ideologia, “uma representação fantasiosa da realidade que mascara e justifica formas de opressão/exploração de um grupo sobre outro”11 e passa a adotar concepções próximas ao pan-africanismo e ao afrocentrismo, cuja base é a sua teoria do quilombismo. Realizou o I Congresso do Negro Brasileiro (1950), em que Ironides Rodrigues apresentou sua tese intitulada Estética da negritude, influenciado pelo movimento literário da négritude francófona. Vale ressaltar que o TEN foi uma inciativa de Nascimento a fim de trazer o negro para a cena teatral brasileira, cuja participação era nula.

Francisco Solano Trindade (1908) foi movido por movimento semelhante ao criar a primeira épica quilombola no poema “Cantares ao meu povo” em que o autor “da voz à história da diáspora africana. A narrativa dos episódios recupera a memória histórica, fala da resistência armada dos quilombolas e de uma vida em harmonia compartilhada pelos habitantes do Quilombo dos Palmares”,12 em que o eu-lírico é o próprio Zumbi. Isso pode ser conferido no artigo “Solano Trindade: o poeta do povo”, escrito por Elio Ferreira.

Nesse contexto, as mulheres voltam a ser alvo de estudo. Carolina Maria de Jesus é alvo das considerações de Conceição Evaristo em “Carolina Maria de Jesus: como gritar no Quarto de despejo que ‘black is beautiful’?”. Diversos estudiosos argumentam que Carolina havia se omitido de tratar da questão racial em suas obras. A autora, então, refuta, ao dizer que apesar das escassas evidências explícitas, a expressão da negritude da escritora de Memórias de bitita pode ser abstraída pela própria escrevivência da mulher negra traduzida em seus textos. A mulher negra e subalterna fala a todo momento, pois a sua escrita é resultado de sua experiência de vida.

Aliás, outra intelectual que reflete sobre questões da subjetividade negra é Beatriz Nascimento. Por meio do artigo de Christen Smith, “Lembrando Beatriz Nascimento: quilombos, memória e imagens negras radicais”, passamos a conhecer mais sobre o trabalho da historiadora. Nascida em 1942, concluiu seu bacharelado na Universidade Federal do Rio de Janeiro e se pós-graduou pela Universidade Federal Fluminense. Foi uma ativista importante no Movimento Negro de meados do século XX e realizou suas ações políticas em torno da cultura afro-brasileira. Sua principal contribuição foi em relação ao conceito de quilombo e como ele pode ser aplicado ainda nos dias de hoje. Para ela, “os quilombos são espaços autônomos de libertação definidos por sua continuidade histórica [a vida do homem]”.13

Outra teórica negra de extrema importância para a intelectualidade brasileira foi Lélia Gonzalez (1935). Militante do MNU e professora universitária, podemos saber mais sobre sua biografia no artigo “A perspectiva interseccional de Lélia Gonzalez”, escrito por Flávia Rios e Alex Ratts. Vale ressaltar aqui uma importante contribuição da pensadora ao formular o conceito de amefricanidade, “construção original de uma categoria transnacional, capaz de abarcar a diáspora negra nas Américas”,14 isto é, uma categoria de análise antropológica que leva em conta as idiossincrasias dos povos negros e indígenas das américas. Gonzalez foi também feminista interseccional, pois reconhecia as opressões de classe, gênero e raça como interligadas.

Milton Santos é outro renomado intelectual brasileiro cujo pensamento se reverberou ao redor do mundo. O artigo “Milton Santos: um corpo estranho no paraíso”, de Diogo Marçal Cirqueira, traz à discussão como o geógrafo abordou sua negritude. Com referências escassas em sua obra teórica, o autor recorre à história de vida de Santos e identifica em sua ascensão familiar uma tentativa de assimilação e adaptação ao mundo branco burguês, o que fez com que se distanciassem do mundo negro. Apesar disso, mesmo frequentando os círculos da burguesia branca, Milton Santos, por diversas vezes, era inferiorizado, tendo sua humanidade negada e até mesmo impedido de frequentar certos lugares devido a sua cor. O pesquisador criou, então, o termo “cidadania mutilada” para se referir à realidade do negro brasileiro: pois por mais elevada que seja a sua situação econômica, a sua corporeidade negra funciona como uma marca que permite o identificar enquanto “ser inferior”, o que inviabiliza a prática de uma cidadania plena.

O mundo do samba é um reduto de resistência para o negro brasileiro, um quilombo, como diria Beatriz Nascimento. “Candeia e o Anjo Moreno”, escrito por Maria Clementina Pereira Cunha, nos traz essa faceta de luta, analisando a contraditória e conturbada história de Candeia (1935), sambista que foi um truculento policial antes de se tornar paraplégico depois de ser baleado em uma briga. Candeia era adepto das práticas culturais afro-brasileiras. Frequentava escolas de samba e visitava terreiros de candomblé. Criou uma escola de samba intitulada GRES Quilombo, que tinha como objetivo resgatar o samba tradicional, em contrapartida ao novo cenário cultural da década de 60 com influências do EUA. Candeia representa o negro de forma não racista, a ressaltar sua contribuição fundamental para a história do país, entretanto parte de um viés influenciado pela democracia racial. O artigo de Pereira Cunha também nos mostra como o samba foi um lugar privilegiado de enfrentamento à ditadura civil-militar de 1964.

Por fim, temos a entrevista de Oswaldo de Camargo, que fecha o livro, realizada por Ana Flávia Magalhães Pinto e Mário Silva: “‘Quem é Oswaldo de Camargo?’ – A polêmica sobre Mário de Andrade e os impasses da legitimidade intelectual negra”. Nela, os entrevistadores indagam o escritor sobre um episódio em que Oswaldo teria descoberto uma foto de Mário de Andrade com feições explicitamente negras no Arquivo Nacional. A foto teria causado inquietação nos meios acadêmicos e polêmica na mídia brasileira. Alguns intelectuais negaram que era o escritor de Macunaíma, dentre eles o teórico Antonio Candido. Oswaldo de Camargo atribui o motivo dessa recusa não ao fato da possibilidade de a foto ser de outra pessoa, mas sim a uma resistência à afrodescendência de Mário.

Pensadores negros – pensadoras negras é uma obra de extrema importância para a epistemologia do negro brasileiro. Por meio dela podemos observar uma longa tradição de produção de conhecimento, ativismo e resistência afro-brasileira. É uma obra ruidosa, tanto quanto valiosa, que quebra estrondosamente o silêncio de nossa História Oficial. Seus textos deleitam e instruem, dada a qualidade dos argumentos e ideias. O âmbito acadêmico e educacional como um todo ganha mais uma fonte de pesquisa e aprendizado, assim como um suporte de luta, tão necessário em tempos de corte de direitos, perda de democracia e perseguições. Ao fim da leitura, é grande a sensação de satisfação, outrossim de indagações. Entre uma delas, permanece a seguinte: quais são os desafios, de agora em diante, dos movimentos negros contemporâneos, em face de tão complexa realidade?

 

Referências

CHALHOUB, Sidney; PINTO, Ana Flávia Magalhães. (Org.). Pensadores negros – pensadoras negras: Brasil séculos XIX e XX. Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016. 447 p.

1 O Programa UNIAFRO da Secretaria de Ensino Continuado, Alfabetização e Inclusão do Ministério da Educação (MEC), tem como principal objetivo a implementação da Lei n. 11.645/2008, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da História da África, da Cultura afro-brasileira e dos Povos Indígenas nos currículos da Educação Básica.

2 CHALHOUB; PINTO, 2016, p. 14.

3 BRITO, 1833, p. 4, apud CHALHOUB; PINTO, 2016, p. 27.

4 CHALHOUB; PINTO, 2016, p. 42.

5 CHALHOUB; PINTO, 2016, p. 53.

6 CHALHOUB; PINTO, 2016, p. 166.

7 CHALHOUB; PINTO, 2016, p. 175.

8 CHALHOUB; PINTO, 2016, p. 243

9 CHALHOUB; PINTO, 2016, p. 264.

10 CHALHOUB; PINTO, 2016, p. 265.

11 CHALHOUB; PINTO, 2016, p. 291.

12 CHALHOUB; PINTO, 2016, p. 349.

13 CHALHOUB; PINTO, 2016, p. 375.

14 CHALHOUB; PINTO, 2016, p. 389.

* Harion Custódio é graduado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade.

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