O desassossego do cotidiano em
Uma menina de cristal e outras crónicas, de Dina Salústio
Eni Alves Rodrigues*
O meu país chama-se Cabo Verde,
mas a ter outro nome seria Resistência.
As nossas literaturas dão conta disso.
São todas elas de resistência!
Dina Salústio
Dina Salústio (pseudônimo de Bernardina Oliveira), é poeta e prosadora, nascida em 1941, em Santo Antão, Cabo Verde. Foi professora primária, assistente social e jornalista em Portugal, Angola e Cabo Verde, além de sócia fundadora da Associação dos escritores de sua terra natal. No Brasil, integra a academia Sergipana de Letras. Dentre vários prêmios, citamos o prêmio de literatura infantojuvenil de Cabo Verde (1994),o Prêmio em Literatura infantojuvenil dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (2000), Prêmio Rosalia de Castro para a Literatura em língua portuguesa -PEN Galiza, Espanha (2016),Prêmio RDP África Literatura para a Lusofonia (2021). E, ao projeto de tradução de seu romance A louca do Serrano para a língua inglesa foi concedido o PEN Award England (2018).
Dina Salústio, como a maioria das mulheres do mundo, especialmente as cabo-verdianas, sofreu com as dificuldades de ser publicada. Mesmo as lutadoras nos movimentos intelectuais pela independência de seu país, ficaram de fora de diversas publicações da época, como a Revista Claridade, sendo a precursora da literatura cabo-verdiana de autoria feminina Orlanda Amarílis, já em 1962.
Apesar de todos esses percalços, Dina Salústio tem uma rica produção literária, sendo suas principais obras: Mornas eram as noites, contos; A louca de serrano (1998) e Veromar (2019), romances; os livros infantis A estrelinha tlim tlim e Que os olhos não vêem, dentre outros. Na poesia, vemos sua participação em Mirabilis de veias ao sol: antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos e Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX.
Essa memorável autora de vários livros infantis lança, em 2023, Uma menina de cristal e outras crônicas, composta por 29 narrativas, a maioria publicadas no jornal Expresso das Ihas, entre outubro de 2019 e fevereiro de 2022, ou seja, muitas delas escritas durante a pandemia de Covid-19. A organização da coletânea não foi feita por temas ou capítulos. Na apresentação da obra encontramos a justificativa para tal decisão:
A opção mais premente foi sem dúvida juntar os textos sobre a pandemia num capítulo independente, mas o efeito, fosse visual ou auditivo, pareceu-me algo contranatural, porque o nosso quotidiano não é feito de blocos selados ou vasos estanques, mas sim de situações que se interligam, se influenciam ou apenas convivem temporariamente e a alma ou a literatura têm essa característica única de permitir o júbilo ao lado do desassossego, a alegria a par da saudade, a leveza unida ao constrangimento . Tudo porque somos, afinal, ou sim ou não, o dia e a noite, a onda e a calmaria (Salústio, 2023, p.10).
Nessa pretensa desordem, uma organização interna pode ser percebida desde a primeira crônica – “Uma menina de cristal” – que dá título à obra: a presença do feminino e da ambivalência de sentimentos bons e maus, afinal isso é ser humano. O cotidiano das mulheres pelo mundo, especialmente no continente africano (não apenas das cabo-verdianas) também é percebido em muitas das narrativas, como por exemplo em “Uma mulher única”, na qual a autora trata do lugar das irmãs mais velhas na realidade de seu país. No referido texto temos uma
[...] homenagem para essas filhas de corpos magoados e de almas inquietas que com o seu esforço contribuem para que a vida nas ilhas funcione, obrigadas a esquecer seus direitos e sua infância, desistindo de lutar pela sua história a favor das crianças mais jovens (Salústio, 2023, p.19).
Nessa crônica, vemos os espaços atribuídos às mulheres se reproduzindo desde cedo, limitando os sonhos e as mudanças, reservando para aquelas que buscam fazer diferença o papel da resistência. Ao refletir sobre tradições que cerceiam as mulheres africanas, encontramos nas crônicas "África, há mais futuro para lá da ajuda" e "Hoje sou uma menina do Sudão" a persistência da mutilação genital feminina, um tema ainda muito presente. A autora argumenta que "a África só será livre quando suas mulheres tiverem liberdade e dignidade" (Salústio, 2023, p.24), alinhando-se com bell hooks e suas reflexões sobre o feminismo negro em E eu não sou mulher?, destacando como a exploração sexual contra mulheres negras moldou estereótipos prejudiciais e alimentou mitos racistas e sexistas. Além disso, ela ressalta como o feminismo ocidental negligencia as mulheres subjugadas pelo patriarcado sob o disfarce da tradição, que continua a impor culpa, vergonha, dor e escravidão às meninas africanas.
Partindo para o contexto da Covid-19, no qual a obra foi produzida, crônicas como “Murmúrios sobre a Covid-19”, “O beijo nos tempos da Covid-19”, “O que faz uma idosa na rua?”, “Estou em suas mãos” e “Vamos sobreviver”, trazem percepções sensíveis sobre o olhar, o contato, a solidão e, enfim, sobre decisões político-econômicas que definem quem pode (deve) morrer: “Em Cabo Verde, temos de escolher quatro ou três das nove ilhas povoadas, para terem mais um ventilador ou cama” (Salústio, 2023, p. 29). A pandemia de Covid-19 deixou clara a presença da necropolítica, conceito de Achille Mbembe, que revela como certos regimes políticos promovem a morte como instrumento de controle e poder.
Convém trazer à tona ainda traços de uma pesquisadora de literatura na escritora Dina Salústio, que podem ser notados em diversas crônicas, como por exemplo em “Plantei uma árvore, tenho um filho e escrevi um livro”, “Falar de amor sem truques”, “Os loucos da minha cidade” e “Vulcão ... o fogo dorme”. Nessas crônicas, os apontamentos sobre novas tecnologias, novos autores de Cabo Verde, sobre o ato de escrever, o que escrever, o tema a ser tratado e o que seria ou não digno de ser escrito são abordados. A escritora, na crônica “Plantei uma árvore, tenho um filho e escrevi um livro”, lembra-se das cabo-verdianas que jamais puderam escrever uma carta pra os filhos que emigraram, ao dizer: “em que ela [a avó] ficou menor se as histórias que contou ficaram gravadas como as viagens mais belas a ser ouvidas? Por que havia de se sentir frustrada por não ter escrito coisa nenhuma? (Salústio, 2023, p.56).
Um cotidiano entrelaçado com memórias da guerra pela independência de Cabo Verde, a vivência durante uma pandemia e inquietações sobre o papel da mulher cativam o leitor do começo ao fim. Na última crônica, encontramos o cerne que impulsiona a autora e o povo cabo-verdiano: a resistência. Dina Salústio expressa: "Se meu país não se chamasse Cabo Verde, seu nome seria Resistência" (Salústio, 2023, p.81.). Fica o convite a você para se envolver nessa jornada de significado e fruição em Uma menina de cristal e outras crônicas.
Referências
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Trad. Renata Santini. São Paulo: N-1, 2018.
HOOKS, Bell. E eu não sou uma mulher? Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.
SALÚSTIO, Dina. Uma menina de cristal e outras crónicas. [S.l]: Rosa de porcelana, 2023.
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* Eni Alves Rodrigues é Doutora em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Professora de Português e Inglês Instrumental na Universidade federal de Viçosa. Bibliotecária da Prefeitura Municipal de Betim-MG. Pesquisadora filiada a ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros) e à AMPIC (Associação Mineira de Pesquisa e Iniciação Cientifica). Integrante do Grupo de Estudo Estéticas Diaspóricas (GEED) desde 2015 e do Grupo de pesquisa Mikhail Bakhtin, desde 2023. Participa da Equipe de apoio do literÁfricas/UFMG, disponível em http://www.letras.ufmg.br/literafro/literafricas. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.