“Coração em África”, de Francisco José Tenreiro - poesia e manifestação participante[1]

                                                                                                                      

Maria Nazareth Soares Fonseca[i]


Quando Jean-Paul Sartre afirma, na introdução ao livro Imaginaire Langage – Identité culturelle, Négritude: Afrique, France, Guyane, Haïti, Maghreb, Martinique, de 1980, de Jacqueline Leiner, ser a identidade cultural um dos grandes dramas do Homem ocidental, no século XX, certamente estava se referindo a afirmações de intelectuais, artistas, escritores e filósofos ocidentais sobre a questão, mas, sobretudo, à discussão proposta por intelectuais e escritores como “Senghor, Césaire, Depestre, Laleau, Memmi, Fanon, Haddad, Brault e outros” (SARTRE, 1980, p. 3) sobre a obrigatoriedade de ser escrita em francês a literatura de seus países de origem. Todos os escritores mencionados por Sartre estavam conscientes do aprisionamento provocado pela obrigatoriedade de escreverem no idioma tornado língua oficial dos espaços colonizados pela França. Eles defendiam que a obrigatoriedade de uso da língua francesa, nesses espaços, era um dos problemas que precisariam ser resolvidos pelos escritores “d’au dela des mers” (SARTRE, 1980, p. 4). A questão discutida por Sartre está presente em vários textos críticos de Jacqueline Leiner, particularmente nos que discutem a linguagem literária de Aimé Césaire.

As considerações de Sartre, no texto referido, e as de Jacqueline Leiner indicam a adesão desses críticos franceses às manifestações que envolveram intelectuais, escritores e artistas negros na primeira metade do século XX, nos Estados Unidos e na França, sobre o sentimento de exclusão vivido pelos escritores oriundos de espaços colonizados. Embora esses escritores escrevessem seus textos em francês, não deixavam de questionar os valores encaminhados pela cultura europeia através de seus idiomas oficiais. Essa percepção fica explícita no modo como vários escritores antilhanos e africanos decidiram produzir literatura, forçando as línguas europeias levadas à África, às Antilhas e às Guianas, a assumirem o contexto em que as obras eram produzidas. A partir dessa tomada de consciência, a literatura produzida em espaços colonizados indicará o descompasso entre escrever em língua europeia e pensar em línguas africanas e antilhanas, por exemplo.

Jacqueline Leiner tratará dessa questão de forma mais vertical em textos em que discute o sentimento de exílio vivido por escritores oriundos de espaços colonizados[2], um desajuste que inspira o poeta haitiano Léon Laleau a escrever o famoso poema “Trahison”[3], em que explicita o sentimento de estar traindo a si mesmo, quando é obrigado a dizer em francês os sentimentos vividos por ele em línguas nacionais. A incompatibilidade gerada pelas políticas inibidoras da alteridade explicitaria os conflitos gerados pelo uso obrigatório da língua francesa, por exemplo, em espaços significados por línguas orais, pela oralitura. Nesse sentido, o incômodo revelado por Laleau será denunciado, em diferentes momentos, por escritores e escritoras de outros espaços colonizados, quando questionam os mecanismos de controle e de destruição da alteridade próprios do sistema colonial.

Referindo-se a esse sistema, o teórico Homi Bhabha (1998) ressalta que nele se registra uma extrema dependência do conceito de “fixidez” que fica demonstrado na construção ideológica da alteridade. Pensada “como signo da diferença cultural/histórica/racial no discurso do colonialismo” (BHABHA, 1998, p. 105), a fixidez torna-se, na visão do teórico indo-germânico, um modo de representação paradoxal, porque conota, ao mesmo tempo, rigidez e ordem imutável, mas também desordem, degeneração e repetição demoníaca.

Tais questões explicam o repúdio a determinações que visam a imobilizar o indivíduo numa visão que o perpetua como “objeto ou coisa” e que irá garantir a utilização do africano escravizado como ferramenta ou utensílio, necessários à execução do trabalho pesado. A desconstrução dessa visão está na base de movimentos que marcam a trajetória do homem negro na luta pelos seus direitos, no século XX. Pode-se dizer que é próprio desses movimentos a recusa de visões legitimadas pelo sistema colonial que transformam, simbolicamente, o colonizado em “un être parqué”[4], como dirá Frantz Fanon na obra Os condenados da terra (1961).

Em texto publicado em 1987[5], Jacqueline Leiner volta a considerar as expressões de repúdio ao aprisionamento do eu, quando, discutindo a poesia de Aimé Césaire, ressalta a importância da “palavra transgressora” na composição de poemas e textos literários nos quais a língua levada aos espaços colonizados é desestabilizada no interior dela mesma. A língua de domínio é forçada a produzir recursos criativos que a tornam, ao mesmo tempo, “destruidora da ordem das coisas e geradora de um movimento dinâmico de florescimento cultural”[6] (LEINER, 1987, p. 13).

A valorização da expressão literária do homem negro, construída na contramão das determinações impostas pelas normas colonialistas, estará concretizada na proposta da Negritude que surge, em Paris, no final da década de 1930 e que faz de Aimé Césaire criador e incentivador de uma escrita que assume o poder revolucionário do discurso. Propostas da Negritude foram acolhidas por escritores e escritoras africanos(as) de língua portuguesa, ainda que o movimento não tenha se estendido, formalmente, aos espaços colonizados por Portugal, no continente africano.

Deve-se considerar que o movimento da Negritude surge em decorrência da efervescência de ideias que circulavam em Paris, no final dos anos 1920 e por toda a década de 1930, fortalecendo-se, sobremaneira, com a tradução de textos de escritores e teóricos negros norte-americanos e com estudos sobre culturas africanas publicados na Europa que indicavam uma visão não exotizada das culturas da África. O envolvimento dos escritores e estudantes oriundos de diferentes espaços colonizados da África e das Antilhas com os anseios de liberdade e de resistência à dominação colonial que fervilhavam na capital francesa, sobretudo na década de 1930, contribuiu para que o movimento criado pelo martiniquense Aimé Césaire, pelo senegalês Léopold Senghor e pelo guianense Léon Damas se guiasse pela reabilitação de uma história sufocada pela ideologia colonialista. Além disso, propondo-se como um conjunto de valores culturais do mundo negro (SENGHOR, 1964, p. 9), a Negritude fortaleceu a conscientização sobre a real situação vivida pelos colonizados, em consequência da visão ideológica sobre a supremacia da cultura europeia sobre as demais. Na consolidação das ideias que circulavam entre os estudantes e escritores negros em Paris, o surgimento, em 1935, do jornal L’Etudiant Noir tem significativa importância, ainda que o neologismo “negritude” só venha a ser utilizado, mais concretamente, por Aimé Césaire, um pouco mais tarde, precisamente, em 1939.

Jacques Chevrier, (2008), ao retomar as principais inovações criadas pelos movimentos que caracterizam a década de 1930, na França, percebe que nelas estão fortemente demarcadas duas atitudes que ele define como recusa e reivindicação. A primeira atitude refere-se à rejeição da tutela ocidental pelos intelectuais negros que resistem à colonização das ideias e mentes. A segunda diz respeito à valorização das origens africanas, defendida pelos intelectuais negros residentes na Europa, sobretudo no período entre guerras. É importante considerar que tais atitudes têm ligação estreita com acontecimentos que marcam a história da Negritude, em sua primeira fase, e com o modo como se mostram, no movimento, as ideias que circulavam na Paris dos anos 1930. 

Dentre as atitudes aludidas por Chevrier, destaca-se a recepção das pesquisas desenvolvidas pelo etnógrafo francês Maurice Delafosse, autor de quatro livros sobre a África, publicados na década de 1920. Os livros de Delafosse refutam ideias até então difundidas sobre o caráter fetichista dos povos africanos e irão propiciar uma significativa mudança de comportamento entre os estudiosos de questões africanas. Ao considerar o fetichismo como uma manifestação do sagrado, Delafosse acentua a necessidade de se considerarem determinadas manifestações das culturas africanas a partir do contato direto com o contexto em que elas se manifestam.

O ponto de vista de Delafosse contribui para o enfraquecimento de visões preconceituosas formuladas sobre o continente africano e sobre suas complexas manifestações culturais. E, certamente, para que as visões preconceituosas sobre costumes africanos fossem postas em discussão, porque eram refutadas a partir de evidências obtidas através de pesquisas locais. A Negritude também absorveu as teses de Leon Froebénius, etnólogo alemão, autor da Histoire de La Civilisation Africaine (1936), elaboradas a partir de viagens e explorações realizadas na África ao longo de mais de trinta anos.

Tudo indica que os teóricos da Negritude tiveram contato direto com os estudos de Delafosse e Leo Frobénius, em Paris, e que as informações fornecidas por esses estudiosos sobre diversas culturas africanas motivaram uma tomada de consciência que está na base do pensamento negritudinista. As linhas mestras desse pensamento estão claramente definidas em textos de Aimé Césaire, sobretudo em “Négreries – Jeunesse noire et assimilation:”, publicado pela revista L’Étudiant noir, em 1935, e no poema épico e lírico “Cahier d’un retour au pays natal”, publicado, primeiramente em fragmentos na revista Volontés, em 1939, e em formato de livro, pela editora Présence Africaine, em 1956.

As propostas de Césaire, como teórico e como poeta, mostram-se, de forma mais concreta, no audacioso programa desenvolvido sobre a Negritude pela revista Tropiques, fundada por Aimé Césaire e Suzane Césaire, na Martinica, no período de 1941 a 1945. Ao procurar transgredir o código linguístico francês e o código poético vigente na literatura ocidental, Aimé Césaire, juntamente com seus colegas de movimento, procurou expandir as possibilidades de a linguagem poética funcionar como um mecanismo de ultrapassagem dos modelos literários então vigentes. Esse empenho que se efetivará, sobretudo, na produção poética de Césaire, será comentado por Pires Laranjeira (1995, p. 65), quando acentua o fato de os criadores da Negritude valerem-se da “experiência literária dos negros e negristas do continente americano, incorporando nos seus textos, dados e estilos que melhor podiam servir ao objetivo primeiro de criar uma literatura anti-colonialista”. 

Passada a fase tensa em que a produção literária negritudinista busca assumir, de forma coletiva, as lutas pela identidade cultural, pela valorização dos negros e das culturas africanas, outras atitudes, ainda que de forma individual, demonstrarão que os ecos das propostas da Negritude ainda se fazem ouvir. Embora muitos escritores africanos de língua portuguesa não tenham efetivamente participado da Negritude, vozes individuais, como a de Francisco José Tenreiro, de São Tomé e Príncipe, expressam uma adesão mais culturalista que política aos ideais do movimento, uma espécie de conciliação entre a África e a Europa, como acentua Pires Laranjeira (1995, p. 140). 

Elementos da temática negritudinista estão, por certo, em vários poemas de Francisco José Tenreiro, poeta de São Tomé e Príncipe. No poema “Mãos”, Tenreiro retoma a criatividade de Césaire exposta em “Cahier d’un retour au pays natal”, publicado, como já dito, em primeira edição, na revista Volontés, para celebrar o trabalho feito pelas mãos de africanos escravizados espalhados pelo mundo: “Mãos que da terra, da árvore, da água e do coração tam-tam/criasteis religião e arte, religião e amor” (TENREIRO, 1982, p. 104).

Mas é, sobretudo, em “Coração em África” que o poeta são-tomense irá demonstrar a assunção de recursos da poética negritudinista, ao mesmo tempo que expressa a adesão a criações das vanguardas europeias. O poema explora tendências do cenário cultural vivenciado por Tenreiro, em Portugal e na Europa, bem assume a defesa de uma reafricanização em que estavam empenhados os estudantes e intelectuais africanos na diáspora. O poema integra o livro Coração em África, publicado postumamente, em 1963, como parte da Obra poética de Francisco José Tenreiro

“Coração em África”[7], por suas características peculiares, tem significativa importância na história da literatura produzida por escritores africanos ou por descendentes de africanos na diáspora, durante o século XX. Se considerarmos a relação do poema com algumas feições artísticas e literárias das vanguardas europeias e da Negritude, sua importância fica ainda mais evidente. Motivado pela intenção do poeta de estar atento às manifestações de intolerância aos negros e da exclusão dos africanos do cenário literário europeu, o poema delineia um vasto painel de que fazem parte fatos tomados à realidade de várias partes do mundo e acontecimentos triviais do vasto panorama que alimenta a visão do poeta. A expressão “de coração em África”, repetida ao longo do poema, torna-se um indicador importante do modo como se dá a interação do olhar que apreende e observa cenários que, figurativamente, afetam esse olhar, induzindo o sujeito poético a se posicionar diante das cenas observadas. Tal recurso torna-se uma interessante estratégia de construção textual porque indica como os fatos tomados à realidade histórica e artística são assumidos pelo poeta (e pelo sujeito poético), para compor um outro tipo de olhar a ser lançado sobre o mundo, reforçando, ao mesmo tempo, estratégias propícias à interação desejada entre o texto e os leitores.

O caminhar pela Europa, em sentido metafórico, recupera os percursos construídos pela presença africana em espaços diaspóricos e reitera a intenção de Tenreiro de inscrever no seu poema os diálogos concretos com os pressupostos da Negritude. Esse diálogo está indicado na assunção do sujeito poético como negro, como está indicado no verso 10 em que se informa que os cenários “da Europa e da América” são trilhados “por mim Negro de coração em África” (p. 124).

Tenreiro lança mão, na produção do poema “Coração em África”, de recursos que ressaltam elementos importantes de sua enunciação. A expressão “De coração em África” torna-se estratégia importante, ao acentuar os vínculos com um projeto literário (e político) que retoma paisagens europeias e norte-americanas e, intencionalmente, as reconfigura a partir da intenção de marcar, nelas, a presença africana “de coração em África”. Ao acentuar essa intenção, o poema recorre a ritmos valorizados pela Negritude, sobretudo pela poesia de Aimé Césaire. 

Já nos primeiros versos, o poema exibe a intenção de observar o mundo a partir do desvio a direções legitimadas por uma óptica centralizadora e pela proposição de novas formas de olhar que permitem a abertura de novos caminhos a serem trilhados pela poesia criada “com o coração em África”. Com essa intenção, a Europa não se mostra no poema com seus limites geográficos assegurados, já que os caminhos “trilhados pela Europa” passam pelos Estados Unidos, pela América do Sul, pelo México e por outros espaços indicados por elementos que ajudam a compor a cenografia do poema. Embora a Europa fosse considerada, no contexto em que o poema foi produzido, como o centro regulador de ações que se estendiam pelo mundo, os caminhos trilhados pelo eu poético, no poema, permitem que se vejam não apenas as compartimentações demarcadas por intransponíveis fronteiras, mas também os imensos fossos de pobreza existentes em cenários europeus. Com uma intenção dessacralizadora, o poema alude aos “campos de trigo sem bocas”, a “ruas sem alegria com casas cariadas” (versos 7 e 8), a cenários de estranhamento em que se expõem os horrores deixados pela guerra, a pobreza e a exclusão como partes de uma Europa que é dissecada pelo olhar de quem acolhe os excluídos e os espaços a eles atribuídos. Através dessa estratégia, a Europa é vista, por um lado, como possibilidade de um andar sem rumo que vai acolhendo as vozes de melancolia, as “mourarias de facas e guernicas de toureiros” (p. 124); por outro, mostra-se como o lugar em que as armadilhas da própria europeia podem ser apreendidas, porque se escancaram os cenários de miséria e de exclusão apreendidos pelo olhar do Negro que caminha pela Europa, com o coração em África.

Não sem razão, a paleta cubista apresentada na primeira parte do poema é montada com referências a uma África significada por “palmeiras vermelhas verdes amarelas”, por um Sol sensual que inscreve na paisagem a “saudade sentida de coração na África” (p. 124). Ver a África, e também a Europa, na paleta montada pelo olhar, implica pontuar os lugares modelados pela mão do africano escravizado na construção de um novo mundo que não conseguiu expurgar as “casas cariadas” e as “dedadas de miséria” que estão entre os ardinas, os miseráveis vendedores de jornais, e também nos boulevards e baixas da Europa (p. 124).

É importante reiterar as relações evidentes que o poema estabelece não apenas com a Negritude, mas também com as vanguardas, apropriando-se de recursos próprios do surrealismo, do cubismo e mesmo do dadaísmo para compor as cenas reveladas pelo olhar do “Negro, de coração em África”. Ao passear pelos caminhos por onde a Europa expõe suas mazelas, os olhos do sujeito lírico conseguem apreender outros cenários em que as vanguardas se põem em interação com a Negritude, porque a Europa está sendo trilhada por um sujeito que se assume negro, “Negro com o coração em África” (p. 124).

Fica evidente, nesse longo poema de Tenreiro, como se vem acentuando, a recorrência a estratégias e recursos como transgressões, encaixes, deslocamentos e associações livres. E, ainda que não se concretize, no poema, a obsessão surrealista pelos sonhos ou pelas manifestações de uma outra realidade apreendida por meio de insinuações e sugestões, essas estratégias também ajudam a compor o texto. Explora-se uma visão social propensa a crer nas possibilidades de transformação do mundo e de se pensar a poesia como uma forma de libertação do homem. São essas vertentes que formatam a percepção de mundo que o poeta inscreve nas rotas do caminhante que anda pelas ruas para apreender o que chega aos seus olhos sem censura, a partir das “longas páginas do jornal do mundo” (p. 124).

“Coração em África” assume a perambulação surrealista como uma estratégia que valoriza o acaso não por sua importância em si mesmo, um pressuposto caro ao movimento liderado por Breton, mas como um recurso capaz de produzir outras possibilidades de apreensão do mundo. O andar se faz, metaforicamente, por caminhos que permitem apreender a Europa através dos que sofrem a pobreza e as mazelas advindas das divisões perversas da realidade social em que vivem. Por isso é importante perceber o olhar crítico do sujeito poético e sua intenção de vasculhar o que está além da superfície das coisas. Os intencionais deslocamentos, as colagens, por vezes inusitadas, mesclam-se a acontecimentos banais expostos nas manchetes dos periódicos que gritam, com voz “ainda escaldante da tinta”, os resultados do futebol, misturando-os com as “melancolias do/orçamento que não equilibra” (p. 124), com a miséria que invade uma Europa ferida pela guerra.

Em outra parte do poema, são exaltados os pressupostos da Negritude na construção de homenagem a Mac Gee, o norte-americano assassinado no calor da intolerância racial. Nos versos que compõem a homenagem ao condenado à morte em cadeira elétrica, no Mississipi, em 9 de maio de 1951, ouvem-se ecos da poesia dos criadores da Negritude e a conclamação de outras vozes poéticas que denunciam a situação vivida pelos negros em todo mundo. Ao trazer para os versos do poema a notícia da morte de Mac Gee, o negro norte-americano transformado em vítima sacrificável, os versos do poema exploram os significados culturais atribuídos à diversidade humana que forma o mundo, metonimicamente ressaltada nas cores das flores oferecidas ao negro assassinado, ao “cadáver queimado de Mac Gee do teu coração em África e sempre vivo” de onde “floriram flores vermelhas flores vermelhas flores vermelhas/ e também azuis e também verdes e também amarelas”(p. 125).

Os ideais negritudinistas matizam-se no olhar que consegue perceber as contradições intensas expostas nos cenários observados pelo sujeito poético e que o levam a perceber a vileza da opressão, da exclusão de negros e de outros rejeitados tão oprimidos quanto eles, recurso que faz com que a “pretidão do mundo” assuma significados mais amplos nos versos escritos por Francisco José Tenreiro.

É no ininterrupto caminhar proposto pelo poeta que podem ser identificados diálogos com diferentes manifestações artísticas e literárias. Ao se constituir como um vasto mural, o poema retoma as errâncias, as deambulações e, sobretudo, a preocupação com as questões sociais. Por isso, no poema, o trilhar pelos caminhos da Europa se faz com uma intenção marcadamente política, indicada a direção marcada pelos pressupostos da Negritude. O inusitado tão aclamado pelos surrealistas cede espaço a um olhar crítico que percebe e denuncia as mazelas da Europa e do mundo.

Em várias partes do longo poema, são ressaltados aspectos inusitados da realidade apreendidos por montagens feitas a partir de recortes, colagens e deslocamentos. A aleatoriedade, apregoada pelo dadaísmo, cede lugar a uma visão arguta sobre o que aparentemente se esconde ao primeiro olhar. O recurso possibilita ressaltar o modo como ficam recortadas as paisagens europeias com a inscrição de cenas de outros espaços. Os efeitos da reverberação possibilitam recorrer a cenários africanos e deles passar às “inarmonias de Armstrong”, para ressaltar situações nas quais a cor da pele é sempre um marco divisório entre os homens. Essa questão é recortada com passagens do poema de Césaire “Cahier d’un retour au pays natal”, conclamadas para aludir às nuances de cor indicadas pelas palavras negro, mulato e moreno. Nos versos que remetem ao poema de Césaire, mantêm-se alusões a situações concretas postas, lidas em contraponto: “enquanto que à minha volta se sussurra olha o preto (que bom) / [olha um negro(óptimo) olha um mulato (tanto faz) / [olha um moreno (ridículo), como se percebe na p. 126. Nos versos, ecoam motivos caros à Negritude quando critica a compartimentação motivada pela cor da pele.

As cenas visitadas pelo olhar vasculham a violência míope que estabelece as fronteiras de exclusão, também compõem visões que se mostram em descompasso com o que se afirma nos primeiros versos do poema, quando, como já registrado, os cenários africanos são evocados através da beleza das palmeiras e do calor que emana do Sol, personificado pelo uso da inicial maiúscula. Esses cenários de calor e luz são postos em oposição à fria e cinzenta Europa e às paisagens escurecidas dos lugares visitados pela mão-de-obra africana escravizada.

Recortes e colagens têm, assim, uma função peculiar no poema de Tenreiro: aproximam espaços, transformam-nos em outros cenários e, com essa intenção imprimem à caminhada propósitos críticos dirigidos aos lugares marcados por miséria, violência e melancolias, temas recorrentes nos versos das primeiras estrofes do poema, retomados em outra estrofe em que são conclamados os “pueblos, os xavantes, os esquimós, os aïnos [...] “todos escravos entre si” (p. 127).

Por um processo de contaminação, os ardinas, referidos na parte inicial do poema, são tomados como metáfora da pobreza que habita as “cities boulevards / e baixas da Europa” (p. 124), permitindo a associação com cenas presentes em quadros de pintores alemães do movimento Nova Objetividade, sobretudo quando exploram as mazelas deixadas pela primeira guerra. Por um processo de deslocamento e condensação, indicações várias, desde o início do poema, ajudam a compor a feição muralista do poema consagrada pela explícita referência a Rivera, Picasso, Cândido Portinari e Júlio Pomar. As alusões a tendências da pintura realista, verista, expressionista ficam ressaltadas pelas referências aos horrores da primeira guerra e aos ambientes habitados pela pobreza, fome e violência, pela crítica a um tipo de progresso que continua a explorar a força de trabalho de “homens escravos dos homens” e a perpetuar uma situação em que negros continuam a ser “escravos dos homens amarelos e brancos e brancos e amarelos e negros escravos sempre dos homens” (p. 127), e reforçam as denúncias feitas ao longo do poema. Nota-se, em todo o poema, uma clara intenção de mostrar que os olhos do sujeito poético são capazes de perceber as contradições que se expõem em cenários diversos e, mais concretamente, em lugares demarcados por sequelas provocadas por um sistema econômico que dissemina a pobreza e intensifica a exploração.

Os olhos que vasculham os cenários não se fixam apenas nos escombros de uma Europa combalida pela guerra, distendem-se a espaços do mundo com a intenção de permitir que os explorados sejam aproximados.

Para destacar o que olhos do sujeito lírico são capazes de perceber, o poema conclama olhares que emergem de criações poéticas construídas fora do percurso europeu, como a força bruta dos poetas do Renascimento Negro norte-americano, do Negrismo, da Negritude que se unem à insurreição das vanguardas para que sejam ouvidas as vozes de poetas africanos e afrodescendentes de diferentes espaços:


De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas
                                                                          [Guillén

de coração em África com a impetuosidade viril de I too am
                                                                        [América

de coração em África com as árvores renascidas em todas
                                  [estações nos belos poemas de Diop

de coração em África nos rios antigos que o Negro conheceu
                                       [e no mistério do Chaka-Senghor

de coração em África contigo amigo Joaquim quando em
                                                          [versos incendiários

cantaste a África distante do Congo da minha saudade do
                                           [Congo de coração em África.

                        de Coração em África ao meio-dia do dia de coração em África.
                        (TENREIRO, 1982,p. 125).


E ao conclamar Guillén, os cultores do Renascimento Negro norte-americano, o negritudinista Senghor, o poema abre-se a cenários de que fazem parte os negros de todo mundo, ampliando-se para acolher todos os “condenados da terra”, na feliz expressão de Frantz Fanon (1961).

A proposta desse magnífico poema de Francisco José Tenreiro está traçada, como se procurou demonstrar, em pressupostos artísticos, literários e políticos que marcam a sua enunciação, intencionalmente pontuada pelos diálogos que o sujeito poético estabelece com vários movimentos artísticos, com os olhos atentos à realidade, sempre observada “com o coração em África”. A enunciação do poema se dá, então, em um lugar compósito, atravessado por diferentes forças que congregam percepções e vivências de Tenreiro em suas diferentes feições: poeta, teórico, jornalista e docente da área da geografia. Não é por acaso que, no poema, são desenhados vários mapas e cartografias inusitadas que pretendem delinear a face da Negritude como um movimento que, nascido no coração da Máquina Colonial, na Europa, na França, em Paris, propõe uma resistência significativa ao travamento da voz dos escritores negros, da África e de espaços afrodescendentes.

Não é sem razão que, ao congregar elementos das vanguardas artísticas europeias, Tenreiro lhes atribua uma significação que, sendo literária e artística, faz-se, sobretudo, política. No deambular em direção aos cenários em que a exclusão, a miséria, o desmando e a intolerância demarcam fronteiras rígidas entre uns e outros, o sujeito poético conclama experimentações vanguardistas, auferindo a elas uma intenção compromissada com a denúncia dos horrores que se vão descortinando ao longo do poema. A morte de Mac Gee e os excluídos que povoam as baixas e boulevards são parte da denúncia feita a um mundo marcado por fortes contradições. Ao serem exibidos no poema, os excluídos e a violência ampliam os significados de expressões como “caixões de pinho” e “guernicas de toureiros” e, ao mesmo tempo, são policromicamente acentuados nas cores de flores vermelhas, azuis, verdes e amarelas anunciadas. Uma policromia que se compõe com os tons fortes da paleta cubista para exibir as mazelas que a Europa colonialista não conseguira evitar.

Considere-se, por fim, que o poema permite que se perceba a adesão de Tenreiro a manifestações culturais e políticas do seu tempo, permitindo a expansão de significados possíveis aos termos “errância”, “flanerie” e “deambulação”. Essas estratégias artísticas conjugam-se com as mesclagens de acontecimentos estampados em manchetes do jornal e com denúncias sobre a situação dos excluídos, a partir de uma intenção que ativa a motivação da arte dos negritudinistas. A saga dos marginalizados pelas guerras e pelo progresso faz-se com a explícita referência ao trabalho produzido pelos negros africanos na Europa, nos Estados Unidos e em outros lugares do mundo, inclusive no Brasil, relembrado na referência a detalhes da pintura social de Cândido Portinari, as “mãos e os pés trambolhos disformes e deformados” (p. 127) dos estivadores e plantadores de café que motivaram quadros do pintor brasileiro.

O vasto painel se constrói, assim, tanto pelas referências concretas aos movimentos negros, ao Renascimento negro norte-americano, à Negritude, como também pelas experiências concretas desenvolvidas por expressões artísticas que assumiram o povo e suas condições de vida e de trabalho, através de recursos poéticos que retomam propostas de uma arte acessível aos menos favorecidos e a técnicas que intentaram permitir a imediata interação da arte com os mais humildes, como fez Diego Rivera, mas também Orozco e Siqueiros, no México, e Portinari, no Brasil.

O constante movimento que ressalta os diálogos intertextuais explícitos, a conclamação de textos que se mostram ao longo do poema, reforça-se com a intenção de registrar estratégias que remetem à composição de um outro longo poema que funciona, como querem vários críticos, como um manifesto literário, o já referido Cahier d’un retour au pays natal, de Aimé Césaire. No famoso poema de Aimé Césaire, a repetição do verso “Au bout du petit matin ...”, ao longo do poema, tem uma força retórica que pode ser comparada à repetição da expressão “De coração em África” no poema de Tenreiro. Nos dois poemas, a repetição funciona como um leitmotif de intenções literárias e políticas que os poemas de Aimé Césaire e o de Francisco José Tenreiro assumem.

Visto como um importante registro não apenas dos caminhos trilhados pelo autor do poema na Europa, em Portugal, e os significados que a sua poesia produziu, ao assumir muitos dos pressupostos da Negritude, o poema dá aos textos motivadores uma significação mais aberta ao diálogo com outras manifestações artístico-literárias que fazem parte da intenção e da construção do poema.

NOTAS

1 A primeira versão deste texto foi publicada no livro Francisco José Tenreiro – as múltiplas faces de um intelectual, organizado por Inocência Mata. O livro foi publicado pelas Edições Colibri, Lisboa, em 2010.

2 No texto “Le problème du langage chez Fanon, Melek Haddad et Albert Memmi ou de la conquête du langage à sa mise en question” (1980), Leiner levanta a discussão com escritores oriundos de espaços colonizados, sem deixar de considerar escritores nascidos na França que optam por subverter a língua em seus escritos. 

3 Esse poema foi discutido por mim no artigo “Em que língua escrever”, quando comparo a posição de Laleau, expressa no poema “Trahison”, ao que é evocado por Odete Semedo, da Guiné-Bissau, no poema “Em que língua escrever”. O artigo está também postado no literÁfricas, na seção “A Literatura da Guiné-Bissau”.

4  “um indivíduo imobilizado” - tradução livre da autora.

5  Texto “L’Athanor d’un alchimiste”, publicado no livro Aimé Césaire ou l’athanor d’un alchimiste, Éditions Caribéennes, em 1980.

6 No original: “destructrice de l’ordre des choses et en même temps génératrice du mouvement dynamique de l’épanouissement culturel”.

7 Neste texto, as citações do poema “Coração em África” forem feitas a partir da publicação: TENREIRO, Francisco José. Coração em África. Linda-a-Velha, PT: África - literatura, arte e cultura, 1982, p. 124-128.

Referências

ANDRADE, Mário Pinto de. Prefácio à 1a. edição da antologia Poesia Negra de Expressão Portuguesa. In: TENREIRO, Francisco; ANDRADE, Mário Pinto de. Poesia Negra de Expressão Portuguesa. Linda-a-Velha: África - literatura, arte e cultura, 1982, p. 51.

CHEVRIER, Jacques. La littérature africaine - Une anthologie du monde noir presentée par Jacques Chevrier. Paris: Flammarion, 2008.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literaturas africanas de língua portuguesa: percursos da memória e outros trânsitos. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2008.

DELAS, Daniel. Aimé Césaire. Paris: Hachette, 1991.

KESTELOOT, Lilyan. Aimé Césaire. Paris: Seghers, 1962.

LARANJEIRA, Pires. A Negritude de língua portuguesa. Dissertação de Doutoramento em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Porto: Edições Afrontamento.1995.

LEINER, Jacqueline. « Le problème du langage chez Fanon, Melek Haddad et Albert Memmi ou de la conquête du langage à sa mise en question ». In: Imaginaire Langage - Identité culturelle, Negritude. Paris: Jean-Michel Place, 1980, p. 39-45.

LEINER, Jacqueline. Imaginaire Langage - Identité culturelle, Negritude. Paris: Jean-Michel Place, 1980.

LEINER, Jacqueiline. L Athanor d’un Alchimiste. In: Aimé Césaire ou l’athanor d’un alchimiste. Paris: Editions Caribéennes, 1987, p. 11 -14.

TENREIRO, Francisco José. Coração em África. Linda-a-Velha: África - literatura, arte e cultura, 1982.

 


[i] Doutora em Literatura Comparada pela UFMG, estágio na Université de La Sorbonne Nouvelle, Paris (1982/1983 e 1992). Professora Aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas, período 1995 – 2018. Autora dos livros: Brasil afro-brasileiro (2000); Poéticas afro-brasileiras (2003); Literaturas africanas de língua portuguesa: percursos da memória e  outros trânsitos (2008); Mia Couto: espaços ficcionais (2008); Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015). Co-organizadora da coletânea Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Volume 4. (2011). Coordena, desde 2010, o Grupo de Estudos Estéticas Diaspóricas (GEED) que congrega pesquisadores de vários estados do Brasil e de várias cidades de Minas Gerais. A partir de 2021, coordena a seção literÁfricas, no literafro/UFMG, que tem como objetivo transformar-se em um canal de acervo, multiplicação e socialização de artigos críticos, resenhas, entrevistas e textos literários de escritores(as) africanos(as) e afro-diaspóricos(as).

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