Sum Marky - um escritor intervalar[1]

Inocência Mata[i]


Um escritor são-tomense pouco conhecido...

Sum Marky é um escritor pouco conhecido cuja “reconciliação” com a sua comunidade leitora/interpretativa (Stanley Fish) são-tomense, é recente, também devido à ausência na sua escrita de um discurso nacionalista (e isso apesar de se tratar de um escritor marcadamente neo-realista, que escreve sobre as condições sociais em situação colonial). O que acontece é que, escrevendo em situação colonial, Sum Marky não faz uma escrita de agressiva verberação anticolonial (talvez condicionado pela sua condição étnico-cultural) embora – e é de elementar justiça que se realce – critique e denuncie os excessos e as injustiças. Essa condição levou a que nos dois sistemas literários afins da sua obra, o são-tomense e o português, o seu nome fosse desvanecido. Apesar de a sua obra ser um dos mais interessantes testemunhos socioeconômicos e humanos do mundo são-tomense, através de um Neo-Realismo humanista.

Sum Marky é o pseudónimo literário, de inspiração são-tomense (crioulo forro), do escritor José Ferreira Marques, que também utiliza os pseudónimos Roy Harvey e Louis Rudolfo.

Filho de pais portugueses, natural da ilha São Tomé (1921), onde fez a instrução primária, Sum Marky, que era filho de um comerciante, foi auxiliar de contabilidade na Repartição de Fazenda, antes de embarcar para Portugal, em 1943, para se matricular, após o curso liceal, na Faculdade de Medicina de Lisboa. Regressará cinco anos depois a São Tomé para exercer o cargo de adjunto do secretário da Câmara Municipal, até 1956, ano em que, já em Portugal, publica o seu primeiro romance, O Vale das Ilusões, obra em que já se percebe uma crítica ao sistema colonial. A sua consciência contestatária valer-lhe-ia a primeira detenção pela PIDE, em 1962, quando da publicação de No Altar da Lei, o seu primeiro romance sobre os nefandos acontecimentos do Batepá, no interior da ilha de São Tomé, ocorridos em 1953. Sum Marky verá, doravante, os seus livros perseguidos, por uma razão ou por outra, o que o levará a instalar a sua própria oficina de offset. Depois de uma longa ausência, regressa a São Tomé, em 1988, a convite das autoridades locais, facto que considerará como o “reconhecimento” da sua nacionalidade literária. 

A obra de José Ferreira Marques é vasta, contando-se cerca de trinta títulos, se se incluírem as publicadas sob os pseudônimos de Roy Harvey e Louis Rudolfo, e contando-se também romances e novelas de temas eróticos, maioritariamente proibidos pela censura, sem qualquer ligação com o universo de São Tomé e Príncipe (e alguns dos quais também da autoria de Sum Marky).

Será, pois, enquanto Sum Marky que o romancista interessa à literatura são-tomense e, particularmente, como autor de O Vale das Ilusões (1956), No Altar da Lei (escrito em 1960 mas só publicado em 1962), Vila Flogá (1963), As Mulatinhas (1ª edição clandestina em 1965, feita na sua oficina de offset da Amadora, mas aparecendo em 1973 como edição brasileira para iludir a censura), Tempo de Flogá (1969) e do conto “Angelina”, primeiramente publicado em 1969 no 1º volume da antologia Contos Portugueses do Ultramar, de Amândio César.

Alguns aspectos da ficção de Sum Marky: a história de batepá e o mundo da roça

Escritor da intervalaridade, entre o corpus literário colonial e o nacional, a obra de Sum Marky, intermediando estética e ideologicamente os dois discursos, é muito significativa no quadro da literatura são-tomense, não apenas pelo seu lugar numa prática literária escassa em São Tomé e Príncipe, como é a narrativa (a prosa de ficção), como pelo destaque que a sua obra conquistou na realização desse modo e do seu género, o romance, dados os temas das suas obras, muito diversos dos dos seus contemporâneos, como Fernando Reis e Luís Cajão, para só citar dois escritores.

Com efeito, a sua obra, de marcada influência neo-realista e com um sentido intervencionista, apesar de o autor estar circunscrito aos limites do poder colonial e da sua condição de filho do colono, constrói uma semântica de espaço insular em que se disseminam os mitos e símbolos que configuram o tecido do discurso colonial, subvertendo-os. A anti-naturalização do desejo/prazer, uma das grandes subversões da obra de Sum Marky em relação aos outros ficcionistas do luso-tropicalismo, o escritor consegue-a pela motivação que se insinua em cada acto de miscigenação revestindo-o de realidade, circunstância, lugar, sujeito, objecto, objectivo, fazendo com que a situação miscigenante não surja tão harmoniosa como a celebra o discurso oficial. Desde o primeiro romance, O Vale das Ilusões, a Tempo de Flogá e As Mulatinhas ou “Angelina”, o prazer e o saber tecem uma rede ideológica revelando a gestação eminentemente socioeconómica da linguagem. Por isso, diferentemente de outros ficcionistas são-tomenses ou de motivação são-tomense que constroem epistemologias da lei colonial (sacrifício, luta, dever, honestidade, generosidade, progresso, espírito de missão civilizadora), Sum Marky faz o questionamento dessas epistemologias, numa verdadeira subversão da ideologia colonial, através da causalidade histórica e social.

O espaço social é, por outro lado, a realidade privilegiada da obra de Sum Marky e aí reside uma das principais diferenças no corpus da representação ficcional, que releva da conceituação da relação entre o homem e a sociedade. Sum Marky, na sua postura contestatária, preocupa-se em avaliar e interpretar o homem vivente em São Tomé e Príncipe, através das vinculações entre os vários aspectos da vida humana, colectivizando a acção (embora, note-se, sem equacionar a dimensão cultural – e esta constitui uma -. das tópicas da intervalaridade de Sum Marky). Daí a inexistência da representação do espaço natural e o afastamento da descrição paisagística (aliás um dos vectores da discursividade colonial e que releva da representação experiencial). E quando ela surge – a descrição da paisagem – tem uma função indicial e informativa para a semântica social, uma conotação psicológica de causalidade social – na roça e no heterogéneo aglomerado urbano (e neste capítulo também Sum Marky se destaca do conjunto ficcional na medida em que é único a representar os dois universos): o mundo rural e o urbano, aproximando-se, assim, da “poesia demiúrgica” do sistema, o que atenua a sua intervalaridade.

A escrita Sum Marky – entre a Ficção e a História

Outra categoria que configura a intervalaridade literária de Sum Marky é o modo de expressão do espaço histórico. Em dois dos seus romances, sobretudo, No Altar da Lei e Vila Flogá, o autor labora na figuração de uma explícita concretude histórica: a época de 1951-1953, da construção dos bairros da zona do Cabo Submarino e do Mato Quixabá, das rusgas e do massacre do Batepá levados a efeito pelo Governador Carlos Gorgulho. A escrita de Sum Marky é contaminada pelo “discurso da veracidade”, resultante da fusão entre a referencialidade histórica e a realidade ficcional e de redes nem sempre criptográficas da onomástica. Não quer isto significar, porém, que esta, a ficção, mantenha com a verdade, uma relação de incidentalidade mas que o seu processo de ficcionalidade se constitui na base do verismo de situações quotidianas a vários níveis da sociedade são-tomense, o que transforma a escrita de Sum Marky em reescrita da História, que é conferida com a História então oficial.

Também em Tempo de Flogá, logo na “Advertência” que abre o texto, o autor declarara:

                 Os personagens e  factos deste romance são pura  ficção. É verdade que as Ilhas aqui imaginadas têm  uma  considerável  semelhança com as Ilhas  de São Tomé  e  Príncipe,   mas                  isso  deve-se unicamente  ao  natural desejo de emprestar aos  caracteres  desenhados  um ambiente  real.  Repito,  tudo o mais é ficção, salvo o tema fundamental  deste  livro  – o                  antagonismo entre dois mundos em presença. Espero, pois,  que  seja  bem  compreendida  a minha  intenção ao situar esta história em ilhas tropicais portuguesas (p. 7).


O autor tudo assume como ficção excepto o “antagonismo [2] entre dois mundos em presença”, deste modo prenunciando, ao assumir esse antagonismo em última análise entre nativos e “arritivistas” /forasteiros, uma escrita subversiva, revelada ao longo do texto – embora este texto seja de “realismo imaginário”. Aliás, esse posicionamento do autor de entrecruzar a enunciação literária com a factualidade histórica é uma constante em textos como No Altar da Lei (1962), Vila Flogá (1963) e n’As Mulatinhas (1973).

Pode dizer-se que, nessas obras, a escrita sintetiza a História de determinadas épocas, facilmente datáveis. Vila Flogá e No Altar da Lei, acima já referidas, situam-se entre 1951, em que se fizeram rusgas organizadas pelos tristemente célebres Tenente Pinho e Alferes Fernandes, se formaram as igualmente macabras brigadas do Zé Mulato (figuras história conhecida por “Zé Brigada”) e orientadas para as “Obras Públicas” do Cabo/”Engenheiro” Malheiro (no texto: Malhadas) ou o “Racha-Canoa” (nome por que ficou conhecido um capitão do porto que rachava as canoas de cujos donos não pagassem imposto); época de violações e incêndios, seguidos do massacre sob as ordens do Governador Gorgulho (no texto: Galho-Galho), com a cumplicidade de figuras reais, históricas, como o Padre Rocheta, ao lado de figuras populares igualmente conhecidas de todos como Sum Tomaxi Butxica (o Senhor Tomaz da Farmácia), Sum Popoe, mestre Barrinhos, Sum Curiolano ou Sum Olímpio. Tempo de Flogá, situando-se em duas ilhas imaginárias, São Tadeu e Papagaios, francamente identificáveis com as ilhas de São Tomé e Príncipe, nem por isso a estória deixa de ser historicamente localizável no tempo: a construção do campo de aviação no Príncipe (Papagaios) nos anos 1940, com as perturbações sociais que tal evento provocou na população daquela ilha, enquanto o fio textual d’As Mulatinhas, começando “nesse ano distante de 1930”, em que “o salário de um serviçal era de 120 escudos por mês” prolongar-se-á até Setembro de 1939 quando “estoirou na ilha, como uma bomba, a notícia de ter rebentado a guerra. A Alemanha de Hitler invadira a Polónia, a França e a Inglaterra para respeitar os seus compromissos declararam-lhe guerra.” (p.184-185).

Há no trabalho de escrita de Sum Markey e sobretudo nas três obras citadas, Vila Flogá, No Altar da Lei e As Mulatinhas, uma preocupação constante de conferir a ficção com a História, transformando a sua escrita em reescrita da História oficial, na medida em que esses textos, para ganharem sentido, têm de se cruzar com a História que se transforma em matéria de figuração e fautor de verossimilhança na significação da problemática do percurso histórico e do quotidiano social são-tomense. De seus textos são-tomenses diz o Autor:

Descrevi aquilo que vi. Não há qualquer espécie de imaginação: descrevi a realidade que observei.[3]

Que lição para um rapazinho de oito anos, por exemplo, quando um dia veio a polícia e levou consigo o protector da minha infância, o cozinheiro Olímpio!
(...) E foi assim que, para mim, o velho Olímpio ficou como símbolo e, em sua homenagem, criei a personagem, do mesmo nome, com que inicio a história do meu Vila Flogá.[4] 

Asserções controversas, sem dúvida, e talvez refutáveis esteticamente no processo da criação literária mas que dá a dimensão do seu posicionamento interventivo no labor literário de transfiguração através da (re)criação da realidade histórica em realidades estóricas. Sendo a literatura um sistema de valores em que é possível apreender a realidade de um passado histórico, a verossimilhança dos textos markianos constrói-se a partir do real e da verdade histórica. O histórico e o ficcional são, no texto markiano, duas categoriais em tensão, resultante da questionação dos sujeitos e dos objectos da História – questionação por que tem de passar qualquer reflexão literária sobre o mundo (no caso, a África colonizada), não para conferir a autenticidade da matéria do texto, situado entre as margens do verossímil e do verdadeiro.

Pode dizer-se, por isso, que a escrita de Sum Marky é contaminada pelo “discurso da veracidade”, embora não mantenha com a verdade uma relação de incidentalidade, mas operando uma fusão entre realidade objectiva e realidades subjectivas. Constitui-se, assim, um processo de ficcionalidade com base no verismo das situações vividas e vistas a serem vividas a diferentes níveis (note-se que Sum Marky é o único ficcionista da sua contemporaneidade a textualizar todos os grupos etnoculturais e sociais, no conjunto da sua obra), inscrevendo(-se) no texto a sua vivência pessoal. Há, assim, uma fusão de intertextualidade exoliterária (a nível factual) com a memória da experiência vivida e documentária, a exploração memorialista e imaginária (a nível do imaginário, também, como, por exemplo, em Tempo de Flogá, a lenda da árvore da fruta-pão construída do jogo entre a memória da História e o imaginário colectivo e individual da tradição oral conjugando-se para a estruturação socializante do ) texto. 

                         Eu escutei, quando criança, os insultos, as ameaças e as pancadas em homens cansados e desesperados, que por vezes se revoltavam e matavam algozes.
                         Creio que dei uma amostragem do que era a vida nas roças de S.Tomé e Príncipe, no meu livro As Mulatinhas, com o seu cortejo de violência, maldade  e febre. [5]

Diz, num outro passo do seu já citado “Depoimento”, Sum Marky, que me confidencia numa carta, datada de 1984:

Tanto quanto permitem as minhas reminiscências de infância, vejo-me numa velha casa de madeira, situada por trás da   loja de meu pai, com o meu cozinheiro Olímpio, de prato e colher em punho tentando alimentar-me. Ele esteve em casa dos meus pais durante 20 anos e, um dia, sem saber porquê, foi-se embora, (...) Muitos anos volvidos, em 1963, (...) publiquei o meu livro Vila Flogá (...) Outra coisa de que me lembro com muita acuidade eram os cipaios. Talvez por isso fiquei, desde esses    dias remotos com   um  asco doido a tudo quanto envolve fardas (...). Uma outra coisa que eu nunca pude perdoar aos escritores de S.Tomé, foi o silêncio sobre os acontecimentos do “Batepá”, a   maior tragédia da Ilha, que se abateu sobre os seus habitantes e culminou  em Fevereiro de 1953,com o massacre pelo Corpo de Polícia, em que 28 nativos perderam a vida, asfixiados numa prisão, e a tragédia do campo de concentração de Fernão Dias. [6]


E isso num texto intitulado “Como os escritores portugueses viram o Povo de S.Tomé e Príncipe”, um manuscrito que a autora deste texto possui.

É, pois, o próprio escritor a “confessar” a congregação de significantes vivenciais na sua obra. A partir da realidade vivida, o trabalho do escritor vai consistir num labor literário de transfiguração de estoricização da História. Subvertendo a menção pejorativa do documentário em literatura, o autor impõe-se a si próprio o imperativo ético e moral de testemunhar, através da escrita literária, nomeando o antagonismo entre os dois grupos humanos, os colonizados e os colonizadores, ainda que a nomeação não seja, ainda, a da diferença civilizacional.

A sua estratégia, deste modo, particularmente nos textos são-tomenses em consideração, é a inscrição das suas personagens num esquema retrospectivo, de evocação rememorativa (e ao longo deste texto de depoimento, o escritor cita inúmeras figuras reais da História de São Tomé e Príncipe textualizadas através de criptogramas – embora nem sempre). Uma memória contudo imaginante, pois que de literatura se trata, sem que,todavia, esse investimento do vivido faça do mundo recriado da diegese um repositório “evenemencial”, mas de feixes de relações entre a vivência e a escrita.

Em suma, pode dizer-se que a opção de escrita de Sum Marky é ideológica: a de contaminar a ficção pela História, o que gera uma contaminação criativa que, curiosamente, recorda, enquanto a memória imaginativa/imaginação rememorativa se vai transfigurando em literário, que o próprio autor “confessa” ser uma confluência de recordações.

Sum Marky: Um escritor neo-realista não nacionalista.[7]

Marcadas por um funcionamento fortemente ideológico, as literaturas africanas fizeram-se sistemas sob o signo de um projecto libertário, alicerçados numa performance comum/colectiva nacionalista, de afirmação de uma identidade cultural, entendida como construção intelectual e discursiva e não propriamente como representação da realidade cultural. A produção literária dos anos 40-50-60 caracteriza-se por lugares temáticos, ideologemas, signos, símbolos e estratégias que configuram uma retórica de resistência antifascista e anticolonial, conjugando-se numa frente africana de exortação à resistência, de reivindicação da pátria e de afirmação cultural. Esse discurso de combate, num sistema de vasos comunicantes, muito devia a estéticas cujo funcionamento permitia a representação dos antagonismos socioeconómicos e políticos e auto-afirmação identitária. Isto é, do Neo-Realismo e da Negritude.

No radicalismo de uma época de intolerância político-ideológica, o discurso nacionalista, de que o literário e o metaliterário se constituíram como uma das fases visíveis (uma outra foi a luta armada), talvez estivesse condicionado pela premência do “combate” e autores houve que, não aderindo ou às estratégias ou à forma de contestação (ou por opção ideológica ou por limites contextuais), escritores houve, dizia, que foram subvalorizados pela “instituição nacionalista”.

Na literatura são-tomense, Sum Marky é um desses escritores.

A sua obra é, assumidamente, denúncia das contradições socioeconômicas na sociedade colonial, das injustiças contra trabalhadores das roças, da exploração capitalista dos grandes latifúndios, da precariedade da vida urbana (o desemprego, a prostituição), a pseudo-convivência étnica – reescrevendo a textologia literária colonial cujos autores eram divulgados e acarinhados pelo “sistema” (através de prêmios, incentivos para a edição e uma crítica apologética, de que Amândio César e Rodrigues Júnior foram representantes): Fernando Reis, Luís Cajão, Julião Quintinha. Manuel Récio, Domingos S. de Freitas, Manuel Joaquim Gonçalves de Castro, José Augusto, na ficção; Augusto Casimiro, Joaquim Paço d’Arcos, José Fialho, Agostinho Gomes, Hugo Rocha, na poesia.

No entanto, talvez condicionado pelos limites do seu lugar social e étnico (ou por opção), Sum Marky apenas apreendeu e representou a conflitualidade social e de classe quando, em situação colonial, o conflito é também étnico e cultural – conflito para cuja gestão a estética neo-realista, de que a obra de Sum Marky é devedora, não parecia dar respostas.

A obra de Sum Marky, como já foi referido, é significativa no quadro da literatura são-tomense sobretudo pelo seu lugar pioneiro numa prática (a narrativa) cuja realização esteve sempre marcada por motivações apologéticas do sistema social político vigente. Com efeito, apesar de o autor estar circunscrito não apenas pelos limites do poder colonial mas também pela sua condição de filho de colonos, a sua obra constrói uma semântica do espaço insular em que se disseminam os vários mitos e símbolos que configuram o tecido discursivo colonial, de que se faz texto a obra de um Luís Cajão ou um Fernando Reis, um dos escritores mais prolíferos da prosa de ficção de motivação são-tomense. No entanto, em Sum Marky estas configurações são desmontadas, as suas causas investigadas, revelando o autor implícito a consciência crítica das causas que estão na origem dos factos e das situações.

A antinaturalização do desejo e do prazer miscigenante é uma das grandes subversões da obra de Sum Marky, em relação aos outros ficionistas do luso-tropicalismo cuja temática de eleição é a mestiçagem como tópico da portugalidade e justificação da ideologia oficial. Sum Marky consegue-a pela motivação que se insinua em cada acto de miscigenação revestindo-a de circunstância, lugar, denunciando o seu sujeito, o objecto e o objectivo e fazendo com que a situação não surja tão harmoniosa e não funcione como fase de um percurso iniciático de finalidade civilizadora. Com efeito, desde O Vale das Ilusões (1956) a Tempo de Flogá (1969) e a “Angelina” (também de 1969) que da estruturação textual o Prazer e o Saber tecem uma rede socioeconómica tão dinâmica que faz desses textos linguagens eminentemente sociais não obstante o assunto (a relação inter-racial) poder ser considerado a priori privilegiado pela ideologia oficial.

Esse modo de desconstrução no tratamento de um tema recorrente na literatura são-tomense – também presente na poesia dos poetas da Casa dos Estudantes do Império, Francisco José Tenreiro, Tomás Medeiros e Alda Espírito Santo -  isto é, a circunstancialização da situação miscigenante deixa descoberta a realidade colonial e as desigualdades entre os dois mundos, o local e o metropolitano (veja-se o conflito interior do mulato João Moreno face à escolha psico-étnica a que estava pressionado, em Tempo de Flogá); desigualdades socieconómicas com base étnica, inadequadas à proclamada harmoniosa convivência que outros textos deixam veicular, acompanhando o discurso colonial. Essa consciência das causas têm-na também as personagens, de que resulta a antinaturalização dessa apetência miscigenante do colono, pela sexualização e abastardamento da união inter-racial e pela introdução de uma determinação socioeconómica, fazendo dessa apetência dita natural um epifenómeno de um dado sociológico.

Em As Mulatinhas, a menção da inevitabilidade de arranjar mulher negra por motivos económicos é original:
Empregado [branco] de mato, terreiro ou mesmo escritório só tinha direito a mulher nativa, negra ou mulata. Mulher branca, que luxo! (p.59).[8]

Em outro passo desse enquadramento socioeconômico, Carvalho pergunta ao amigo, Machado:

 _ Machado, você acha possível um branco apaixonar-se loucamente por uma mestiça ou uma negra, a pontos de esquecer a própria mulher branca e os filhos?
_ Tudo é possível (...) Quase todos os brancos que vivem no mato são homens casados, com mulher e filhos na aldeia distante (...) É tudo o que há de mais natural (...) Vimos para aqui sozinhos, em busca de fortuna fácil? (p. 68).[9]

Sum Marky revela ainda uma outra motivação: o puro desejo sexual, como em Vila Flogá:

À falta de uma branca ou mesmo uma mulata, vai uma negra safada! O que eu preciso, neste momento, é de uma mulher...
(...)
Que queres, pá! A fome é negra...[10]

Não releva deste labor desmistificante de Sum Marky – e espero não relevar da minha leitura – a estigmatização da relação miscigenante. Antes a revelação da obra de Sum Marky é o aproveitamento político que a ideologia colonial faz da situação, como processo pré-determinado: na medida em que, na sua obra, o comportamento do indivíduo metropolitano já não é nem resultado determinado por uma confluência de causas que o ultrapassam nem modelado por factores naturais e causais, ainda que considerados no seu funcionamento convergente, no agente colonial não se fazem ecoar todas as repercussões e todos os conflitos do mundo social[11].

Outrossim, esta insistência no contexto histórico e a revelação da instrumentalização de um fenómeno humano constitui também uma tentativa de ruptura com o exotismo que caracteriza a literatura colonial. História através da qual a escrita de Sum Marky pretende alcançar objectividade e ensaiar uma aproximação às realidades quotidianas.

E este é um aspecto que revela a influência neo-realista em Sum Marky: a expressão do espaço histórico como vivência do colectivo. A sua obra sintetiza a História colonial-fascista das ilhas como épocas facilmente datáveis e identificáveis.

A obra de Sum Marky vale também pelas relações no sistema literário são-tomense e no corpus do modo de representação narrativa. Neste contexto, a diferença faz-se pela tentativa de explicação da situação humana, as relações humanas como resultado das forças socioeconómicas e políticas. No entanto, na expressão ideológica da narrativa markiana a realidade nem sempre se supera e nem sempre o é em função da sua evolução, devido à acção do próprio Homem. As personagens markianas embora condicionadas por um complexo de factores socieconómicos e psicológicos e embora conscientes desses condicionalismos e das suas causas, nem sempre desencadeiam acções transformadoras, num processo que seria recíproco, de reacção da consciência social a uma realidade que carece de transformação. É assim com Machado em As Mulatinhas, com Sum Féron em Vila Flogá ou com o Engenheiro Carlos da Silva em Tempo de Flogá.  O caráter peculiar do romance de Sum Marky reside, assim, na inovação de tentar a interpretação global do indivíduo e da sociedade não através de situações de excepção, cuja resolução não chegaria para configurar o devir de um novo tipo de relações sociais e humanas, mas através de situações típicas – e tipificadas – e representativas da relação patrão branco/serviçal ou empregado negro (embora a antinomia étnica não seja explorada). Aliás, nos romances de Sum Marky não existem heróis isolados; quer dizer, não há apologias de homens individuais, de indivíduos fazedores de mudança. É certo existem indivíduos com “um conhecimento dialéctico da realidade exterior, ou seja, dos factores de uma mudança real, de caráter qualitativo”[12]. Mas a implementação dessa “mudança real”, que conduziria a uma nova realidade, nem sempre se efectua, o que aproxima a obra de Sum Marky mais da proposta de um “Novo Humanismo” nas relações sociais que de uma dialéctica neo-realista, de contaminação marxista, como vemos na ficção de um Luandino Vieira, ou na poesia de um Agostinho Neto, um Tomás Medeiros ou um José Craveirinha. E talvez esta seja também uma das razões pelas quais a obra de Sum Marky foi desvanecida do projecto literário nacionalista. Porque ela é, sem dúvida, uma das mais conseguidas aproximações às realidades socioeconômicas e históricas da sociedade colonial são-tomense.

NOTAS

1 Originalmente publicado em Diálogo com as ilhas: sobre cultura e literatura de São Tomé e Príncipe, cuja primeira tiragem é de 1998.

2 O sublinhado é meu.

3 Conversa com o escritor na sua casa, em Algés, em 21 de Setembro de 1985.

4 “Depoimento”, In África Jornal nº 22, 17 – 30 Julho de 1985.

5 Os sublinhados são meus.

6 Mais adiante nomeia esses escritores: Luís Cajão e Fernando Reis.

7 Texto da comunicação apresentada no “Encontro sobre o Neo-realismo”, Câmara Municipal de Vila Franca de Xira/Museu do Neo-realismo 13-15 de Março de 1997.

8 Sum Marky, As Mulatinhas, Rio de Janeiro/G.B. Record Editôra.S/D [1965], p. 59.

9 As Mulatinhas, op. Cit., p. 68.

10 Vila Flogá, Lisbôa,. S/d. [1969], p. 61.

11 Cf. Alexandre Pinheiro Torres, O Neo-Realismo literário português, Lisboa, Moraes Editores, 1977, p 34.

12 Alexandre Pinheiro Torres, op. Cit., p. 31.

 


[i] Professora de Literaturas, Artes e Culturas (LAC) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, investigadora do Centro de Estudos Comparatistas (CEComp/FLUL) e diretora do Doutoramento em Português Língua Estrangeira/Língua Segunda. É doutora em Letras pela Universidade de Lisboa e pós-doutora em Estudos Pós-coloniais (Postcolonial Studies, Identity, Ethnicity, and Globalization) pela Universidade de Califórnia, Berkeley. Atua, no ensino e na investigação, principalmente na área dos estudos pós-coloniais, e interessa-se pelos seguintes temas: literaturas e culturas africanas, relações estéticas entre literaturas em português, literatura-mundo, estudos de memória, produção literária de autoria afrodescendente em Portugal e comunicação intercultural. Professora visitante de muitas universidades estrangeiras, é igualmente membro do Conselho Editorial e Científico de muitas revistas de especialidade, nacionais e estrangeiras.

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