Viagem em torno da poesia de Marcelo da Veiga em O canto do Ossôbó[1]

Inocência Mata[i]


Um poeta multifacetado

É óbvio que a organização, da autoria de Manuel Ferreira, do corpus poético de O Canto do Ossôbó releva de uma leitura sistemática dos poemas de Marcelo da Veiga, ainda que não explicitada no seu “Prefácio”. Aliás, a organização destas poesias reunidas ajuda, já a partir da leitura dos títulos das suas partes, a entrever o universo e o percurso poéticos de Marcelo da Veiga: a 1ª parte, a do Discurso Lírico (“A saudade  e a melancolia” e “O amor”); a 2ª parte, a do Discurso Social (“Epigramas” e “Adivinhas”); a 3ª parte, dedicada aos poemas: “À Margem da Lenda e da História” ou as “Figuras Ideológicas como Metáforas”; a 4ª parte, a do Autor na Encruzilhada de Algumas Obsessões (“O poeta e o outro”, “O poeta e a linguagem”, “O poeta, fonte de sonhos e anseios”, “O poeta e a compensação ética”, “O poeta e o espaço familiar” e “A sátira social, moral, racial”); a 5ª parte, a do Discurso Pátrio ou a Identidade Cultural (“O universo humano, social e telúrico santomense”, “Didactismo social”, “Deixas”, “Sátira social”, “Sátira Anticolonialista”, “Denúncia”, “Consciência Nacional” e “O enunciado da revolta”); a 6ª parte, dedicada às Quadras, Notas, Apontamentos, Poemas Soltos; a 7ª parte, a do Derradeiro Discurso e, finalmente, a 8ª parte, com um só poema, “Um dia!”, designada como “O Enunciado da Esperança”.

Assim, embora o organizador de O Canto do Ossôbó declare não ter tomado em conta a cronologia dos poemas e que a “arrumação temática foi um trabalho a posteriori”, a primeira constatação que me ocorre é que, no conjunto da sua obra ora em análise, Marcelo da Veiga foi mudando as suas preocupações ao longo dos tempos. E essa mutação, pode considerar-se evolutiva no processo da consciencialização do homem social no contexto da sua produção poética – e por contexto entendo todo o conjunto político, histórico-social e cultural que estrutura a realidade.

Não admira, pois, que os primeiros poemas da colectânea sejam os do discurso lírico. Maioritariamente escrita nos anos 20, essa poesia denuncia, tanto pela forma como pela semântica ou ainda pelo suporte retórico e estilístico, uma contaminação (ultra-) romântica e simbolista – e, note-se, não digo da influência – que já havia envolvido também a produção de seu conterrâneo Costa Alegre, um dos elementos constitutivos da fonte poética de Marcelo da Veiga. Poemas como os sonetos “Ouvindo a chuva”, “O nosso leito” ou “Súplica suprema”, entre outros revelam, pelo idealismo amoroso e frêmito lírico que os perpassa, o sopro (ultra-) romântico na imagética e na simbologia expressivas da desilusão, da melancolia e da infelicidade. Nesses poemas de resignada tristeza e de destinos cruéis, a impregnação ultra-romântica existe pelo menos enquanto motivação de escrita (note-se o vocabulário estereotipado do lirismo amoroso) e simbolista enquanto semântica dos elementos para a expressão de uma angústia individual: os cinco poemas intitulados “Auroranas” são um exemplo bem conseguido dessa “pessoalização” da infelicidade na íntima solidão (apenas) partilhada pelo núcleo familiar – não obstante o sujeito ser solidário com causas outras, afinal também suas, como veremos mais adiante):

(...)
A tarde ia caindo! ...

E já no meu caminho,
- Peregrino que volta ao pátrio ninho
Desiludido e triste -,
Eu via esse sorriso suave e lindo –
Como na hora em que um dia me surgiste,
Como inda agora, - a tarde ia caindo -,
Quando passei e nem sequer me viste!...
(“Aurorana” – 5)

 

E o discurso lírico de Marcelo da Veiga actualiza-se segundo um conjunto sígnico lexical (o vocabulário) e sintáctico (a enunciação pessoalizada) e até formal (sonetos, sonetilhos, quadras...), além de outros elementos formais e conteudísticos: note-se, a propósito, para além da angústia espiritual e social, a exaltação da natureza (leia-se, por exemplo, “Amor! É primavera!... Abril! Abril!”) ou o suporte imagético “naturalista” (no sentido de ser da natureza) e telúrico do poema “A mais linda ‘africana’”; ou os poemas “Auroranas” que se constroem com o tecido de elementos da natureza animal, vegetal, mineral, cosmológica e elementos cósmicos. Esta última componente é textualizada através da dicotomia dia/noite, manhã/tarde para criar contraste entre o sujeito poético e da enunciação e o “objecto poético”, como em “Auroranas” – 3:

                      (...)
                      Tão tonto andei, tão cego eu fui
                      Que por inteiro me esqueci
                      Que eras tal qual manhã que abria
                      E eu, ai!, a tarde que caía...

A tarde é elemento gerador de uma visão do crepúsculo e metáfora do estado de espírito do sujeito, numa tentativa de objectivar a realidade que, todavia, surge vaga e indecisa mesmo através de cores e formas, descritas de modo a enformar um conteúdo simbólico e de imagens sensoriais bem próprio dessa ambiência. Aliás, essa temática “da saudade e da melancolia” e do “amor” faz dos poemas líricos exploração do campo dos sentidos – e o poema “Os meus olhos”, entre outros desse subcorpus, realiza a síntese da imagética que o poeta realiza nos poemas do “lirismo amoroso”. É que a plena significação dessa particular vivência sentimental e material só se realiza ultrapassando o universo designado na sua materialidade (autorial) e, de encontro com a Cultura, se expande e se (re)produz em relação do tipo metafórico com outros universos (de sujeitos, de situações, de ideias...). Não sendo a metáfora uma relação de simples substituição, mas de contiguidade, a comunicação da intencionalidade do texto processa-se através da simbolização. Efectivamente o sujeito poético – e da enunciação, maioritariamente – é  suposto representar o sujeito colectivo angustiado a vários níveis da Vida. Daí a constante citação de angústias outras, de outros desgraçados, heróis ou figuras heroicizadas, portanto, tais como o próprio sujeito que no processo simbolizante recorre a um vocabulário com repercussões metafóricas. Leiam-se, por exemplo, “Epístola a um Creso”, “Judith”, “Joana d’Arc”, “Zala”, “Harriet Stowe”, “Agonia de Camões”, “Bocage”, “Lumumba”... É que em Marcelo da Veiga toda a insatisfação parte da precaridade individual, material, sentimental, ideológica e profissional (entenda-se também estilístico-literário) gerando-se, de encontro com os cânones poéticos eleitos, uma idealização romanesca das figuras – leiam-se, a título de exemplo, os poemas “Súplica Suprema”, “Ela...” ou “Caro Salustino”. Este poema, de repercussões metalinguísticas, remete para a trilogia do “Idioma pátrio”, de evidente reflexão ideológica, cultural e nacional; ou a composição “Às vezes, que de tumulto”, um discurso metapoético em que, na sua preocupação estilística, o poeta compara o ofício de poetar a actos de Procustes, o malfeitor de Ática, alegoria simbólica do excesso e do defeito:

                       (...)
                       Minha rima justifica
                       Quando escrevo e digo
                       Se a corto mais – o que fica?
                       Se a puxo mais – que perigo!...


Esta, por exemplo, não é apenas uma preocupação com a técnica e o estilo, reminiscências da atitude parnasiana em relação à arte, mas insere-se num posicionamento mais amplo perante a Vida.

A História e a Cultura como matérias poéticas

Mesmo quando o sujeito poético se afasta do subjectivismo lírico, fá-lo sob o ângulo de uma identificação, implícita ou explícita, com as figuras lendárias e históricas gerando então uma contaminação heróica do enunciador. Parece haver na “atitude poética” do sujeito da poesia de Marcelo da Veiga uma contradição: por um lado, ele tenta eleger-se como herói identificando-se com os heróis consagrados e figuras heroicizadas; por outro lado, porém, ele está realmente preocupado em reler determinada História. Vê-se, pois, que a passagem que nesta poesia se pensa do individual para o colectivo não se efectua somente a partir da auto-referencialidade da História e da Cultura.

É neste contexto que significa a constante citação de lugares e figuras consagradas na História política, das idéias, das mitologias (religiosas e sociais): figuras míticas e mitológicas como Anacreonte, Procustes, Job, Judith, Pai Tomáz, Ofir... e figuras históricas (e lendárias) como Cipíão, o Africano, Anibal, Viriato, Mandume, Gungunhana, a Família Mata, Homero, Joana d’Arc, Camões, Bocage, Lumumba, Francisco José Tenreiro, Salustino, João de Castro, Costa Alegre, Stephen Ward, João XXIII, Harriet Stowe, Nat King Cole, entre outras – todo esse conjunto citacional faz dessa poesia um discurso eminentemente histórico-cultural, enfim, social (em toda a abrangência de sociedade), mesmo quando o texto se apresenta como lírico:

                       (...)
                       Não fiquem para a traça
                       E a criar bolor
                       Quando eu me for.
                       Dizem duma raça
                       A incontida ânsia
                       A abrir-se em fragâncias.

Ora aí está: a mathésis autorial textualizada com uma matriz historicamente ética, ou seja, o discurso lírico a encobrir o ideológico, melhor, determinada atitude ideológica: “Dizem duma raça/A incontida ânsia”. Outro exemplo dessa clandestinidade ideológica de Marcelo da Veiga é “Canção” ou ainda “Canção (para retocar)”. Embora sendo a canção uma das “áreas emocionais do lirismo” que expressa, sendo A Coimbra Martins[1], uma condição individual ou representativa de uma classe, a semântica engendra-se fundamentalmente com base na História, a saber, a escravatura, a exploração colonial e capitalista e a consciencialização nacional do primeiro poema e, no segundo, as figuras heróicas da História dos povos Vátua – Moçambique (Gungunhana), Kwanyama – Angola (Mandume), Lusitano – Portugal (Viriato), Cartaginês – Anibal Barca (Cartago), Francês – Joana d’Arc (França), etc. É que a História é a preocupação da poesia de Marcelo da Veiga na sua vertente de reivindicação político-cultural e de assumida ideologia negrista (“Amo a raça a que pertenço” ou “Nat King Cole”) e panafricana:

A África não é terra de ninguém,
De qualquer que nem sabe de onde vem.
Terra refúgio e abrigo
Da virgem e do menino
Na hora dura do perigo,
Não é este, é outro o seu destino...
Qualquer parcela de África tem Povo
.............................................

A África é nossa!
É nossa! É nossa!
Que íris! Que oiro!
Que raro tesoiro.
(...)

                    (“A África é nossa!”)
_________________________

(...)
A língua é que é a unidade;
Ela é que é a consciência
Que desde a mais tenra idade
Diz do direito à independência.
(...)

                    (“A língua própria”)

Como já foi referido, este poema constitui com outros dois (“Idioma próprio” e “O idioma é a pátria”) uma trilogia metalinguística e didáctica em que se nota a recorrência ao lexema Pátria, que inaugura um percurso ideológico Pátria àconsciência à liberdade à Vida e Língua próprias (retomando o título do primeiro poema da tríade). Pode dizer-se até que nessa reivindicação Marcelo da Veiga antecipou Francisco José Tenreiro uma vez que um poema como “A África é nossa!” data de 1935, enquanto escrito entre 1919 e 1921 é “Batuque”, poema evocação das imemoriais noites equatoriais de África: sim, porque mais do que nostalgia, é evocação. Evocação telúrica que está subjacente em (quase) todo o trabalho poético de Marcelo da Veiga: “Outubro”, “As canoas de peixe” ou “A colheita à porta”, poemas de preocupação socioeconómica, constroem-se, porém, com o tecido telúrico de uma sinestesia só das ilhas, antropologicamente identificável, uma fauna e uma flora textualizadas num discurso mais do que (só) nativista, nacional e nacionalista. Seu manifesto é, neste sentido, “Evocação (Ilha do Príncipe)”, em que o poder evocativo do vocabulário não apenas cita a História mas ainda a Cultura, realizando, tal como “Epopeia”, de Francisco José Tenreiro, um discurso histórico, social e cultural:

                        Não mais a África
                        da vida livre
                        e dos gritos agudos de azagaia!
                        Não mais a África
                        de rios tumultuosos
                        - veias entumescidas dum corpo em sangue!

                       Os brancos abriram clareiras
                       a tiros de carabina.
                       Nas clareiras fogos
                       arroxeamento a noite tropical
                       (...)

                                          (“Epopeia”, F.J. Tenreiro)

No mesmo sentido, “Evocação”, de Marcelo da Veiga:

                       (...)

                       Quando a ilha era nossa
                       E nossas suas terras
                       Cada um possuía seu quinhão de roça
                       E a alegria coroava os vales e as serras;
                       Campos de inhame, de mandioca e milhos
                       Ensopados em luz e água, plantados
                       De coqueiros, de ocás e bananeiras,
                       Tenuíssimos, cansados
                       Quais reflexos doridos das lareiras.
                       ..................................................

                      Ilha de poentes de oiro das Trindades
                      Cujo povo hoje não possui um lar
                      Porque o branco que um dia o visitou
                      Tudo ele lhe levou;
                      (...)

Todavia, há uma vertente moralizadora nessa reivindicação que não existe, parece-me, em outros escritores africanos, conterrâneos ou não. Marcelo da Veiga recorre ao efeito do Pathos (impacto emocional) para persuadir eticamente o leitor, europeu ou não, e chamá-lo à sua causa, servindo-se dos seus conhecimentos acadêmicos, mais do que fazer um discurso encomiástico à História lusíada, francesa ou da Antiguidade Clássica. É um pseudoencómico que actua subversivamente na organização semântica dos campos mítico, mitológico, ético, sócio-histórico e cultural num contexto de duas forças civilizacionais que se “digladiam” pela não subjugação de uma pela outra. Trata-se de uma moralização ideológica (e não de um moralismo) - através da História Universal – “à margem da Lenda e da História” e através de figuras ideológicas como metáforas, como considerou o organizador de O Canto do Ossôbó.

Com efeito, paralelamente à citação de figuras da História, figuras da Cultura popular são chamadas à cena: Madalè, Má Pédo, San Billanza, Baxan, Faviel Fernandes, Pédo Santa Rosa, Má Cuzo... Empenhado na valorização cultural da sua terra, através de um olhar regionalista fixado na ilha do Príncipe, o poeta incrusta no seu universo poético formas fragmentárias da expressão popular a vários níveis: artístico (dança, canto), ritualístico, das práticas religiosas, do código gnómico, ou do código social. Por vezes, essa tendência popularizante surge através de construções imagéticas (de pendor tradicionalista) e linguístico (lexicais, sintácticas e de sabor oralizante), da semântica simbólica dos fragmentos do repositório folclórico, legendário, místico e até histórico. Desse corpus fragmentário constam a crença na feitiçaria e no poder (e terror) do mestre feiticeiro em “San Bilanza”; a descrição das alegrias (folias) das gentes do Príncipe, em “Folia” em que o “narrador poético”, numa visão caleidoscópica, traz à cena as festas do Upá Bandiá (Picão, 13 de Junho);do Baio Num Xáa durante os festejos de Nossa Senhora do Socorro, com as suas quatro fases de juízes de festa (Mordomo, Escrivão, Tesoureiro e Provedor), a sua “procissão de gala/com foguete a estrugir” e a dança típica que nunca falta, o Ungoló; o Auto de Floripes ou o “São Lourenço” (por se realizar a 17 de Agosto) e as suas personagens (Carlos Magno, o Almirante Balão e as suas princesas, os heróis Roldão, Guy de Borgonha, Oliveiro, Ferrabraz...); e, finalmente, para culminar, as festas do fim-do-ano, o “Vindes Menino” no Ano Novo, cujas cantadoras são também imortalizadas em outros poemas: Madalê, Baxan, Má Cuzo, Má Pedo, entre outras. Festas, rituais ou passos de dança, tudo o poeta quer fixar para a posteridade,

                     
                      Pois de hoje a igual data
                      Ninguém diz se estará...
                                                         (“Folia”)


Assim é que ficamos, nós leitores, a conhecer também a dêxa, o socopé, o imberrêrrê, o inguerrêrrê e o ungolô[1] (por ex., em “Madalê” e “Eh! Baxan, Guigó – Má Cuzo”, poemas tecidos com fragmentos de canções antigas de dêxas:

                     
                      - “Sai subli, saia descê”
                      - “Ah! Sun dotôlô!...”
                                                   (“Madalê”)


Mas não apenas isso. A comunibilidade poética desses textos não se esgota na valorização dos aspectos folclóricos mas significa também a nível de História Cultural – por isso, a inscrição e o diálogo com figuras reais, elementos presentes na memória histórica do povo: Sun dotolô, Má Pedo, Rodrigo Santos, Má Cuzo, a Família Mata, a Família Lavres, Catuma, João Santa Rosa, Clemência... que se movimentam em lugares reais que (já) fazem parte do imaginário espacial do povo: praia da Armação, Abiá-Foca, terras de Simolô, roças do Ubá, Oquê-Boi e Lenta Piá, Picão, Montevidô e o Fundo San Lujiá Botê, Telegrama, a casa onde se realizavam os bailes... A História se estoriciza na poesia de Marcelo da Veiga para representar, já ao nível da significação, a plena existência do Homem Sujeito do universo designado. O discurso de Manuel da Veiga realiza-se, então, como popular não propriamente por ser sobre/da Cultura do (seu) povo mas sobretudo por pensar o povo como leitor ideal(izado) no processo da sua criação poética. E essa simultaneidade entre o processo de produção e a sua finalidade é que torna simbolicamente original a sua poesia. O diálogo com as figuras da cultura popular evocando a Tradição, garante a sua continuidade reafirmando-a viva – e isso também através do corpus legendário e mitológico como a lenda do okossô[2] (leia-se o poema “A okossô – Auá” e do Fundo San Lujiá Botê (“Há gente de são critério”), de que há outras versões (aliás, é rico o legendário dos fundos na Ilha do Príncipe)[3].

Embora já tenha sido referido o objectivo principal dessa atitude do poeta ao inserir na sua poesia, nalguns dos seus poemas, framentários pedaços do corpus da cultura popular, tradicional e folclórica, o poeta revela, mais uma vez, nesse regresso à terra e às suas fontes autênticas, a contaminação romântica que já se manifestara no pendor confessional e na tonalidade melancólica do seu discurso lírico – o que até se ajustava aos seus objectivos culturais e nacionalistas, este, aliás, assumidos.

A ironia como menção do indizível

Sim, porque este é, certamente, um posicionamento ético, uma “compensação ética” do sujeito que utiliza uma linguagem directa e coloquial plasmada, todavia, de uma amarga ironia.

Efectivamente, se retomar a ideia de Jankélevich[4], talvez se possa dizer que a ironia em Marcelo da Veiga se actualiza na alegria melancólica que o poeta sente ao apreender a verdade existencial (da existência real histórica).

Assim, Marcelo da Veiga, pode dizer-se não ter conseguido superar a ironia tendo-se fechado num desencantado pessimismo que se patenteia no tom decadentista que plasma tanto os seus poemas líricos como aquela outra poesia de motivação imediatamente social e ideológica ou ainda de evocação etnográfica e telúrica. Por exemplo no poema “A João de Castro”, toda a certeza de mudança da situação parece desfazer-se – ficando apenas uma desencantada dúvida – com a partícula condicional que abre o último verso. Transcrevo o poema na íntegra (e o negritado é meu):

      
           A João Santa Rosa 

João! Não sei o que és agora! Os outros
             Nem por eles pergunto
Tal como para a mangedoura os potros –
             Foram-se para o presunto.
O sonho e o Ideal que eram o nosso pão
             De cada dia já
Não vivem; dormem sob pedras num chão
             Que nenhuma flor dá.
Por isso nada evoca, e o que nós fomos
              Lançando à terra o grão
Não se perderá como o ardor dos pomos,
              Se há, num preto, um coração.


Mas, por outro lado, partindo da conceituação de ironia proposta por Dan Sperber e Deidre Wilson como “menção do subentendido”, isto é, o “fazer entender uma ideia sobre uma ideia”[5], pode dizer-se que em Marcelo da Veiga a ironia estrutura todo o processo de comunicação (poética) na medida em que o que é pensado realmente para transmissão é o que emerge do tecido metafórico. Quer dizer: quando no poema “A João Santa Rosa” o enunciado é “o negro é a bola”, não nos parece que o sujeito da enunciação tenha pretendido textualizar a situação em si (é evidente, aliás, que tal comparação – negro/bola – é sobretudo alegórica[6], portanto, ideológica). O que, de facto, o sujeito pretende reflectir (e transmitir) é a ideia de que é derisório desejo de o negro não ser bola (note-se as implicações alegóricas) numa situação como a colonial, parodiando a ideia em enunciação e não a situação em si, obviamente. É então que a poesia de Marcelo da Veiga se torna menção satírica anticolonial – mesmo porque a sátira só reflecte as contradições sociais e políticas do tempo face a uma consciência individual. E isso porque ela, essa poesia, cita, parafraseando, o discurso colonial chamando a atenção para a ideia nele veiculada:

                       
                       (...)
                       Porque é ditado antigo
                       Mas sempre novo e amigo,
                       - “Que assim se comem os tolos”...
                                                                         (“Prelúdio”)


Ou ainda:

                     
                       ‘Governo armou todo b’rranco...
                       ‘Todo b’rranco...’
                       ‘Mais moçambique ê guanguela’:
                       ‘Deitou fogo... queimou terra...
                       ‘Deitou bala... deitou bala...
                       ‘Deitou bala...’
                       ‘Subiu fumo como serra...
                       (...)

                                                           (“53”)


Trata-se, efectivamente, de menção de expressão, embora muitas composições do poeta se construam motivadas pela menção implícita de uma proposição ideológica; mas é interessante notar que aquelas (as da citação directa) são os textos mais satíricos de Marcelo da Veiga. Todavia, a funcionalidade ética dessa menção não é plena se o destinatário não a reconhece como tal – ou como paródia (pensando-se a imitação), por exemplo “53”, “O tempo vai, o tempo vem” ou Pué-Rupé”, poemas que se situam intertextualmente entre as margens da “Canção de sô Silva Costa”, de Francisco José Tenreiro, de Ilha de Nome Santo: a problemática socioeconómica ou a rápida ascensão do branco recém-chegado[7], ou ainda, e sobretudo, como determinada atitude do sujeito poético face a uma proposição, explícita ou implícita, cuja falta de justeza se pretende sublinhar e para cuja interpretação e apreensão o leitor tem de ter o conhecimento contextual da realidade em enunciação. Quer isto dizer que, e retomando o supracitado poema “Prelúdio”, um efectivo processo de “compreensibilidade intelectual do discurso” (Heinrich Lausberg) tem de passar pela História de S. Tomé e Príncipe de que a situação se refere ao massacre de Batepá, em 1953, perpetrado pelo governador Carlos de Sousa Gorgulho no seu segundo mandato – e o sublinhado é importante porque ilumina a “dramática” referência à “alegria” e ao “Viva o Governador!” da população que estava ainda sob os efeitos do  primeiro mandato:  

                       
                       Lá vinha o carro todo um primor
                       Com bandeirinha a agitar
                       Logo também a alegria,
                       A garotada corria
                       Atroando o ar
                       Com o “Viva o Governador!”

                       Sua excelência, de satisfação,
                       Jogava-lhes rebuçados, dropes, bolos
                       E moedas de tostão...
                       (...)


Mais: torna tenebrosamente significativo o título “Prelúdio” que pouco a pouco se vai revelando indicador de tragédia a partir da segunda estrofe com a “satisfação” de “Sua excelência” que enquando “jogava-lhes rebuçados, dropes, bolos/E moedas de tostão...” pensava “       que assim se comem os tolos...”! Mesmo em textos de matriz popularizante, construídos pretensamente com fragmentos de letras de canções de “dêxas”, o conhecimento da situação cantada torna-se necessário para a comunicação literária (que tem de pressupor, numa primeira fase, a comunicação linguística) e para a significação do poema que é de imanência socioeconómica, embora a nível do fenotexto (a estrutura visível do texto) apareça apenas o aspecto popularizante dessa poesia.  Assim, haveria que saber que Sun Larã Pereira era um branco comerciante que tendo desembarcado pobre na Ilha do Príncipe,

                     
                     Ano após ano,
                     Como um colosso,
                     Fez assim carreira;


fazendo negócio de peixe seco (“mala-peixe”) e arroz (“saco ‘rrôsso”).  E dada a miséria da população, as mulheres vendiam-se-lhe e ele possuía-as mesmo na sua lojeca, sobre os sacos de mercadoria (na história do povo: irmãs, mães e filhas...):

                     
                      Sobre o saco ‘rrôsco!...

                      Eram às dezena
                      Como para a escola,
                      Como para a escola,
                      .................................
                      Fosse aonde fosse,
                      De maneira
                      Que um proveito deixe...,
                                  Tó... tó!...,
                      Sun Larã Pereira,
                                  Tó... tó
                      Sobre a mala-peixe!...
                      (...)


Um poeta do Príncipe

A poesia de Marcelo da Veiga é um ninho textual que se vai tecendo com muitas preocupações, individuais e colectivas, com resignação, mas sempre com uma subtil (réstia de) esperança. Significativa foi, por isso, a organização que Manuel Ferreira deu aos poemas – notem-se as datas e os conteúdos dos poemas “Do derradeiro discurso” – sobretudo o lugar do último, particularmente agrupado em “O enunciado da esperança”, intitulado “Um dia!” e dedicado a conhecidas e históricas figuras de S. Tomé e Príncipe.

Mais: significativamente escrito na Ilha do Príncipe, em Omomó[8], lugar mítico de reencontro total.


NOTAS

1 Este texto é, basicamente, a “Introdução” (reescrita) a O Canto do Ossôbó, de Marcelo da Veiga (Organização de Manuel Ferreira), Linda-a-Velha, ALAC, 1989. Em 1998 passou a integrar a obra Diálogo com as ilhas: sobre cultura e literatura de São Tomé e Príncipe.
Este trabalho foi redigido a partir de um corpus bastante menor do que os 345 (trezentos quarenta e cinco) poemas de O Canto do Ossôbó.

2 In: Jacinto do Prado (Cood.), Dicionário de Literatura, vol. 1, Porto, Ed. Figueirinhas, 3ª ed., 1982, pp. 140-3.

3 Dêxa: ritmo e dança da ilha do Príncipe.

  Socopé: ritmo e dança das ilhas de São Tomé e Príncipe.

  Imberrêrrê: ritmo/dança da ilha do Príncipe que se escuta segurando cacete. Realizava-se em festas      de santos.

  Inguerrêrrê: jogo de cacete; o próprio cacete.

  Ungolô: dança típica muito antiga (ilha do Príncipe)

4 Okôsso (aliás, ocossô): o mesmo que albino.

5 Cf. o capíitulo “Os fundos: um legendário principense”.

6 In: Dicionário de Literatura, vol. I op. cit., pp.199.

7 Dan Sperber e Deidre Wilson, “Les ironies comme mentions”, in Poétique/36, Paris, Seuil, 1978, p.402.

8 Aqui, um breve parênteses: penso a alegoria como um sistema de significações meta-semânticas cujo dinamismo é o recurso a representações figuradas. Como essa figuração, de algo que se pode conhecer de uma outra maneira, é convencionada, a alegoria não tem outra razão de ser senão a de significar e transmitir uma ideia – motivo pelo qual ela se dirige mais à intelecção.

Cf; Jean Chevalier, Dictionaire dês Symboles, Ed. Robert Laffont, Jupiter, Fr.,1969.

Gayatri Spivak, “Alegorie et histoire de La poesie, “in Poétique, 8, Paris, Seuil, 1971.

Tzvetan Todorov, Teorias do Símbolo, Col. Signos, Lisboa, Edições 70, 1979.

9 Pué-Rupé tem o significado conotativo de “homem grande”, “homem importante”, “grande senhor”. Literalmente significa “homem/pai branco”.

10 Roça de Marcelo Veiga da Mata, situada entre a roça de Simão da Mata e a roça Nova Cuba.



[i]
Professora de Literaturas, Artes e Culturas (LAC) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, investigadora do Centro de Estudos Comparatistas (CEComp/FLUL) e diretora do Doutoramento em Português Língua Estrangeira/Língua Segunda. É doutora em Letras pela Universidade de Lisboa e pós-doutora em Estudos Pós-coloniais (Postcolonial Studies, Identity, Ethnicity, and Globalization) pela Universidade de Califórnia, Berkeley. Atua, no ensino e na investigação, principalmente na área dos estudos pós-coloniais, e interessa-se pelos seguintes temas: literaturas e culturas africanas, relações estéticas entre literaturas em português, literatura-mundo, estudos de memória, produção literária de autoria afrodescendente em Portugal e comunicação intercultural. Professora visitante de muitas universidades estrangeiras, é igualmente membro do Conselho Editorial e Científico de muitas revistas de especialidade, nacionais e estrangeiras.


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