Marcelo da Veiga: o poeta e a terra[1]

Inocência Mata[i]

O homem, a poesia e a vida

A vida e a poesia confundem-se em Marcelo da Veiga de tal forma que se pode dizer que se está na presença de, pelo menos, dois poetas: um poeta lírico e  um outro de poesia engagée. Isso porque Marcelo da Veiga é um poeta multifacetado cuja poesia foi, ao longo das seis décadas em que escreveu, revelando matrizes diferentes, manifestas no modo de expressão formal: ora lírico, ora narrativo, ora dramático. Isto é: ora uma poesia de amor e amizade, ora uma poesia sobre a realidade social colonial ora ainda uma poesia sobre a cultura e a terra, representadas através de uma retórica de eloquência oratória e teatral. 

É autor de apenas um livro. O Canto do Ossôbó, postumamente publicado em 1989, contendo trezentos e quarenta e quatro poemas - tantos quantos o espólio literário que se conhece e que chegou às mãos de Manuel Ferreira (falecido em 1992), através (segundo informação contida na nota da organização)[2] da viúva, D. Maria Luísa Sequeira Pinto Veiga da Mata e filhos, com especial destaque nesses contactos para a filha Senhoria Casimiro (eram vinte cadernos de 20-60 páginas maioritariamente manuscritos e organizados).

Tem poesia dispersa, que se restringe quase à colaboração que prestou em Correio d’África (nos anos 20) numa secção literária intitulada “Torre de Ébano”, onde, para além de Marcelo da Veiga, publicaram também Caetano da Costa Alegre postumamente, Herculano Levy e Mário Domingues. Mas a sua poesia é modernamente conhecida através das antologias Poetas de São Tomé e Príncipe (1963) e No Reino de Caliban (1976).

Mas começando pelo princípio, Manuel Francisco Veiga da Mata Nasceu na ilha do Príncipe a 3 de Outubro de 1892, tendo falecido em S. Tomé a 3 de Março de 1976. Pai de seis filhos (todos nascidos na ilha do Príncipe), era filho de João Veiga de Almeida e de Maria da Cruz Mata Almeida. Com apenas onze anos viajou para Portugal onde estudou no Colégio Calipolense, no Liceu Pedro Neves e no Liceu Passos Manuel. Segundo informação da sua filha, Senhoria Casimiro, terá frequentado as Faculdades de Medicina e de Direito[3].

Em 1928 (aos 36 anos), empreende uma das suas mais longas permanências na sua ilha (pelo menos até 1959), para se dedicar à exploração da sua roça (creio que a Roça de Onmomó, situada entre a roça de seu primo Simão da \Mata e a Roça Nova Cuba), roça ainda hoje na posse de seus descendentes, (regressará outras vezes à ilha natal, em 1960, quando é posto em liberdade em Luanda em 1971 e em 1973). Em 19 de Agosto de 1959 é preso em São Tomé pela PIDE, sendo a causa imediata dessa prisão o veemente poema “A África é nossa”, escrito já em 1935 mas engavetado e só “descoberto” em 1959. Mas, de facto, a sua prisão e deportação para Luanda dever-se-á à sua participação no movimento de denúncia da situação do país, da monocultura do cacau e do café e do regime do contrato, sistema que da escravatura só diferia na designação e no estatuto político. Em Luana será julgado em Tribunal Militar, de onde sairá em liberdade e regressará ao Príncipe em 1960. É da prisão em São Tomé (cadeia Civil) o seu belíssimo metapoema “A minha pena”:

            A minha pena

A minha pena é meu machado, com ela
Desbravo a mata hirsuta, secular,
Pra que, em torrente, a luz
Nela jorre e o ar. 

A minha pena é minha enxada, com ela
Cavo a terra dura onde o grão
Há-de surgir em messe
Há-de ficar em pão.

A minha pena é meu clarim, com ela
Grito na noite incerta
Aos que vão sem arrimo, como párias:
Alerta! Alerta! Alerta!

        Cadeia Civil de S. Tomé

                   Outubro de 1959

Todavia, a maior parte dos seus poemas, escrevê-los-á em Portugal (Amadora), segundo datação feita pelo próprio nos cadernos deixados. Não admira, pois, que O Canto do Ossôbó tenha sido patrocinado pela Câmara Municipal da Amadora (para além do Instituto Português do Livro e da Leitura), numa homenagem àquele que, de 1962 a 1971, morou na Avenida de Lourenço Marques, nº 22, à Amadora.

O círculo de amizades

Conviveram com várias figuras, eminentes políticos e intelectuais são-tomenses, tais como Francisco José Tenreiro, Mário Domingues, Engº Pasqual Pires dos Santos, Pasqual de Almeida, Engº Salustino da Graça do Espírito Santo, Januário da Graça do Espírito Santo, João Santa Rosa, João Catarino Duarte... Figuras incontornáveis do nacionalismo são-tomense e africano, processo em que a participação da elite são-tomense (dos “filhos-da-terra”) foi muito importante. Figuras a quem Marcelo da Veiga dedica inúmeros poemas, de cariz nacionalista, em que as figuras e sujeitos poéticos dos poemas, funcionando como interlocutores na verberação da situação colonial, ou, apenas, do status quo, se constituem como metáforas de efeito ideológico:

          Francisco Tenreiro

A vida vale pelo vinho e a esperança
Que a fazem promessa desde criança
Mas flor já e já pronunciando o fruto
       Eis o aguilão
       E ei-la no chão
E em vez de gala em seu lugar o luto
A tua morte faz cismar
       Meu leão!
A folha seca cai no chão
       E há razão!
Mas da Haste verde despegar
       É que não!
Destino? Não! Mistério...
Mas mistério o que é que significa?
Mistério! e mistério em mistério fica
No mudo e frio chão do cemitério...
       A tua morte
               Meu leão!
                                   “Falecido na passagem do Ano de 63 para 64” (N.A.) 
                                                                                                     09.06.64

Ou esseoutro

A João Santa Rosa

O preto é bola
É pim-pam-pum!
Vem um:
- Zás! Na cachola.
- Outro – um chut – bum! 
“Aqui d’el-rei”
Grita ele louco.
Vem o da lei
Diz-lhe “ainda é pouco!”

Ou, ainda, essoutro a Julieta da Graça do Espírito Santo, a “Dr.ª Julieta” (como é conhecida), com quem não sei se o poeta terá convivido, mas que certamente  admirava e a quem dedicou o poema “Mais feliz que Diógenes”:

Mais feliz que Diógenes
                 À Drª. Julieta Graça E.Santo

Diógenes anda, em pleno dia,
Avançando a custo
Indiferente ao riso que o seguia
Com uma candeia acesa.
Porquê? Até hoje, não há certeza...
Disse-se só que à busca de alguém justo!

Mais feliz que o grego ilustre não busquei,
Em vão, variando o rumo
Senhora! Em vós achei
O que buscou: - “uma dama com aprumo!”

                                  Tomé, 5.2.74

Recorrente na sua poesia é a homenagem a figuras conceituadas da sociedade principense, como se vê no poema “A família “Mata””, ou aqueloutro dedicado à família Lavres; com figuras da cultura da ilha e do imaginário histórico-cultural do país, como San Dilanza, Má Cuzo ou Má Pedo[1].

Conviveu também com intelectuais e escritores portugueses como o Prof. Hernâni Cidade, o Juiz Barbosa de Viana, António Cajão, Almada Negreiros, Mário Elou ou o Dr. Jorge Falcão (seu condiscípulo no Colégio Calipolense).

Não se pode considerá-lo do grupo dos “Poetas da Casa dos Estudantes do Império”, como Francisco José Tenreiro, Alda Espírito Santo, António Tomas Medeiros e Maria Manuela Margarido, embora o espírito da sua poesia e a sua praxis poética fossem os mesmos daqueles “poetas políticos”, veementemente assumindo a sua ideologia nacionalista. “Poetas de gaveta”, mormente, a sua inclusão em Poetas de S.Tomé e Príncipe (1963) dar-lhe-á a projecção merecida enquanto poeta, pois o homem preferia continuar discreto.

As matrizes poéticas

Mas a poética de Marcelo da Veiga não se constrói apenas a partir da pulsão afectiva, sentimental e emocional (o espaço familiar, o contexto matricial da sua poesia lírica e o círculo de uma nostálgica e regeneradora afectividade). Pelo contrário, à margem do lirismo amoroso e telúrico, as figuras históricas e simbólicas funcionam como metáforas ideológicas na expressão do universo humano são-tomense, africano e universal. É como se o quotidiano da sua ilha natal, a omnipresença do mar (melhor, o fascínio do mar), a suavidade da luz matinal ou a beleza do arrebol só o fossem se se casassem com a paz mundial e a fraternidade e o bem-estar humanos.

Poeta-cantor de dores colectivas, em Marcelo da Veiga as convicções ideológicas não são negociáveis: não o serão durante o colonialismo, não vão sê-lo depois da independência. O seu discurso crítico e satírico é, sim, universal e o Homem é o único objectivo poético sagrado da sua escrita. E para expressar a sua dimensão humanista e a sua sólida disponibilidade universalizante, ao lado de símbolos e signos do universo negro-africano – o contexto motriz da sua produção poética – entrecruzam-se outros que já fazem parte da cultura e da história universais.

Com efeito, ao lado de políticos africanos como Lumumba (leia-se o poema “Lumumba”), desfilam Wilson Churchil (“Winston Churchil”), ao lado de figuras lendárias da História como Cipião, o Africano, Anibal Barca, Mandume ou Gungunhana, desfilam outras como Viriato, Abraham Lincoln: a celebração de Nat King Cole (“Nat King Cole – cançoneta”) e Duo Ouro Negro (“Duo Ouro Negro”), junta-se à de Amália.

Amália! Amália! Tu devias ter
Sempre trinta anos! ser
Sempre uma primavera
Ser sempre a verde era
(...)

Outrossim, o canto a Harriet Stowe (“Harriet Stowe”) ou Costa Alegre (“Costa Alegre”) completa o de Camões, (em muitos poemas), Bocage (“Bocage I” e “Bocage II”), ou Gomes Leal (“Gomes Leal”); tanto chora o poeta a injustiça da morte de Francisco José Tenreiro ou do Eng.º Salustino da Graça do Espírito Santo (“Para a campa do eng.º Salustino da Graça do Espírito Santo”), como a do Papa João XXIII (“Na agonia do Papa João XXIII”), a do escritor inglês Stephen Ward (“Stephen Ward (morreu): devasso inglês”) ou a do seu grande amigo e condiscípulo Dr. Jorge Falcão; se o seu grito é de revolta e lamentação pela precária situação das gentes de Príncipe (em inúmeros poemas) e pela guerra de Angola, também o é pelos inundações do Ribatejo. A sua admiração vai para as manifestações culturais de São Tomé e Príncipe – que celebra com extraordinária afectividade cultural: a dêxa, o ungolô, o inguerrerrê (jogo de cacete), o imberrerrê, o socopé, o Baio Nun Xaã, as festas do Upá-Bandiá (Picão, 13 de junho), o Auto de Floripes (vulgo: São Lourenço). Mas também vai para o fado, o “blues”, o “gospel”, o batuque das noites equatoriais, a “Marselhesa”, para a dimensão simbólica de uma Joana d’Arc ou de um pai Tomás...

                   Pai Tomaz

Pai Tomaz, quem é? É a dor que espera:
Náufrago que pressente a madrugada
Roble torcido, ferido pela nortada
Que lhe deixa na seiva a primavera
                                                Amadora, 1964

Marcelo da Veiga é, pois, um poeta total, um poeta cuja terra começou no Príncipe – mais precisamente em Omomó - e se expandiu pelo Mundo inteiro, rasgando caminhos bloqueados pelo ódio e pelas diferenças e fazendo uma poesia que é expressão de múltiplas sensibilidades: cantou a África e a Europa – duas entidades metaforicamente dissonantes em contexto colonial:

    A cartilha deles (colonos brancos)

A cartilha é só uma, e, nela,
Três palavras que lêem a uma voz
Em um coro que gela,
Reboante, feroz:
- “Tudo para nós...”

Por isso, só miséria é que ficou
Onde a sua mão rapace tocou.

                                    S.Tomé, 14-11-73

Cantou o Homem negro e o Homem branco, repudiou o colonialismo, a ditadura e a intolerância, viveu do Amor, da Amizade, da Esperança e dos ideais do Homem Universal. Enfim, viveu da Poesia. Mais do que só são-tomense, Marcelo da Veiga é um “cidadão do mundo”:

       Direito à Liberdade

Vem com o primeiro vagido
E fica, no nosso peito,
À espera, comprimido,
Da sua hora esse direito.

Como um grão num fundo escuro,
Que mal vê a claridade,
Incha e rompe do chão duro,
É assim na alma a Liberdade.

Não se faz à escuridão
Pra onde a jogam para a afogar,
Assim que a bafejar o ar,
Se erguerá tal qual o grão.

Por isso, o ímpeto feroz
Do seu sofrer duro e longo
Que em Noventa foi algoz,
Viverá; não parou no Congo! 

NOTAS

1 Palestra proferida no dia 05 de setembro de 1997, no hall do Cinema Marcelo da Veiga, em São Tomé, assinalando a oficialização da Associação dos Amigos do Cinema Marcelo da Veiga. Em 1998 passou a integrar a obra Diálogo com as ilhas: sobre cultura e literatura de São Tomé e Príncipe.

2 Nota bibliográfica” in Manuel da Veiga, O canto do Ossôbó, Linda-a-Velha, ALAC, 1989, p. 9.

3 Ibidem

4 Uma figura recorrente do corpus dedicatório da poesia de Marcelo da Veiga é D. Ana Luís Brito, cuja identidade é, ao que julgo, até agora desconhecida.


 

[i] Professora de Literaturas, Artes e Culturas (LAC) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, investigadora do Centro de Estudos Comparatistas (CEComp/FLUL) e diretora do Doutoramento em Português Língua Estrangeira/Língua Segunda. É doutora em Letras pela Universidade de Lisboa e pós-doutora em Estudos Pós-coloniais (Postcolonial Studies, Identity, Ethnicity, and Globalization) pela Universidade de Califórnia, Berkeley. Atua, no ensino e na investigação, principalmente na área dos estudos pós-coloniais, e interessa-se pelos seguintes temas: literaturas e culturas africanas, relações estéticas entre literaturas em português, literatura-mundo, estudos de memória, produção literária de autoria afrodescendente em Portugal e comunicação intercultural. Professora visitante de muitas universidades estrangeiras, é igualmente membro do Conselho Editorial e Científico de muitas revistas de especialidade, nacionais e estrangeiras.

 
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