Vera Duarte: tecendo afetos, palavras e poéticas em tempos de silêncio
Luciana Brandão Leal
[...]
Quando a pandemia passar
Um frémito de vida
Agitará o sangue do meu coração
E nas minhas veias a inspiração renascerá
Não posso assim morrer
Antes que a pandemia passe
(Vera Duarte)
O livro mais recente de Vera Duarte Pina é Urdindo Palavras no Silêncio dos Dias (2024), publicado no Brasil, em 2024, pela Casa Brasileira de Livros. A capa do livro oferece um presente ao leitor, que pode observar uma teia cuidadosamente tecida entre hastes já secas, o que dialoga intimamente com o título da obra. A imagem resgata a ideia da passagem do tempo, do trabalho minucioso de tecer, e se desdobra em intertextualidades possíveis com a própria tessitura dos poemas apresentados no livro, trabalho que a autora nomeia como “urdidura de palavras”. A palavra urdir tem origem etimológica no latim “ordior, iri”, que significa “começar a tecer”, “enredar”. Assim, os poemas são um convite ao leitor a se entregar à urdidura de Vera Duarte, que elabora “palavras no silêncio dos dias”. Em subtítulo ao livro, a escrita é localizada em tempo e contexto bem definidos, são “poemas de um tempo de pandemia”, datando esses poemas em um período de trauma compartilhado, em que vivenciamos as restrições impostas e os drásticos efeitos causados pela Covid 19.
A coletânea foi muito bem recebida e divulgada pela crítica, sendo considerada um hino à África e à mestiçagem cultural. O livro foi apresentado em Lisboa, em abril de 2022; no Brasil, a edição da Casa Brasileira de Livros foi lançada em 2024, no Rio de Janeiro, na UERJ, em evento mediado por Carmen Lúcia Tindó Secco.
Vera Duarte Pina nasceu em Cabo Verde, onde vive, é desembargadora, poeta e ficcionista. Licenciou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa em 1978. Foi Ministra de Educação e Ensino Superior e atua em diversas comissões, conselhos e associações de mulheres em Cabo Verde e em Portugal. Sua primeira obra poética, Amanhã Amadrugada (1993), foi republicada pela editora Kapulana, em comemoração aos 30 anos da primeira edição. Outros títulos seguiram a esse primeiro livro, como O Arquipélago da Paixão (2001, Prix Tchicaya U Tam’si de poésie africaine), A Candidata (ficção, 2004, prémio Sonangol de Literatura), Preces e Súplicas ou os Cânticos da Desesperança (poesia, 2005), Construindo a Utopia (ensaio, 2007), A Palavra e os Dias (crônicas, 2013) e A Matriarca – Uma Estória de Mestiçagens (romance, 2017).
Como nos explica Cândido Luís Vasques, em resumo da obra, “este livro passeia por vários temas, contando com poemas de várias formas (e também com prosa poética)” (VASQUES, 2024, p. 15). Há, nele, uma voz que se insurge contra as injustiças sociais e debate temas como o racismo; há a projeção do amor pelo continente africano; temas mais subjetivos e intimistas como o amor e suas múltiplas feições; há, também, os recursos próprios dos hibridismos literários, como o uso do “crioulo” que rasura a língua portuguesa. Por fim, abrem-se frestas de esperança em uma seção que evoca a felicidade, de forma metapoética, em uma escrita que é resistência e é, também, um clarão de esperança em tempos que foram tão sombrios.
A obra é estruturada em quatro estações poéticas, cada uma refletindo diferentes aspectos da experiência humana e social da voz lírica de Vera Duarte, como se vê pelas subdivisões do próprio livro. A forma como as seções são intituladas retoma, intertextualmente, o caminho da “Via Sacra”, permitindo que o leitor retome, mentalmente, uma jornada de sofrimento e reflexão.
Na “Estação Primeira – novos poemas negreiros”, a epígrafe pede “a bênção Zumbi dos Palmares”, “A benção Castro Alves” e “A benção Marcelino Freire”. Nela, a autora explora memórias dolorosas do passado, abordando temas como injustiças sociais e racismo, com referências a figuras históricas como Zumbi dos Palmares e Castro Alves. Nesta seção, destaco o poema “Manifesto”, escrito em primeira pessoa, cuja voz se desdobra em outras vozes de mulheres e homens africanos que são aí representadas:
Não sou a bandeira da raça
Nem a última flor do lácio
Transito
Por povos e continentes
Por vezes angustiada
Por vezes desvairada [...]
(DUARTE, 2024, p. 24).
Na “Estação Segunda – do coração sangrante”, a epígrafe apresenta uma constatação melancólica de que “Nem todos os amores são fadados a um final feliz”. Nesta “Segunda Estação”, sobressaem poemas líricos que celebram o amor e a busca por liberdade, ainda que imersos nos silêncios impostos pela pandemia. Em “De madrugada”, podemos ler: “Saiu de madrugada / Dizendo que voltaria / Saiu de madrugada / Carregando minha esperança / Saiu de madrugada / Destroçando o meu futuro [...]” (p. 60).
Na “Estação Terceira – da palavra andarilha”, a voz lírica se define e se evoca de maneira subjetiva, em epígrafe que anuncia “Uma viagem de circunvolução à volta de mim, das ilhas e do mundo”. Nela, destaca-se a "palavra andarilha", refletindo sobre a mobilidade e as muitas diásporas dos cabo-verdianos, enfatizando a mestiçagem e a identidade crioula. O primeiro poema dessa seção, “Alma andarilha” é subjetivo e metalinguístico, cujos versos apresentam uma voz que busca se definir em trânsitos: “Sou liberiana / Sou bandida, doida varrida / E a minha alma andarilha / Só de fonemas se mantém” (p. 71). Temos uma voz intimista que também acolhe outros trânsitos, como no poema “Marinheiros”, em que se lê: “Eu canto os ilhéus marinheiros / Que navegam todos os mares / Para acordarem temerosos / De não verem o dia claro / Na avenida marginal / Da sua eterna Mindelo” (p. 79).
Na “Estação Quarta – da irredutível felicidade”, prenúncios de esperanças se deixam (ante)ver pela epígrafe “E a chuva caiu...”. Como se sabe, Cabo Verde é um país assolado pelas recorrentes secas, sendo esse um problema ambiental e socioeconômico crônico. Essa epígrafe da quarta estação ganha, então, tons de esperança, de renascimento e recomeço. Na “Estação Quarta”, a voz poética de Vera Duarte busca a libertação plena e a ressurreição, celebrando a beleza da vida e da arte como formas de resistência e renovação. Em um poema narrativo, “Chuva”, vislumbra-se um “novo tempo”, tão esperado e desejado: “Chove nas ilhas e cada gota que consegue molhar o chão ávido de anos de seca penetra nos meus poros por onde passa a corrente da felicidade e, em cadeia, faz assomar o sorriso à minha face, enquanto todo o meu corpo se enche de júbilo...” (p. 119). Começa, assim, “a dança da felicidade” (p. 120).
Vera Duarte Pina elabora linguagem poética rica e multifacetada, mesclando o português com o crioulo cabo-verdiano, o que confere autenticidade e profundidade à obra, para celebrar “no altar da (sua) crioulidade” (p. 125). A autora aborda questões íntimas e subjetivas, extrapola suas reflexões, por meio de uma voz lírica que considera questões sociais prementes, como feminicídio, pedofilia, violência contra mulheres e emigração clandestina, sempre com uma perspectiva crítica e reflexiva.
A coletânea Urdindo Palavras no Silêncio dos Dias (2024) reúne 100 poemas escritos entre junho de 2020 e julho de 2021, período marcado pelo colapso global e pelo silêncio ensurdecedor imposto pela pandemia de COVID-19. Curiosamente, o último poema da obra, o número 100, é intitulado “Utopia”. O jogo do texto desdobra-se em possibilidades de leitura como: “sem utopia” ou “cem utopias”, que são os próprios poemas reunidos nessa urdidura de palavras e afetos que o leitor tem em mãos. Em um jogo metapoético, a voz lírica de Vera Duarte propõe, também, uma louvação à poesia e a evoca como forma de resistir e de ressignificar, em urdidura, o silêncio e as sombras dos dias pandêmicos.
Em suma, Urdindo Palavras no Silêncio dos Dias (2024) é uma obra que combina lirismo e crítica social, oferecendo ao leitor uma visão profunda da realidade cabo-verdiana, que se desdobra, a partir da elaboração ética e estética, em uma experiência humana universal.
Pará de Minas, 28 de maio de 2025.
Referências
DUARTE, Vera. Urdindo palavras no silêncio dos dias. Rio Pardo, RS: Casa Brasileira de Livros, 2024.
VASQUES, Cândido Luís. Texto de apresentação de “Urdindo palavras no silêncio dos dias”. Casa Brasileira de Livros [página inicial]. 2024. Disponível em: https://www.casabrasileiradelivros.com/post/texto-de-apresenta%C3%A7%C3%A3o-de-urdindo-palavras-no-sil%C3%AAncio-dos-dias-por-c%C3%A2ndido-lu%C3%ADs-vasques-editor. Acesso em: 28 abr. 2025.
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Luciana Brandão Leal é Doutora em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC Minas. Atuou como investigadora visitante na Universidade de Lisboa, com bolsa CAPES de doutorado-sanduíche. Professora Adjunto II da Universidade Federal de Viçosa (atuando no campus Florestal). Coordena projetos de pesquisas “Poesia moçambicana do século XX” e “Corpo e territorialidade em Maureen Bisiliat e Marcel Gautherot”, ambos registrados na Universidade Federal de Viçosa (2020-2022). Membro do grupo de pesquisas GEED – Grupo de pesquisas em estéticas diaspóricas, coordenado pela profa. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca. Publicou, em 2019 e 2020, dez artigos em revistas acadêmicas nacionais e internacionais com estudos sobre poesias das literaturas de língua portuguesa, além de artigos sobre a obra de Machado de Assis. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..