Quando florirem salambás no tecto do pico,

de Conceição Lima

Assunção de Maria Sousa e Silva

 

A primeira ilustração do livro de poemas Quanto florirem salambás no tecto do pico, de Conceição Lima, poeta de origem são-tomense, destaca o desenho de uma mulher africana sobre o mapa do continente africano, cujos pés se mesclam com raízes e folhagens. A bela ilustração de Santiago Regis, junto com projeto gráfico e diagramação de Sylvia Vartuli, cuidadosos e impecáveis, já apontam, pela via semiótica o vigor e a delicadeza da escrita poética de Conceição Lima. Isso também repercute na última ilustração, o desenho de vestido exposto ao vento. O mapa, a mulher e o vestido se complementam traçados nas ramagens como signos a demarcar a territorialidade e a humanidade africanas. O livro, recém-publicado, encontra-se no catálogo da editora brasileira Mazza Edições, desde 2024.

O título do livro antecipa uma dimensão de temporalidade que atende ao percurso da manifestação das relações humano – natureza com sinalização para “quando florir as salambás”, tempo que remete ao processo de transformação da palavra e do ser nas ramagens no teto do pico. Os vinte e cinco poemas são construídos sob o argumento da interlocução, procedimento e recurso recorrentes na poética de Conceição Lima. O poema inicial anuncia que a escrita traz o propósito de “nomear a casa”. Certa casa, talvez projetada e construída em tempos passados, mas habitada de palavras por onde podemos retornar ao seu primeiro livro Útero da casa, no qual está ramificado e assentado seu projeto estético-literário.

A experiência e zelo estético de Conceição Lima, adensada por ritmo e imagem, traveste os versos em formas de dizer o mundo e sobre ele na propagação de ideias e posicionamentos, condensados em livres construções, por onde ondulam e resulta um estrato linguístico engenhoso, em que o dito incorporado tensiona a palavra, a fim de nutrir e conceber em transparência o que o eu poético expressa ao Outro - esta instância receptiva ideal e virtual que filtra a poesia. Quem é o tu para o qual a poesia é anunciada? Quem é o eu que revela o domínio sobre a “língua clara” e se revela conhecedor dos abismos que transformam as dores em maravilhas?

A poesia de Conceição Lima se reveste de um teor dual, transparência e densidade; um percurso simbiótico enigmático, regado de uma vidente opacidade minada nas entrelinhas cujos títulos são enumerados, predominando poemas estruturados por uma ou mais estrofes de versos cursos e sentenciosos, imerso numa posição de transculturalidade - África e América – ressoando a busca por liberdade em marcha heroica nas “calles” e nos “palmares”. O poema clama que fronteiras não há quando se desveste as grades da empáfia. Tais grades se desvanecem e a canção poética espreita a chegada tão esperada.

O canto ao outro é o canto do outro que se espera com a previsão de que este chegue, após a tormenta, “libertar o grito dos afogados / Neste ilhéu inesperado”. Daí, no emaranhado dos dias, a casa permanece erguida, a testemunhar o tempo histórico, pela exaltação da palavra – fruição que metaforiza tanto a própria “casa”, os “carroceiros”, a “varanda”, “a pressa é irmã da [...] mãe”. Nesse percurso poético, o eu que enuncia encorpa a dor da perda, da violência incontida.

Eis a casa na colinha a tua espera

Guardo da avó a paciência

Mas tomba sobre nós o peso desta sombra.

 

Fecharemos as janelas deste quarto?

 

Fugiremos dos estrondos?

 

Mariam foi raptada, não voltará da escola

Com seu lenço de seda e de confiança

A caneta carregada de futuro. (Lima, 2024, p. 57)

Até quando suportamos os rompimentos de nossas rotinas e de nossos sonhos futuros? Detemo-nos a ficar ou a nos esvairmos do lugar dos estrondos que nos afugenta, ainda que nele persistam relações que nos fortalecem?

No poema seguinte, outras perguntas nos abalam e, ao mesmo tempo, nos confortam: “Ainda nos poderemos amar? / Salvar-nos-emos dos abismos da surdez?” (Lima, 2024, p. 59).

A poesia de Conceição Lima nos coloca sob vigília, atenção e cuidado. O eu que fala diz do seu propósito, no entanto sabe das contentas. O outro evocado, cujo nome prenuncia “excesso e carência geminado”, sustenta os anseios das palavras. O passado retomado refaz-se na ânsia do presente. A lembrança e o esquecimento dão base ao poema em que a urgência não remedia o vivido. Por isso a poeta lança o clamor com pergunta referida acima: “Salvar-nos-emos dos abismos da surdez?”. Uma mirada às vozes e nomes do Renascimento do Harlem (1920) se dissemina nos caules de outro poema, na convocação de outra voz que conhece os rios e ressoa no esmero da criação a homenagem a Langston Hughes, “A voz do Mississipi descendo até Nova Orleães / O Mississipi cantando sempre até Nova Orleães...” (p. 62). No entanto, a dedicação do poema 19, indica que a feitura se deu “com o poeta Langston Hughes” e não sobre ele. Tal expediente sinaliza o próprio modo singular do poeta cuja poesia se dirigia ao povo negro, servindo-se de temas e linguagens enunciadores da história e do quotidiano dos negros americanos. Conceição Lima reforça a imagem do poeta que para além da chama de um despertar de novas consciências é aquele que “embebe a profundidade dos rios ancestrais / quando despimos a solidão no leito de Kwanza.” E nesse feito, a poeta faz o caminho de volta das Américas interligando-as à África.

A dimensão simbólica dos rios repercute entre “os rios anteriores ao percurso do sangue nas veias humanas” (poema 19), revigora a relação América e África para, no momento poético seguinte (poema 20), voltar-se para o rio de dentro de si que, por conseguinte, se assemelha “ao coração da ilha” e o rio deságua no Água Grande, que é, senão, “irmão de todos os rios” (p. 65).

[...]

Água Grande não tão Congo não tão Nilo

Água Grande sem canoas sem regatas

Apenas rio

Cumprindo no mar seu destino de água.

 

Mas tu que conheces todas as cidades

Tu de tantos rios peregrino habitante

Não conheces o rosto de minha cidade

Não conheces o rio no corpo da minha cidade.

 

Água Grande além de todas as viagens

Rio apenas, irmão de todos os rios. (Lima, 2024, p. 65)

Nesse encalço, podemos identificar uma retomada desse tema em outro momento poético de Conceição Lima, que resplandece no seio do largo projeto de seu primeiro livro de poemas O útero da casa (2004), quando canta “Os rios da tribo”.

Que rios reverberam em nosso leito?

Quantas tribos injetadas em teu peito?

Nhá Maria de onde é?

Nhô Ambrósio nasceu em Água Izé?

E Katona, Aiúpa, Makolé?

Silva, Danquá, Cassandra, Camblé... Padicê, Mé Pó, Filingwé...

Quantos nomes fundam transmutam minha fronte?

(Lima, 2004, p. 38)

Como vimos a poesia de Conceição Lima, densa e bem talhada, executa o tratamento esmero com dada compreensão da realidade são-tomense expansiva no lastro dos sentidos africanos na diáspora. Se de um lado prima pela concretude das coisas, no intenso lavrar das malhas do verso, por outro apresenta um domínio de revelar a amplitude das coisas.

Quando florirem salambás no tecto do pico (2024), o mais recente livro de poemas da poetisa, cronista e jornalista são-tomense Conceição Lima, compele-nos a pensar sobre nossos sentidos nesse movimento de nos virarmos para a poesia engendrada nas veias, nos caules e nos frutos de São Tomé e Príncipe e compreender a convocação da autora para “testemunhar este ingente nascimento / Esta aprendizagem de audácia e paciência” (Poema 24) e, por conseguinte, reconhecer a imaginada casa onde o ser que fala habita e que “instiga / irrevogável projecto de prumo e claridade” (p. 73).

Por fim, para finalizar este texto que se quis resenha, convido leitor e leitora a ler o primoroso livro que nos instiga e inquieta. Uma fonte preciosa de sabor / labor poético.

Teresina, janeiro de 2025


Referências

LIMA, Conceição. Quando florirem salambás no tecto do pico. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2024.

Lima, Conceição. O útero da casa. Lisboa: Caminho, 2004.

 

 

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