


Apresentação do livro Um anel na areia, de Manuel Rui [1]
Tânia Macedo [i]
A cerimônia de lançamento de um livro é, via de regra, o ato que marca a sua passagem a uma destinação pública, o momento em que o texto deixa o domínio de seu criador para correr mundo e “criar mundos” em seus leitores. Dessa forma, participar do ato de apresentação de um livro constitui-se em experiência extremamente gratificante, pois é como se um pouco da sua imortalidade também pudesse ser por nós compartilhada. E se o livro é de Manuel Rui, um dos mais importantes autores das literaturas de língua portuguesa, a responsabilidade é imensa, pois se trata de um escritor cuja estatura é inquestionável. E se o dia da apresentação do livro é o 11 de novembro, trata-se de algo excepcional. O lançamento de Um anel na areia, de Manuel Rui, realizado no dia 11 de novembro de 2002 reveste-se, pois, de um caráter emblemático, já que este é um dia especial para a história de Angola, dia em que as esperanças de todos convergem para a consecução de um projeto de país livre, em paz e... feliz. E é sobre isso, a felicidade, de que, afinal trata o mais recente texto de Manuel Rui. Mas não nos antecipemos.
Apenas indiquemos que falar da escrita desse autor é também nos referir a uma das manifestações mais pujantes da cultura de Angola, a sua literatura, pois a escrita desse autor está profundamente vincada e marca definitivamente os caminhos da produção artística de seu país.
Bem, mas apresentar um livro como Um anel na areia obriga-nos, também, à poesia, já que o lirismo do relato arrebata os seus leitores. E por isso nos atrevemos a construir uma metáfora para falar do fazer artístico de Manuel Rui. Assim, dizemos que as várias faces de sua escrita - a poesia, o conto, o romance, o ensaio e a música popular – talvez pudessem ser comparadas aos afluentes de um rio que, felizmente, vai se tornando mais e mais caudaloso, com as novas águas de seus novos textos.
Mas logo ao escolhermos essa figura, a de um grande rio, que marca com suas águas o fértil terreno da literatura de Angola, vem-nos à mente o alerta de uma das personagens do mesmo Manuel Rui, em Rioseco: “Os rios é que enchem o mar. O mar é só assim por causa dos rios que lhe trazem a água”.
E então como os rios acabam por desaguar no mar, escolhemos navegar pelas águas do oceano das histórias e poemas de Manuel Rui, utilizando esse elemento líquido como fio condutor dessa apresentação, a fim de traçar alguns dos pontos da rica trajetória artística do escritor.
Obviamente que, como toda escolha, essa também não deixa de também restringir e, assim, os textos a que nos referiremos são menos do que desejaríamos, já que numerosos outros mereceriam ser citados. Esperamos, contudo, que os exemplos sejam significativos para podermos não apenas dar elevo a algumas constantes da produção do autor, nomeadamente a reflexão sobre o fazer artístico, o lirismo e a militância e engajamento de sua escrita, como também mostrar em que medida esses três elementos estão presentes no mais recente livro.
Não tardemos nossa navegação. Iniciemos com a poesia. E em se tratando dela é fundamental referir os Onze poemas em Novembro publicados entre os anos de 1976 a 1980 e que viriam a constituir o livro Cinco vezes onze (1984) Poesia militante, sem dúvida, o que equivale dizer que se trata de uma poesia em que ética e estética confluem (e não se excluem, como pensam alguns), uma poesia em que as crenças, os valores e a utopia são captados pelo poeta que os exprime “mediante imagens, figuras, timbres de vozes, gestos” (Bosi, 2002, p. 120). E esse conjunto de poemas forma um livro privilegiado, na medida em que permite acompanhar o trabalho artístico do poeta ao longo de cinco anos. Nele, Angola é sempre o foco principal de atenção; mas as temáticas são variadas, dentre as quais o mar e o amor estão presentes de forma persistente. Lembre-se, por exemplo, que “Manhã de 11 de Novembro (leitura primeira)”, que abre o volume a que vimos nos referindo, tem como segmento inicial o poema intitulado “Mar” e que uma das partes componentes do livro é também assim denominada. Nela encontramos o poema “Sempre mar” :
Mar vezes quando o sol nos enche os olhos
e nos promete mais vezes no olhar
fecham-se os olhos no rolar do tempo
de ver andar o antes e o depois
numa miragem que se chama mar
Mar prometendo mais vezes de vermelho
luz transformada num redondo
esquivo
um sol de devagar como descendo
da guerra sem estrondo
na lúcida mutação
de sempre mar .
E a tarde é todo um fim
um beijo tão molhado despenteado
como uma boca a tua boca à beira-
-mar depois das ondas e diferente
princípio de um começo como a noite
antes de o sol se adormecer aquático
formam-se linhas como os pensamentos
linhas carícias que nos fazem ver .
que entre os passos da areia e nossos movimentos
há sempre um pôr-do-sol
de um sol para nascer. (Rui, 1977)
Como se pode notar, o Mar, o Amor e o Tempo (que é sobretudo o de construir e o de semear “Novembro em toda a parte” como diria um verso do poema “Bandeira”) estão no centro do poema e, podemos dizer, formam uma tríade presente em muitos textos de Manuel Rui.
Por enquanto, lembremo-nos de Memória de mar (escrito em 1978, portanto três anos após a independência), narrativa próxima ao fantástico, dada a sobreposição de tempos e a viagem exploratória que nele as personagens realizam, em que um submarino, repleto de contrarrevolucionários que impediriam a independência de Angola, é avariado, não ocorrendo o golpe. E em muitos anos depois, em um futuro indefinido na narrativa, a sua exploração, por soldados e cientistas angolanos permite uma reflexão sobre o passado de iniquidades para melhor poder entender o presente que, em razão da projeção feita pelo romance, torna-se o futuro com que todos sonham para o país independente.
E não podemos deixar à margem o premiado Quem me dera ser onda! (1982), em que ao título que lembra o oceano, junta-se uma incisiva e mordaz crítica aos descaminhos que Luanda, enquanto cidade-sede do poder constituído.
Também chamamos à cena o romance Rioseco (1997), que tem como cenário inicial o ancoradouro da Kapossoka. Nessa narrativa de Manuel Rui, o grande eixo é o aprendizado a ser feito por uma mulher do interior, Noíto, nascida no sul de Angola, mas sabedora das muitas línguas faladas no país. Ela deve apre(e)nder o mar quando, fugindo da guerra com seu marido, um carpinteiro, passa a residir na ilha do Mussulo. A contraposição entre o “mato” e o litoral, propicia que se misturem vocábulos de línguas do sul (sobretudo o umbundo) e da capital (expressões da gíria luandense e do quimbundo), redundando em perspectivas diversas que se harmonizam na paz do Mussulo e apontam para o todo heteróclito que é a nação angolana formada por várias etnias.
É, no entanto, o amor pelo mar - expresso pelo narrador e pelas personagens - que torna esse romance singular. Veja-se a seguinte definição do elemento marítimo dado pelo esposo de Noíto:
O mar é só assim por causa dos rios que lhe trazem a água. Os rios é que enchem o mar. Nenhum dia viste um mar encher um rio, já falei. Isto é tudo água que vem da nossa terra. Sem a nossa terra, sem os rios que atravessam muito tempo, devagar e depressa, depressa e devagar, a secar e a encher na chuva, onde é que estava o mar? Sem a nossa terra, onde nascem os rios, o povo daqui não tinha mar para pescar. Não há mar sem rio, eu já falei. (p. 90)
Segundo a perspectiva da personagem, o mar é o resultado dos rios, diversos como as etnias, usos e costumes de Angola. Ele é a síntese da terra. Não se lhe opõe. Por isso é VIDA, alimento obtido pelo trabalho e representa a solidariedade dos povos do mar e os do interior. Mas, sobretudo, trata-se do amor do interior pelo litoral, dos rios que abraçam o mar.
Um anel da areia
O livro apresenta-nos uma primeira questão: seria possível discernir com segurança a fronteira entre mentira e verdade quando se trata da relação amorosa? E em se tratando da ficção que visita os amores, não seria lícito perguntar quais os limites entre a realidade e a invenção arranjada amorosamente como verdade?
De uma certa maneira, o mais recente texto de Manuel Rui, intitulado Um anel na areia trata dessas questões, ao evocar o poder encantatório que as estórias, as palavras e os gestos de amor guardam. O texto que, relembremos, tem como subtítulo “Uma estória de amor” focaliza o jovem casal Marina e Lau desde o início de seu relacionamento amoroso, com um beijo roubado em um momento de escuridão. A partir desse encontro, acompanhamos os medos e esperanças desses jovens, como se o nascimento de ambos se desse apenas a partir do descobrimento mútuo.
Ocorre que o narrador, que focaliza privilegiadamente Marina, acompanhando-lhe o cotidiano e os pensamentos, traz ao círculo da personagem o imaginário e a realidade com que se tece a vida de muitos jovens da cidade de Luanda, tornando-a, nesse particular, exemplar das hesitações, crenças e desejos de muitos deles. Dessa maneira, o texto não se esgota no subjetivismo do par amoroso, mas desenha a partir de Marina e Lau o perfil de toda uma geração que tem seus planos obstados pelo espectro da guerra, que enfrenta o desemprego e as dificuldades de moradia, mas sonha com a felicidade, assim como os protagonistas tornam positivo – o beijo no escuro com que iniciam o namoro – a falta de energia elétrica ocasionada pela guerra.
Um anel na areia não se esgota, contudo, em articular uma relação entre o subjetivismo das personagens protagonistas e a complexa realidade angolana, apontando para o vínculo que uniria ficção e realidade. O texto vai além, ao fazer do mar que banha Luanda e a sua mais ilustre moradora, a Kianda, elemento fundamental na trama. Como nos referimos acima, na literatura de Manuel Rui o oceano assume posição privilegiada.
Dessa forma, Marina, em cujo nome também se inscrevem as águas do mar, traz à cena o maravilhoso a partir de sua relação com o imaginário dos mais velhos – sobretudo o da tia, simbolicamente chamada Aurora – instaurando nas suas dúvidas sobre a figura de Kianda e os seus quereres, um novo jogo entre realidade e ficção. Temos, dessa forma, a sobreposição de planos que enriquece sobremaneira o texto, já que não se trata apenas de narrar uma história de amor, mas também de trazer à baila a realidade que os jovens angolanos enfrentam hoje, assim como também de tematizar as crenças e valores dos mais velhos e os choques entre as gerações. E, em última instância, questionar a relação realidade e ficção em todos esses planos e, portanto, também do fazer artístico.
Vale notar, ainda que o mar, além de tema privilegiado, também marca o ritmo da narrativa, na medida em que os pensamentos e situações enfrentadas pelas personagens retornam como ondas, em vários momentos do texto, instaurando uma cadência por assim dizer marítima, em que agilidade e tensão dominam todo o relato.
E em meio a esse mundo dominado pelo mar, em que fantasia e realidade se mesclam para dar uma nova visão do real, a questão do falso e do verdadeiro se impõe como um dos temas privilegiados de Um anel na areia, questionando-se as incertas fronteiras entre mentira e verdade, ficção e realidade. E, de certa maneira, fazendo a afirmação que é na ultrapassagem das dicotomias que se encontra a verdade.
Temos, portanto, uma narrativa que se afasta de dogmatismos, para afirmar a felicidade como construção, como uma travessia, cujo valor verdadeiro reside justamente na sua procura constante. Assim como o real na ficção não se encontra na expressão pura e simples do factual, mas sim na busca e na indagação constantes instauradas pelo trabalho artístico.
Os numerosos leitores de Manuel Rui, especialmente os mais jovens, compreenderão isso. E a eles, porque são os construtores do amanhã, deixo as palavras de Marina, que já integra a galeria das personagens marcantes dos textos angolanos. Diz ela: “Nem a Kianda, nem Deus, nem nenhum partido político ou uma guerra pode passar por cima da felicidade da juventude”.
E por aqui termino, sem contar o final dessa história, porque, conforme nos ensina o narrador de Um anel na areia, “Há coisas que se contam e tem coisas que nunca se contam”.
NOTA:
Texto inédito da autora, cedido para postagem em 8 de outubro de 2025.
Referências
RUI, Manuel. Um anel na areia. Luanda: Nzila, 2002.
RUI, Manuel. Cinco vezes onze. Lisboa: Edições 70, 1984.
i Concluiu o doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo em 1990. Aposentou-se pela UNESP-Campus de Assis. Atualmente é PROFESSORA TITULAR aposentada pela Universidade de São Paulo onde lecionou Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Foi Diretora do Centro de Estudos Africanos da USP e Secretária-Geral do Instituto Casa das Áfricas. Publicou 13 artigos em periódicos especializados e 24 trabalhos em Anais de eventos. Possui 15 capítulos de livros e 7 livros publicados. Possui 57 itens de produção técnica. Participou de 14 eventos no exterior e 52 no Brasil. Orientou 23 dissertações de mestrado e co-orientou 1, orientou 8 teses de doutorado, 01 Estágio de Pos-Doutoramento, além de ter orientado 10 trabalhos de Iniciação científica na área de Letras. Atualmente coordena 02 projetos de pesquisa. Atua na área de Letras, com ênfase em Estudos Comparados de Literaturas de Línguas Portuguesa. Em suas atividades profissionais interagiu com 44 colaboradores em co-autorias de trabalhos científicos. Em seu currículo Lattes os termos mais freqüentes na contextualização da produção científica, tecnológica e artístico-cultural são: Literatura angolana, Literatura brasileira, Literatura comparada, Estudos comparados de literaturas língua portuguesa, Literaturas de língua portuguesa, Literaturas africanas de língua portuguesa, João Antônio, Luandino Vieira, Literatura portuguesa e Pepetela. Pesquisas atuais: "Angola no novo milênio: os desafios da paz" .
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