Negrice, negritude, negritice:

conceitos para a análise de identidades afrodescendentes nos romances O olho mais azul, A canção de Solomon e Pérola negra, de Toni Morrison.

José Endoença Martins*

RESUMO

Associados às metáforas Ariel, Calibã e Exu, os três conceitos Negrice, Negritude e Negritice são utilizados na análise de Pecola Breedlove, Milkman Dead and Jadine Childs na ficção de Toni Morrison. A identidade assimilacionista de Pecola é visível na associação a negrice e Ariel, quando assume valores anglo-americanos ao desejar olhos azuis; a identidade nacionalista de Milkman surge na sua vizinhança a negritude e Calibã, quando busca a cultura negra no sul americano; por fim, a identidade catalista de Jadine acontece na aliança com negritice e Exu, ao mediar as relações entre os brancos Streets e os negros Childs.

Palavras-chave: Negrice; Negritude; Negritice, Identidade; Cultura.

ABSTRACT

Linked to the metaphors Ariel, Calibán and Esu, the three concepts Negriceness, Negritude and negriticeness are used in the study of Pecola Breedlove, Milkman Dead and Jadine Childs in Toni Morrison’s fiction. Pecola’s assimilationist identity is visible in her relation with negriceness and Ariel, as she allies herself to white values by wishing to have blue eyes; Milkman’s nationalist identity appears in his proximity to negritude and Calibán as he searches for his family’s ancestors in the Southern US; finally, Jadine’s catalyst identity happens in her alliance with negriticeness and Esu, as she mediates the human ties between the white Streets and the Black Childs.

Key-words: Negriceness; Negritude; Negriticeness; Identity; Culture.  

Em sua decisão de assumir a multiplicidade das experiências humanas, este artigo sobre identidades afro-descendentes se apoia nas palavras que Pilate, personagem negra do romance A Canção de Solomon de Toni Morrison (1994), dirige ao sobrinho Milkman. Ensina Pilate:

E o escuro. Todo mundo acha que o escuro é uma cor só, mas não é verdade. Há cinco ou seis tipos de escruro. Uns sedosos, outros peludos. Alguns não passam de vazios. Outros são como dedos. Ele ele não fica quieto. Está sempre se mexendo e muda de um tipo preto para outro. Considerar uma coisa muito escura é como dizer que ela é verde. Ora, que tipo de verde? Verde como essas garrafas? Como um gafanhoto? Verde como um pepino, um alface ou como o céu antes da tempestade? Bem, a escruridão da noite é mais ou menos a mesma coisa. Pode ser um arco-íris” (TONI MORRISON: A Canção de Solomon, 1994, P. 51- 52)

Apoiado na pluralidade racial, implicitamente proposta por Pilate de que os “cinco ou seis tipos de escuro” desvelam a variabilidade das cores de “um arco-íris”, neste texto aproximo três conceitos, três metáforas, três personagens negros de três romances. Os conceitos, desenvolvidos por mim, são negrice, negritude e negritice (MARTINS, 2003). As metáforas são Ariel e Caliban, figuras criadas por Shakespeare(1999), e Exu, divindade da religião afro-descendente (GATES, 1988). Os personagens pertencem à ficção de Toni Morrison: Pecola Breedlove, figura central do romance O Olho mais Azul, Milkman Dead do romance A Canção de Solomon e Jadine Childs no romance Perola Negra. Sob a égide da Negrice, Pecola e Ariel, corporificando identificação com valores culturais externos a sua cultura de origem, desenvolvem identidades assimilacionistas; sob o manto da negritude, Milkman e Calibã, exemplificando amor a valores culturais internos à cultura nativa, elaboram identidades nacionalistas; na esteira da negritice, Jadine e Exu, estabelecendo apreço a valores culturais internos e externos às próprias culturas, experimentam identidades catalistas. Associado aos conceitos e às metáforas, o trio de personagens – Pecola, Milkman, Jadine – sugere uma comunidade afro-americana imaginada, marcada pela diferença identitária. Neste grupo comunitário, a noção de mobilidade identitária propõe movimentação entre as três identidades. Assim, a conversão política se torna possível porque, quando lhes é oferecida a alternância de atitudes, os personagens têm chance de resistir ao congelamento em uma das identidades. Por outro lado, buscam-se aproximações entre as três obras para sugerir que os romances conversam – dialogam – através do processo de significação entre identidades.

  1. NEGRICE.

Como conceito, negrice engloba “as configurações negativas” (MARTINS, 2003: 15) associadas à experiência negra, determinadas pelo racismo branco e pelo racismo internalizado do negro. Nesta perspectiva, Ariel de Shakespeare (1999), Ariel de Rodó (1991) e Pecola Breedlove de Morrison (1994) assumem identidades assimilacionistas quando se identificam com valores culturais de fora dos seus grupos de origem. Na perspectiva de West (1993), ao buscarem modelos culturais europeus, gregos ou anglo-americanos, os três personagens deflagram “boa vontade e deferência ao pai Ocidental” (WEST, 1993: 85). Nos três casos, o flerte com o Ocidente é estratégico porque visa à obtenção de algum beneficio pessoal, ou coletivo. Memmi (1967) argumenta que o Ocidente – colonizador ou não – é recebido pelo não-ocidental colonizado como modelo cultural atraente porque, nas palavras do autor, “não sofre de nenhumas de suas carências, tem todos os direitos, goza de todos os bens ocidentais, se beneficia de todos os prestígios, dispõe de riquezas e de harmonias, de técnica e de autoridade” (MEMMI, 1967: 106/107). Um desses bens é a liberdade.

Em A Tempestade, de Shakespeare, ao aliar-se ao pai Ocidental, simbolizado em Próspero, com a adesão ao programa de colonização que o europeu impõe à ilha, o colonizado Ariel deseja alcançar libertação temporária para, mais tarde, obter liberdade definitiva. Próspero lembra-lhe, primeiramente, que Ariel era prisioneiro de Sycorax, mãe de Calibã,  relatando que o espírito “foi trancado (...) num pinheiro rachado, em cuja fenda você ficou, em dor e prisioneiro, por doze anos” (SHAKESPEARE, 1999: 31). Depois, joga-lhe na cara que o salvou dos tormentos daquela prisão: “só minha Arte, quando cheguei e o ouvi, pôde abrir o pinheiro e livrá-lo” (SHAKESPEARE, 1999: 32). Finalmente, ameaça, se Ariel continuar recalcitrante, devolvê-lo à fenda horrenda: “Se ainda resmungar, abro o carvalho e o prendo nas entranhas da madeira para gemer doze invernos” (SHAKESPEARE, 1999: 32). Em resposta às ameaças do ex-conde de Milão, Ariel se submete ao colonizador, na expectativa da liberdade futura. Suas palavras são de rendição estratégica “perdão, amo. Eu obedeço a tudo que comandar, como espírito bom” (SHAKESPEARE, 1999: 32). A obediência se  consubstancia em ações que ajudam o milanês, não apenas a se consolidar como soberano da ilha, mas também a recuperar o condado perdido, em Milão. A adesão de Ariel se completa nestas palavras:

Salve, meu amo! Meu senhor, cá’stou
Pra atender seu prazer, seja voar,
Nadar, entrar no fogo, cavalgar
As nuvens; pra cumprir as suas ordens,
Eis Ariel e seus pares (SHAKESPEARE, 1999: 26/27).

O sucesso da empreitada adesista do espírito surge nas palavras de Próspero, ao reconhecer o trabalho de Ariel e conceder-lhe a liberdade no final da obra. “Agiu bem e depressa. Vai ser livre,” (SHAKESPEARE, 1999: 123), diz o conde.

A colaboração de Ariel com o projeto colonizador de Próspero, é ampliado, no ensaio Ariel, pela utilização metafórica que Rodó (2004) faz do espírito que voa. Na análise que escreve sobre as implicações simbólicas do personagem de Shakespeare, o uruguaio explica que:

Ariel, gênio do ar, representa no simbolismo da obra de Shakespeare a parte nobre e alada do espírito. Ariel é o império da razão e do sentimento sobre os baixos estímulos da irracionalidade; é o entusiasmo generoso, a espiritualidade da cultura, a vivacidade e a graça da inteligência – o término ideal a que ascende a seleção humana, corrigindo no homem superior os vestígios tenazes de Caliban, símbolo de sensualidade e torpeza, com o cinzel perseverante da vida (RODÓ, 1991, p.13-14).

Rodo explica que Ariel simboliza o tipo de cultura que as novas lideranças latino-americanas devem fazer nascer no continente, no início do século 20. Calcado na juventude alegre, ativa e entusiasmada de Atenas que soube idealizar forças espirituais e físicas, o projeto do uruguaio propõe à juventude do continente o desafio de “guiar os demais nos combates pela causa do espírito” (RODÓ, 1991, p.100). Rodo apresenta os valores culturais e estéticos da Europa que vão revolucionar a nova liderança continental: “a seleção espiritual, o enaltecimento da vida pela presença de estímulos desinteressados, o gosto, a arte, a suavidade dos costumes, o sentimento de admiração por todo propósito ideal perseverante e de respeito por toda nobre supremacia” (RODO, 1991, p.52). Rodó pede que a nova liderança valorize o gosto aprimorado, a graciosidade das formas, a virtude das idéias e a universalidade das visões; faça com que o continente combata o utilitarismo dos Estados Unidos, impedindo que a energia utilitária debilite o interesse pelo ideal desinteressado; condene, por fim, a experiência utilitária porque pode distanciar a América Latina da cultura helênica e européia. Apesar da condenação que dirige à civilização norte-americana, Rodó nutre esperança de que, no futuro, os Estados Unidos alcancem “inteligência, sentimento, idealidade” (RODÓ, 1991, p.95) para fazer surgir, em seu seio, “o exemplar humano, generoso, harmonioso, seleto” (RODÓ, 1991, p.95) da cultura helênica.

No romance O Olho Mais Azul, Morrison (2003) mostra a tentativa de uma menina afro-americana de escapar do utilitarismo norte-americano, através da identificação que estabelece com o ideal de beleza européia. Identificação com o pai Ocidental (West, 1993), apreço ao espírito e beleza helênicos (Rodo, 2004), e apreciação dos bens e harmonias do Ocidente (Memmi, 1967) trazem para a comunidade negra dos Estados Unidos a experiência da assimilação que Ariel desenvolve junto a Próspero e a liderança latino-americana ampara ao associar-se à cultura européia. Em busca de modelo estético que dê sentido à vida, Pecola acrescenta à liberdade de Ariel e aos ideais iluministas da liderança continental, seus próprios interesses: o auto-amor, o amor para com a família e o ideal da beleza física.

No romance, o investimento de Pecola no amor surge, primeiramente, na pergunta às amigas negras Frieda e Cláudia. “Como é que a gente faz isso? Quero dizer, como é que a gente faz alguém amar a gente?” (MORRISON, 2003: 36), ela deseja saber. As meninas, a família e a comunidade são incapazes de dar respostas consistentes à indagação de Pecola. Na comunidade afro-americana do romance, a busca da beleza, em geral se restringe aos aspectos utilitários da vida imediata e pessoal: a casa limpa, o cabelo alisado, os produtos de embranquecimento facial. Pecola decide, então, procurar a resposta fora dos valores culturais do seu povo. A Pecola interessa pouco o resultado imediato, ou seja, a transformação externa do corpo negro. A ela mais vale o processo de admiração da beleza que vai desencadear o amor familiar.

A beleza euro-americana de Shirley Temple estampada na xícara de leite, a graciosidade branca de Mary Jane impressa no papel de bala, e a brancura infantil do bebê dos Fishers são imagens dos valores culturais anglo-americanos que Pecola aceita, deseja e assimila. A identificação da menina com a cultura ocidental se metaforiza no doce Mary Jane que ela adora. “Ela come o doce e a doçura é boa. Comer o doce é, de certo modo, comer os olhos, comer Mary Jane. Amar Mary Jane. Ser Mary Jane” (MORRISON, 2003, p.54). Os olhos bonitos e azuis de Mary Jane no papel do doce concentram a carga de identificação da menina com os valores externos à cultura negra. Como não dispõe dos meios de trazê-los para sua existência, solicita a intervenção divina, num processo longo e demorado de preces e orações. “Toda noite, sem falta, ela rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava fervorosamente” (MORRISON, 2003, p.50), é a frase que dramatiza o processo de demanda pessoal e coletiva. Mais tarde, a identificação com a beleza branca amplia-se na consulta a Soaphead Church, o mágico que promete ajudá-la a obter os olhos desejados. Pecola sai da consulta com a felicidade de possuir a transformação física que foi pleitear. Porém, a felicidade não é conquista egoísta, individual. É ganho emocional que vai além do pessoal: felicidade e harmonia familiares. “Se tivesse outra aparência, se fosse bonita, talvez Cholly fosse diferente, e a sra. Breedlove também. Talvez eles dissessem: ‘ora, vejam que olhos bonitos os da Pecola. Não devemos fazer coisas ruins na frente desses olhos bonitos’” (MORRISON, 2003, p.50), ela pondera.

Ponderação que sugere o valor revolucionário da sua trajetória assimilacionista, uma vez que inclui o pessoal, o familiar e o coletivo. Ao incorporar estes três valores, a assimilação de Pecola abre espaço para a conversão política no seio da comunidade que sempre a rechaçou. A amiga e narradora Claudia enfatiza a agenda revolucionária na experiência de Pecola Breedlove quando pensa a respeito do bem que a menina oferece a todos por meio da sua auto-imolação:

Todo o nosso lixo, que jogamos em cima dela e que ela absorveu. E toda a nossa beleza, que foi primeiro dela e que ela deu a nós. Todos nós – todos os que a conheceram – nos sentíamos tão higiênicos depois de nos limparmos nela. Éramos tão bonitos quando montávamos na sua feiúra. A simplicidade dela nos condecorava, sua culpa nos santificava, sua dor nos fazia reluzir de saúde, seu acanhamento nos fazia pensar que tínhamos senso de humor. Sua dificuldade de expressão nos fazia acreditar que éramos eloquentes. Sua pobreza nos mantinha generosos. Até seus devaneios usamos – para silenciar nossos próprios pesadelos. E ela nos deixou fazer isso e, portanto, mereceu nosso desprezo. Nela, afiamos o nosso ego, com a fragilidade dela reforçamos nosso caráter, e bocejávamos na fantasia de nossa força (MORRISON, 2003, p.205-206).

As palavras de Claudia, em forma de auto-condenação – auto-consciência – expõem com clareza o tipo de transformação que vai ocorrer na comunidade negra. Assim, dá espaço a conversão política, coletiva.

II. NEGRITUDE

Diferente do amor ao “pai ocidental” patrocinado pela negrice, negritude compreende “os aspectos positivos” (MARTINS, 2003, p.15) colados à vivência negra pelos atores da resistência racial. Neste contexto de auto-determinação, seguindo caminhos opostos aos de Ariel e Pecola, Calibã de Shakespeare (1999), Calibã de Retamar (2003), e Milkman de Morrison (2004) desenvolvem identidades nacionalistas. O nacionalismo dos personagens se caracteriza de um lado pela identificação com valores culturais que julgam ser próprios e, do outro, pela resistência aos elementos da cultura estrangeira. Na visão de West (1993), porque almejam a valorização da cultura autóctone e nacional, estas pessoas se afirmam por “uma busca nostálgica do pai Africano” (WEST, 1993, p.85). A aliança com a África e com valores de matiz africano impede que comunguem com Próspero, Europa ou América branca. O Ocidente não os atrai, nem os benefícios ocidentais os seduzem. Memmi (1967) argumenta que “o impulso em direção ao colonizador” que seduz Ariel e Pecola, “exigia, no extremo limite, a recusa de si próprio” (MEMMI, 1967, p.112). Diferentemente dos assimilacionistas, quando renunciam à assimilação, os dois Calibãs e Milkman efetuam a própria libertação “pela reconquista de si mesmo e de uma dignidade autônoma” (MEMMI, 1967, p.112).

Em A Tempestade, de Shakespeare (1999), a assimilação de Calibã é temporária. A aliança estabelecida com Próspero que chega à ilha é recíproca: “logo que veio me afagava, mimava” (SHAKESPEARE, 1999, p.35) e, em retribuição, “eu te amava, e mostrei a você tudo na ilha” (Shakespeare, 1999, p.35), Calibã conta. Porém, a relação amistosa não se sustenta e a ruptura se dá quando Calibã desperta para o auto-amor e abandona o amor a Próspero. A primeira evidencia da “dignidade autônoma” recuperada aparece na reivindicação que faz da ilha roubada, dizendo ao europeu “a ilha é minha, da mãe Sycorax que você me tirou” (SHAKESPEARE, 1999, p.35). E segue com a maldição que lança contra Próspero:

Maldito seja! Todos os encantos
De Sycorax – sapos, escaravelhos,
E morcegos, te ataquem todos juntos! (...)
Agora eu sei falar, e o meu proveito
É poder praguejar. Que a peste o pegue,
Por me ensinar sua língua (SHAKESPEARE, 1999, p.35-36).

Mais tarde, Calibã vislumbra a liberdade com o auxílio de Trínculo e Stephano, os europeus que chegam à ilha no navio dos inimigos de Próspero. Calibã conta com eles para o sucesso do plano de derrubada de Próspero. Ensina-lhes como devem proceder:

Mas antes, tira os livros (...)
Só lembrar de pegar primeiro os livros; sem estes
É um tolo igual a mim; sem mais espíritos
Para mandar – todos eles o odeiam,
Igual a mim. É só queimar os livros (SHAKESPEARE, 1999, p.85).

A oposição entre Calibã e Próspero, dramatizada pelo dramaturgo inglês, é retomada pelo cubano Retamar (2003). No ensaio Calibã, o intelectual de Cuba coloca Calibã no lugar de Ariel, o símbolo latino-americano proposto por Rodo:

Nosso símbolo não é Ariel, como pensou Rodó, mas Calibã. Isso se torna particularmente claro para nós, mestiços que habitamos as mesmas ilhas onde morou Caliban: Próspero invadiu as ilhas, matou os nossos antepassados, escravizou Caliban e lhe ensinou sua língua para poder se entender com ele.Que outra coisa pode fazer Caliban senão empregar essa mesma língua – hoje não há outra – para amaldiçoar Próspero, para desejar que a “peste rubra” o consuma? Não conheço outra metáfora mais adequada para nossa situação cultural, para nossa realidade (...) O que é nossa história, o que é nossa cultura senão a história, senão a cultura de Caliban? (RETAMAR, 1988, p.29).

A substituição de Ariel por Calibã significa a superação da atitude de assimilação cultural por uma postura nacionalista, da negrice pela negritude. Com Calibã, Retamar afirma que o melhor modelo de cultura para o continente não é a Europa, mas a própria América. E põe ênfase, como fez Martí, na necessidade de se revelar a cultura local, dizendo que “nossa Grécia é preferível à Grécia que não é nossa” (RETAMAR, 1988, p.1988, p.39). É neste aspecto que o nacionalismo latino-americano metaforizado em Calibã é revolucionário. Para o autor cubano a cultura continental autônoma apresenta dois atores: o índio e o negro. Deles provém a força, a energia e o valor culturais da América Latina. “A nossa cultura é – e só poder ser – filha da revolução, de nossa rejeição multissecular a todos os colonialismos; nossa cultura, como toda cultura, necessita, antes de mais nada, de nossa própria existência” (RETAMAR, 1988, p.63), propõe Retamar. Ainda mais revolucionária se torna porque abre espaço para Ariel, já que o inimigo de Calibã não é Ariel, mas Próspero. Assim, como o inimigo de Calibã-povo não é Ariel-intelectual, mas aquele que deseja subjugar o continente, pode-se depreender do esforço conjunto de Calibã e Ariel que a assimilação estratégica do segundo se mostra tão revolucionária quanto o nacionalismo autônomo do primeiro.

O romance A Canção de Solomon, de Morrison (1994), desenvolve a trajetória de uma experiência calibanista e nacionalista na ficção Afro-Americana, na figura do jovem negro Milkman Dead. Diferente de Pecola cuja ação revolucionária deriva da necessidade de assimilar a beleza e os olhos azuis, símbolos da cultura anglo-americana, Milkman ativa aproximação com o “pai Africano” (West, 1993), desfralda dignidade autônoma (Memmi, 1967), reclama a posse da ilha (Shakespeare, 1999), e erige sua Grécia cultural (Retamar, 1988). Todo esse fervor de Milkman à própria cultura é canalizado pela vontade de recuperar o passado do pai e do avô e entender o significado da lenda do Africano que é capaz de voltar à África voando. Como Pecola que evita os aspectos utilitários para alcançar valores estéticos como a beleza, Milkman resiste ao credo utilitário do pai, reduzido à posse de coisas. “Deixe-me dizer desde já: o mais importante na vida é ter coisas. E deixar que as coisas que você tem possuírem outras coisas. Então você será seu dono e de outras pessoas também” (MORRISON, 1994, p.67), é o mote do pai ao qual o filho se opõe.

O desejo de dar sentido à nebulosa vida passada do pai e da família leva Milkman a viajar ao Sul negro. Durante a permanência na região, através de relatos de histórias incompletas e pedaços de informações, fornecidos por sulistas afro-americanos, Milkman tece um panorama extraordinário da riqueza cultural da família Dead: o bisavô Solomon, o avô Jake, o pai Macon e a tia Pilate. Todos eram “homens extraordinários,” (MORRISON, 1994, p.252-253), afirmam-lhe as pessoas que Milkman vai encontrando. As lições que aprende com os relatos sobre a vida dos familiares são muitas: que, em Shalimar, as pessoas admiram a coragem dos Deads pelo que representaram em termos de fermento cultural e racial; que o seu pai amava o seu avô, sentimento demonstrado na “relacionamento íntimo com ele” (MORRISON, 1994, p.252), segundo as palavras do Reverendo Cooper, senhora Circe e Sweet. As histórias e as reminiscências dos moradores de Shalimar despertam o interesse de Milkman por uma canção que as crianças cantam quando brincam. Trata-se da mesma música que a tia Pilate cantava para ele no Norte, antes da viagem ao Sul. Os versos relatam a aventura do bisavô Solomon, o africano que fugiu voando da escravidão para a África. No vôo, ele carrega o filho Jake, mas em dado momento, não suportando o peso, deixa o menino cair. Jake é recolhido pela índia Heddy que o leva para morar em sua tribo. Jake conhece a índia Sing e, do casamento dos dois, nasce Macon, o pai de Milkman.

Milkman conta à namorada Sweet a descoberta que faz, gritando, emocionado:

Ele podia voar! Ouviu? Meu bisavô sabia voar! Voar! (...) O filho da puta podia voar! Ouviu essa, Sweet? O malandro sabia voar! Voar! Não precisou de avião. Não precisou de nada. Podia voar sozinho (...) Ele não precisou de avião. Só levantou vôo; estava de saco cheio. Saiu voando, voando! Chega de algodão! Chega de fardos! Chega de ordens! Voou, menina. Levantou o bundão preto do chão e voou de volta para casa. Já imaginou? Santo Deus, deve ter sido bom de se ver! E sabe o que mais? Ele também tentou levar o bebê com ele. Meu avô! Oba! Oba! (...) Meu bisavô sabia voar e toda a cidade tem o nome dele. (...) Voltou para a África (...) Ele voltou para a África (...) Deixou todos no chão e saiu voando como uma águia negra. Solomon voou, Solomon se foi, Solomon cortou os céus, Solomon voltou (MORRISON, 1994, p.350).

Mais tarde, Milkman volta para casa para partilhar sua nova história com a tia Pilate, a pessoa que, no Norte, mais se aproxima do tipo de passado que ele encontra no Sul. Convence a tia a viajar com ele de volta a Shalimar. Juntos, tia e sobrinho enterram os ossos do pai e avô, morto por sulistas brancos invejosos da pujança da fazenda que os Deads possuíam. Milkman encerra sua jornada de auto-conhecimento com uma palavra de amor sobre a qualidade espiritual da tia: “Milkman sabia por que a amava tanto. Sem deixar o chão Pilate era capaz de voar” (MORRISON, 1994, p.359). Desta forma, a liga à tradição da família: a capacidade de superação dos limites, através do vôo real, espiritual, ou imaginado. No vôo cultural ao passado e ao Sul, Milkman promove uma experiência revolucionária e desenvolve conversão política.

III. NEGRITICE.

Este terceiro conceito sugere a união dos dois primeiros, funde negrice e negritude, ou seja, combina “os aspectos positivos da negritude e as configurações negativas da negrice” (MARTINS, 2003, p.15). Nesta configuração combinatória, transcendendo as posturas de Ariel/Pecola e Calibã/Milkman – os primeiros se aliam ao “pai Ocidental”; os segundos não se afastam do “pai Africano” – Exu metaforiza a superação das polaridades em que os dois pares de atores se vêem encurralados. Diante das possibilidades da interação intercultural que Exu enseja, a adesão de Pecola à beleza branca e de Ariel à Europa, e a aderência de Milkman ao sul negro e de Calibã à América negra e indígena são isolamentos culturais e raciais que podem - e devem - ser desafiados e, até, superados. O desafio proposto por Exu, de um lado, problematiza os ganhos de Ariel/Pecola através da assimilação, e as conquistas de Calibã/Milkman por meio do nacionalismo, ao propor uma terceira alternativa para a agência do afro-americano. Do outro, mantém as possibilidades revolucionárias de conversão política dos dois atores culturais para engendrar uma saída ainda mais estimulante, reveladora e transformadora. Quando associado às palavras de West (1993) sobre o papel do afro-americano nas relações interraciais, Exu simboliza a mediação interracial entre colonizadores e colonizados, europeus e africanos, brancos e negros, e euro-americanos e afro-americanos. West esclarece que o ator cultural afro-americano se esforça para juntar “uma negação crítica, uma preservação sábia e uma transformação insurgente da linhagem negra que deseja proteger a terra e construir um mundo melhor” (WEST, 1993, p.85). A experiência representada por Exu exige do colonizado um avanço da “solidariedade nacional à solidariedade humana”, ou seja, um abrir-se “ao mundo, humanista e internacionalista” (MEMMI, 1967, p.117).

O anseio do afro-americano de aproximar culturas diferentes, simbolizado em Exu, é discutido por Gates (1988). Gates explica que o potencial que Exu tem de aproximar e misturar culturas díspares reside no fato de o deus afro-descendente manter “uma perna ancorada no mundo dos deuses enquanto a outra descansa neste nosso mundo humano” (GATES, 1988, p.6). Este movimento entre o divino e o humano transforma Exu no mediador que “interpreta a vontade dos deuses ao homem e leva os desejos do homem aos deuses” (GATES, 1988, p.6). A capacidade de estabelecer diálogos entre os deuses e os homens permite a apreensão do deus negro como agente de relações interculturais e interraciais. Neste aspecto, Exu se transforma na metáfora do encontro entre os africanos e os europeus nas Américas, durante a escravidão, o que explica o surgimento da cultura e raça afro-americanas. Gates argumenta que “a cultura afro-americana é uma cultura africana” que se re-significa de maneira catalística no contato, nas Américas, com “as culturas e as línguas inglesas, holandesas, francesas, portuguesas ou espanholas” (GATES, 1988, p.4) que para cá também migraram. A liquidez e a fluidez interculturais de Exu, provenientes da permanência nas águas do oceano durante a viagem entre África e América, confere ao deus valor de significação viajante. Como resultado, Exu adquire elementos de “um emblema do processo de tradução e transmissão culturais que se repetem com extraordinária freqüência quando as culturas africanas se encontraram com culturas européias da América e criaram um novo sistema cultural” (GATES, 1988, p.19): a cultura afro-americana ou afro-descendente.

Exu é a possibilidade de superação da oposição binária – ou Ariel, ou Calibã – transformando-se na experiência combinatória – Ariel e Calibã. A multiplicidade divina do deus advém do fato de que cada deus tem seu Exu; e a cultural, da aceitação de que cada ser humano carrega um Exu dentro de si. “Uma pessoa que não tenha um Exu no seu corpo não existe e nem sabe que está vivo” (GATES, 1988, p.37), diz Gates. A cultura afro-americana provém do fenômeno de que os negros e os brancos americanos carregam exus dento de si. Esta fusão cultural não significa a eliminação das diferenças, mas a possibilidade de que as diferenças possam conversar, sem medo de que uma parte controle a outra. Desta maneira, se Ariel/Pecola e Calibã/Milkman são revolucionários, Exu é a revolução dentro da revolução; ou seja, a conversão política por excelência.

No romance Pérola Negra, Toni Morrison (1994) transforma Jadine Childs na agente que promove conversações entre os brancos Streets e os negros Childs, possibilitando que a personagem atue como um Exu afro-americano. Sua mediação intercultural evidencia a possibilidade de superação das posturas extremas de Ariel e Pecola, reveladas na adesão que postulam de modelos culturais externos; e as de Calibã e Milkman, representadas na devoção aos valores internos, próprios dos seus mundos culturais. Metaforizada como Exu, Jadine deseja um mundo melhor (West, 1993), deflagra a solidariedade humanista (Memmi, 1967), faz dialogar as culturas de matrizes africana e européia (Gates, 1988), representadas nas duas famílias. O trabalho de mediação é possível pelo apreço que tem pelos tios Sydney e Ondine e pela admiração que nutre pelos protetores Valerian e Margaret. Para ela os brancos são “pessoas decentes. Como Nanadine e Sydney, todos ali eram decentes, e aquela casa, cheia de gente decente respirando a ar puro da ilha, era exatamente o lugar onde desejava estar naquele momento” (MORRISON, 1994, p.84).

A decência que Jadine associa às duas famílias a faz ser grata ao tipo de responsabilidade que os Valerians e os Childs têm para com ela, profissional e emocionalmente. Órfã de pai e mãe na infância, ela encontra apoio nas duas famílias. Os Valerians “me educaram. Pagaram minhas viagens, minhas estadas, minhas roupas e minha escola” (MORRISON, 1994, p.146); e os Childs, “Sydney e Ondine são os meus únicos parentes vivos” (MORRISON, 1994, p.146), ela conta ao namorado, o calibanista/nacionalista Son. É neste ambiente birracial dos Streets e dos Childs que Jadine tem consciência da sua origem racial negra. Esta consciência de ser afro-americana permite que ela perceba a presença da beleza negra no ambiente culturalmente dual onde vive. A descrição que faz da beleza do namorado Son é um bom exemplo: “é louco, bonito, negro, pobre, lindo” (MORRISON, 1994, p.225). Essa consciência também a faz discordar do namorado nas questões interraciais. Quando ele lhe diz que “brancos e negros deveriam trabalhar juntos às vezes, mas nunca comer juntos, viver juntos ou dormir juntos. Não devem fazer juntos nada que seja realmente pessoal” (MORRISON, 1994, p.254), ela discorda porque ela é justamente uma negra que senta com brancos e come com eles na mesma mesa, todos os dias, na companhia dos tios negros.

Sua posição de mediadora de duas raças diferentes é a causa do desconforto que sente quando se encontra isolada num dos grupos. Vivendo e trabalhando em Paris, às vezes, sente que não a vêem como pessoa, mas como mulher negra. Nestes momentos, reage: “muitas vezes gostaria de sair de dentro de minha pele e ser somente uma pessoa, eu mesma, não uma americana, uma negra, mas apenas eu, um ser humano” (MORRISON, 1994, p.59). Desconforto igual a toma quando viaja ao Sul negro dos Estados Unidos, em visita aos parentes do namorado Son. Em Eloe, Flórida, a rivalidade entre ela e as mulheres da vida de Son – namorada, tia, avó – não lhe dá tranqüilidade. Vendo Cheyenne como uma rival difícil de compreender na vida de Son, Jadine decide voltar a Nova York.

Em Nova York, as disparidades raciais entre Jadine e Son se tornam ainda mais agudas. Ele é um homem de uma raça só, negra, sulista; ela, uma mulher de raças misturadas, hibridizadas, traduzidas. Son a critica porque toda a educação formal que recebeu não a preparou para entendê-lo:

Tudo o que você aprendeu naqueles colégios e que não me incluía foi uma merda. O que eles lhe ensinaram a meu respeito? Que testes fizeram? Eles contaram como eu era, o que eu tinha na cabeça? Eles me descreveram para você? Disseram o que tinha no coração? Se não ensinaram isso, então não lhe ensinaram nada, porque enquanto não me conheceu você não sabia nada de você mesma (MORRISON, 1994, p.319).

Jadine reage, dizendo que estava tentando se educar:

O fato de que, enquanto você tocava piano no Night Moves Café, eu estava na escola (...) Eu estava sendo educada, estava trabalhando, estava fazendo alguma coisa de minha vida. Estava aprendendo a vencer neste mundo. Neste mundo em que vivemos, e não no que está dentro de sua cabeça. Não naquele monte de lixo que é Eloe: nesse mundo. A verdade é que eu não teria feito nada sem a ajuda de um pobre coitado de um grã-fino que achou que eu tinha cabeça suficiente para aprender alguma coisa. Pare de adorar sua ignorância, pois ela não merece ser adora (MORRISON, 1994, p.318).

Enfatizando que não deseja viver no passado, mas viver melhor, Jadine volta à casa no Caribe onde os Streets e os Childs – suas duas famílias – elaboram momentos de harmonia. A  convivência harmoniosa se consubstancia no diálogo que Margaret e Ondine mantêm depois do conflito que protagonizam na ceia de Natal. “Vamos tratar de ser duas velhotas maravilhosas, eu e você! (...) Precisamos ser amigas. Acho que não é tarde demais” (MORRISON, 1994, p.293-294). O desejo de harmonia entre as duas raças, manifestado pela branca e aceito pelo negra, se realiza afinal. O legado de Jadine, presente nas palavras de aceitação recíproca das duas mulheres, é revolucionário. E quando cotejado com Ariel/Pecola e Calibã/Milkman, convida à aceitação de Exu como a metáfora da conversão política por excelência na experiência afro-americana.

  1. INFERÊNCIAS

Que inferências podem surgir do que se apresenta até aqui a respeito da conversão política e da mobilidade identitária no âmbito das experiências afro-descendentes protagonizadas por Pecola, Milkman e Jadine na ficção de Toni Morrison? Pode-se afirmar que o estudo projeta um olhar sobre uma potencial comunidade afro-americana imaginada na diferença. Nela a experiência afro-descendente é mediada por um conjunto complexo de diferenças, mediadas por conceitos, metáforas, identidades e personagens: conceitos de negrice, negritude e negritice; metáforas de Ariel, Calibã e Exu; identidades assimilacionista, nacionalista e catalista; personagens Pecola Breedlove, Milkman Dead e Jadine Childs, respectivamente. O respeito às diferenças é preponderante porque, para Hall (2001), o que marca uma comunidade cultural – local, ou nacional – não é um repertório de igualdades, mas, ao contrário, um conjunto de diferenças. Ele recomenda que “em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade” (HALL, 2001, p.62). Tomando a diferença como o elemento constitutivo de um grupo cultural, como aconselha o autor, pode-se se pensar que, nesta comunidade imaginada de personagens afro-americanos da obra de Toni Morrison, a diferença identitária é seu aspecto mais característico. Nela, complementam-se – suplementam-se - as identidades de Pecolas, de Milkmen e Jadines.

As “profundas divisões e diferenças internas” (HALL, 2001, p.62), associadas aos contínuos deslocamentos identitários que se interpelam no seio de uma comunidade não a paralisam. Ao contrário, a tonificam, por que suplementares, e favorecem atitudes abertas ao diálogo dos diferentes. Por isso, é possível esperar que Pecolas, Milkmen e Jadines conversem entre si e se completem, sem exclusão de qualquer um deles. Em outras palavras, que se crioulizem, como pensa Glissant (2005) e, assim, se tornem agentes de uma comunidade de cultura compósita. “Nas culturas compósitas”, escreve Glisssant, a identidade se constrói “como fator e como resultado de uma crioulização, ou seja, da identidade não mais como raiz única mas como raiz indo ao encontro de outras raízes” (GLISSANT, 2005, p.27). Pensar que nesta comunidade descortinada nos três romances de Morrison, uma assimilacionista como Pecola vá ao encontro de um nacionalista como Milkman, sem medo de rejeição ou de estigmatização, e os dois caminhem na direção de uma catalista como Jadine, é pensar em um tipo de conversão política cujo elo agregador é o amor, em sua dupla manifestação de auto-amor e amor dos outros. Este caminhar na direção do outro é uma mudança radical de agência política que, segundo West (1994) “se faz por meio da afirmação, pela pessoa, de seu próprio valor – afirmação essa alimentada pela consideração dos outros. Uma ética do amor tem de estar no centro da política de conversão” (WEST, 1994, p.35).

Conversão política alia-se a duas mobilidades: a identitária e a textual. Hall (2001) alerta para o fato de que a identidade se constrói no movimento que transforma os atores políticos. Ele esclarece que a identidade é “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2001, p.13). As identidades de Pecolas, Milkmen e Jadines, deslocadas nas interações culturais, se afinam com o deslocamento textual que aproxima textos literários, permitindo diálogos e conversas intertextuais. Gates (1988) os definem como significação afro-americana, ou seja, como o tipo de intertextualidade que “mostra como textos negros ‘conversam’ com outros textos negros” (GATES, 1988, p.xxvi). Para ele, esta conversa não é pura repetição, mas admite revisão e diferença. “A significação,” ele acrescenta, “é uma metáfora da revisão textual” porque permite que “um texto signifique sobre o outro texto, por meio da revisão, ou repetição e diferença tropológicas” (GATES, 1988, p.88).

A visão que se alcança deste embate entre diferença, mobilidade, crioulização, conversão e significação é a de que Pecola, Milkman e Jadine – amparados por conceitos, metáforas e identidades – são capazes de se construírem como sujeitos das margens, ativos e produtivos, que se introduzem “no cenário político e cultural” (HALL, 2003, p.338) e dele se apossam. Nas posturas interculturais e interraciais, pode-se vislumbrar como suas atitudes existenciais os aproximam do pós-moderno pela pluralidade, dos estudos culturais pela ênfase na diferença e do existencialismo sartreano pela responsabilidade: a de Pecola para com ela mesma e a família; a de Milkman para com ele próprio e com a tia; a de Jadine para com ela e Son. Para Sartre (1984), “o homem [não] é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas ele é responsável por todos os homens”, ou seja, cada um deles se escolhe, mas “escolhendo-se, ele escolhe todos os homens“ (SARTRE, 1984, p.6).

No âmbito da grande comunidade afro-americana, a responsabilidade dos três personagens se avulta ainda mais uma vez representam respostas individuais a cada uma das três situações do dilema que Du Bois (1986) coloca diante do negro americano, quando se pergunta:

O que, afinal, sou eu? Sou um Americano ou sou um Negro? Posso ser os dois? Ou é minha obrigação deixar de ser um Negro imediatamente para ser um Americano? Se me esforço para ser um Negro, não estarei perpetuando o mesmo abismo que ameaça e separa a América Negra da América Branca?  Não será meu único objetivo prático submeter ao que é Americano tudo o que é Negro em mim? O meu sangue negro coloca sobre mim mais responsabilidade para afirmar minha nacionalidade do que o sangue Alemão, ou o Irlandês, ou o Italiano faria? (DU BOIS, 1986, p.821).

Como Pecola Breedlove, Martin Luther King também responde positivamente à pergunta de Du Bois “sou um Americano?”; como Milkman Dead, a resposta de Malcolm X é um sim à indagação de Du Bois “sou um Negro?”; como Jadine Childs, Obama diz um sim à terceira alternativa de Du Bois “posso ser os dois?”.

REFERÊNCIAS

DU BOIS, W . E. B. The Conservation of Races. In: DU BOIS, W . E. B. Writings. New York: The Library of America, 1986.

GATES, Henry Louis, jr. The Signifying Monkey: A Theory of African-American Literary Criticism. Oxford: Oxford University Press, 1988.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma Poética da Diversidade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.

HALL, Stuart. Que “Negro” é esse na cultura negra. In: HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003, p. 335-349.

MARTINS, José Endoença. Negritice: Repetição e Revisão. In: MARTINS, José Endoença. O Olho da Cor: Uma Peça em três atos. Blumenau: Edição do Autor, 2003, p. 13-18.

MEMMI, A. Retrato do Colonizado Precedido pelo Retrato do Colonizador. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

MORRISON, Toni. The Bluest Eye. New York: A Plume Book, 1994.

MORRISON, Toni. O Olho Mais Azul. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

MORRISON, Toni. Song of Solomon. New York: Vintage Books, 2004.

MORRISON, Toni. A Canção de Solomon. São Paulo: Editora Best Seller, 1994.

MORRISON, Toni. Tar Baby. New York: A Plume Book, 1987.

MORRISON, Toni. Pérola Negra. São Paulo: Editora Best Seller, 1994.

RETAMAR, Roberto Fernández. Caliban e Outros Ensaios. São Paulo: Busca Vida, 1988.

RODÓ, José Enrique. E. Ariel. Campinas: Editora da UNICAMP, 1991.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In: SARTRE Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo; A Imaginação; Questão de Método. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 1- 32.

SHAKESPEARE, William. A Tempestade. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999.

WEST, Cornel. The Dilemma of the Black Intellectual. In: Cornel West Keeping Faith: Philosophy and Race in America. London: Routledge, 1993, p. 67-85.

WEST, Cornel. Questão de Raça. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Nota

* Professor do Mestrado em Letras de Práticas Transculturais. e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.. ORCID: 0000-0003-3237-9302

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