Negrice, negritude, negritice:

conceitos para a análise de identidades afrodescendentes nos romances
O mundo se despedaça de Chinua Achebe e Chorai, pátria amada de Alan Paton

José Endoença Martins*

RESUMO: Associados às metáforas Ariel, Calibã e Exu, os três conceitos Negrice, Negritude e Negritice são utilizados na análise de Nwoye, Okonkwo e A|kunna no romance O Mundo se Despedaça de Chinua Achebe (1983), e de Absalom, John e Stephen da narrativa Chorai, Pátria Amada de Alan Paton (1988). A identidade assimilacionista de Nwoye e Absalom é visível na associação a negrice e Ariel, quando assumem valores europeus ao desejarem o Cristianismo (Nwoye) e a vida em Johannesburg (Absalom); a identidade nacionalista de Okonkwo e John acontece na sua vizinhança a negritude e Calibã, quando reafirmam o culto aos ancestrais (Okonkwo) e defesa dos mineiros negros (John); por fim, a identidade catalista de Akunna e Stephen acontece na aliança com negritice e Exu, ao mediarem as relações entre a religião do clã e a inglesa (Akunna) e a melhoria da aldeia negra (Stephen).

Palavras-chave: Negrice; Negritude; Negritice, Identidade; Cultura.

ABSTRACT: Linked to the metaphors Ariel, Calibán and Esu, the three concepts Negriceness, Negritude and Negriticeness are used in the study of the characters Nwoye, Okonkwo and Akunna in Chinua Achebe’s novel Things Fall Apart (1994) together with Absalom, John and Stephen, the Kumalos in Alan Paton’s (1988) novel Cry, the Beloved Country. Nwoye’s and Absalom’s assimilationist identity is visible in their relation with negriceness and Ariel, as they ally themselves to white values by wishing to be a Christian (Nwoye) or live in Johannesburg (Absalom); Okonkwo’s and John’s nationalist identity appears in their proximity to negritude and Calibán as they search for Ibo family’s ancestors (Okonkwo) and defense of black miners (John); finally, Akunna’s and Stephen’s catalyst identity happens in their alliance with negriticeness and Esu, as they establish human ties with Mr. Brown (Akunna) and James Jarvis (Stephen).

Key-words: Negriceness; Negritude; Negriticeness; Identity; Culture. 

 

Este estudo sobre identidades afro-descendentes, ao assumir a multiplicidade das experiências humanas, se ampara nas palavras de Pilate, personagem negra de do romance Canção de Solomon de Toni Morrison (1994), ao sobrinho Milkman:

E o escuro. Todo mundo acha que o escuro é uma cor só, mas não é verdade. Há cinco ou seis tipos de escruro. Uns sedosos, outros peludos. Alguns não passam de vazios. Outros são como dedos. Ele ele não fica quieto. Está sempre se mexendo e muda de um tipo preto para outro. Considerar uma coisa muito escura é como dizer que ela é verde. Ora, que tipo de verde? Verde como essas garrafas? Como um gafanhoto? Verde como um pepino, um alface ou como o céu antes da tempestade? Bem, a escruridão da noite é mais ou menos a mesma coisa. Pode ser um arco-íris” (TONI MORRISON: A Canção de Solomon, 1994, p. 51- 52)

Apoiado na pluralidade racial proposta por Pilate de que os “cinco ou seis tipos de escuro” desvelam a variabilidade das cores de “um arco-íris”, o texto aproxima três conceitos, três metáforas e seis personagens negros. Os conceitos, desenvolvidos por mim, são negrice, negritude e negritice (MARTINS, 2003). As metáforas são Ariel e Calibã, figuras criadas por Shakespeare (1999), e Exu, divindade da religião afro-descendente (GATES, 1988). No grupo das personagens, posiciono Nwoye, Okonkwo e Akunna, figurantes no romance O Mundo se Despedaça do nigeriano negro Chinua Achebe (1983), ao lado de Absalom, John e Stephen, os Kumalos de Chorai, Pátria Amada, do sul-africano branco Alan Paton (1988). Sob a égide da Negrice, Nwoye, Absalom e Ariel corporificam identificação com valores externos a sua cultura de origem e, portanto, desenvolvem identidades assimilacionistas; sob o manto da negritude, Okonkwo, John e Calibã, exemplificando amor a valores internos à cultura nativa, elaboram identidades nacionalistas; na esteira da negritice, Akunna, Stephen e Exu estabelecem apreço a valores tanto internos quanto externos às próprias culturas e, em consequência, assumem identidades catalistas. Associada aos conceitos e às metáforas, a meia-dúzia de personagens – Nwoye/Absalom, Okonkwo/John, Akunna/Stephen – sugere uma comunidade africana imaginada (HALL, 2001), marcada pela diferença identitária. Neste grupo comunitário, a noção de mobilidade identitária (HALL, 2001) propõe movimentação da afro-descendência por entre os três conceitos, metáforas e identidades. Assim, sua conversão política (WEST, 1994) se torna possível porque, quando lhes é oferecida alternância de atitudes, as personagens têm chance de resistir ao congelamento em um conceito, metáfora e identidade apenas. Por outro lado, reafirmo estas aproximações entre as duas obras para sugerir que os romances conversam – dialogam – através do processo de significação (GATES, 1988) a partir das maneiras como as personagens se movimentam entre os conceitos, metáforas e identidades.

I. NEGRICE.

Negrice engloba “as configurações negativas” (MARTINS, 2003, p. 15) associadas à experiência negra, determinadas pelo racismo branco e pelo racismo internalizado do africano. Nesta perspectiva, Ariel de Shakespeare (1999), Ariel de Rodó (2004), Nwoye de Achebe (1983) e Absalon Kumalo de Paton (1988) assumem identidades assimilacionistas quando se identificam com valores culturais fora dos seus grupos de origem. Na perspectiva de West (1993), ao buscarem modelos culturais europeus, gregos ou ingleses – ou seja, forasteiros – os três personagens deflagram “boa vontade e deferência ao pai Ocidental” (WEST, 1993, p. 85). Nas experiências desses sujeitos, o flerte com o Ocidente é estratégico porque visa à obtenção de algum beneficio pessoal ou coletivo, em associação com a responsabilidade existencialista, pois “escolhendo-me, escolho o homem” e, também, “a humanidade inteira” (SARTRE, 1984, p. 06-07). Memmi (1967) argumenta que o Ocidente – colonizador ou não – é recebido pelo não-ocidental colonizado como modelo cultural atraente porque “não sofre de nenhumas de suas carências, tem todos os direitos, goza de todos os bens ocidentais, se beneficia de todos os prestígios, dispõe de riquezas e de harmonias, de técnica e de autoridade” (MEMMI, 1967, p. 106-107).

A liberdade, um desses bens, é o interesse central de Ariel em A Tempestade de Shakespeare (1999). Ao aliar-se ao pai Ocidental, simbolizado em Próspero, por meio da sua adesão ao programa de colonização que o europeu impõe à ilha, o colonizado Ariel deseja alcançar libertação temporária para, mais tarde, obter liberdade definitiva. Próspero lembra-lhe, primeiramente, que Ariel era prisioneiro de Sycorax, mãe de Calibã, relatando que o espírito “foi trancado (...) num pinheiro rachado, em cuja fenda você ficou, em dor e prisioneiro, por doze anos” (SHAKESPEARE, 1999, p. 31). Depois, joga-lhe na cara que o salvou dos tormentos da prisão: “só minha Arte, quando cheguei e o ouvi, pôde abrir o pinheiro e livrá-lo” (SHAKESPEARE, 1999, p. 32). Finalmente, ameaça, se Ariel continuar recalcitrante, devolvê-lo à fenda horrenda: “Se ainda resmungar, abro o carvalho e o prendo nas entranhas da madeira para gemer doze invernos” (SHAKESPEARE, 1999, p. 32). Em resposta às ameaças do ex-conde de Milão, Ariel se submete ao colonizador, na expectativa da liberdade futura. Suas palavras são de rendição estratégica “perdão, amo. Eu obedeço a tudo que comandar, como espírito bom” (SHAKESPEARE, 1999, p. 32). Ainda, a obediência se consubstancia em ações que vão ajudar Próspero, não apenas a se consolidar como soberano da ilha, mas também a recuperar o condado perdido, em Milão. A adesão de Ariel se completa nestas palavras:

Salve, meu amo! Meu senhor, cá’stou
Pra atender seu prazer, seja voar,
Nadar, entrar no fogo, cavalgar
As nuvens; pra cumprir as suas ordens,
Eis Ariel e seus pares (SHAKESPEARE, 1999, p. 26-27).

O sucesso da empreitada – estrategicamente adesista – do espírito se apresenta nas palavras de Próspero, ao reconhecer que a qualidade do trabalho de Ariel garantiu-lhe o domínio total sobre a ilha, o casamento da filha e o retorno vitorioso a Milão. Ao conceder ao aliado a liberdade no final da peça, Próspero enfatiza: “Agiu bem e depressa. Vai ser livre.” (SHAKESPEARE, 1999, p. 123)

A colaboração de Ariel com o projeto colonizador de Próspero é ampliada, no ensaio Ariel, pela utilização metafórica que Rodó (2004) faz do Ariel shakespeariano. No texto, Próspero surge como o professor que aconselha, no último dia letivo, que seus alunos assumam Ariel como modelo de vida. O uruguaio acredita que Ariel simboliza o tipo de cultura que as novas lideranças latino-americanas devem fazer nascer no continente, no início do século 20. Calcado na juventude alegre, ativa e entusiasmada de Atenas que soube idealizar forças espirituais e físicas, a exortação do professor propõe à juventude do continente o desafio de “guiar os demais nos combates pela causa do espírito” (RODÓ, 2004, p. 222). O professor Próspero apresenta os valores culturais e estéticos da Europa que vão revolucionar a nova liderança continental: “a seleção espiritual, o enaltecimento da vida pela presença de estímulos desinteressados, o gosto, a arte, a suavidade dos costumes,” (RODO, 2004, p. 178). Sob a inspiração da estátua de Ariel, diante de todos no salão, Rodó pede que a futura liderança sul-americana valorize o gosto aprimorado, a graciosidade das formas, a virtude das idéias e a universalidade das visões; faça com que o continente combata o utilitarismo dos Estados Unidos, impedindo que a energia utilitária debilite o interesse pelo ideal desinteressado; e condene, por fim, a experiência utilitária norte-americana porque ela pode distanciar a América Latina da cultura helênica e européia. Apesar da condenação que dirige à civilização estadunidense, Rodó e seu Próspero nutrem esperanças de que os Estados Unidos alcancem “inteligência, sentimento e idealidade” para fazer surgir, em seu seio, “o exemplo humano, generoso, harmonioso e seleto” (RODÓ, 2004, p. 218) da cultura helênica, representa em Ariel.

No romance O Mundo se Despedaça, Achebe (1983) mostra a tentativa de um jovem ibo de alcançar a liberdade. O ato de escapar da autoridade paterna se dá através da identificação com o ideal religioso do cristianismo inglês. Identificação com o pai Ocidental (West, 1993), apreço ao espírito e beleza helênicos (Rodó, 2004), e apreciação dos bens e harmonias do Ocidente (Memmi, 1967), que a adesão de Nwoye ao Cristianismo sugere, trazem para o clã dos ibos a experiência da assimilação que Ariel desenvolve junto a Próspero e a liderança latino-americana ampara ao associar-se à cultura européia. Em busca de modelo religioso que dê sentido à vida, Nwoye acrescenta à liberdade de Ariel e aos ideais iluministas da liderança sul-americana, seus próprios interesses: o auto-amor, o amor para com a mãe e as irmãs e o ideal da vida religiosa cristã.

A adesão do jovem ibo ao que vem de fora do clã começa com a amizade que Nwoye tem pelo jovem Ikemefuna que vem morar com a família, procedente de outro clã. Os dois moços se tornam inseparáveis, dividem histórias, caças e trabalhos. A boa influencia do menino estrangeiro sobre Nwoye agrada ao pai Okonkwo. A boa relação entre os três homens dura até o dia em que Okonkwo mata Ikemefuna, como punição ao pai do jovem que havia assassinado um membro do clã de Nwoye. Nwoye chora a perda do amigo e o antagonismo entre pai e filho se torna incontornável. Em Nwoye, a sensação de perda vem da percepção dos gêmeos atirados à floresta escura e separados do convívio dos outros. A explicação para a sensação de solidão que o invade Nwoye vai encontrar no contato com os cristãos:

O hino que falava nos irmãos que viviam no escuro, com medo, parecia responder a uma vaga e persistente pergunta que obsecava sem cessar sua jovem alma: a indagação sobre os gêmeos chorando no mato e sobre a morte de Ikemefuna. Sentia-se aliviado por dentro, à medida que o hino jorrava sobre sua alma ressequida. As palavras do hino eram como as gotas de chuva gelada, quando se derretem de encontro ao seco céu da boca da terra, arquejante de calor. A mente do imaturo Nwoye estava profundamente confundida (ACHEBE, 1983, p. 136-137).

A morte do amigo, o destino dos gêmeos e os hinos cristãos levam Nwoye à adesão total ao Cristianismo que chega à aldeia nas orações e cânticos dos missionários ingleses. Do medo ao pai ele passa à negação da paternidade de Okonkwo. “Ele não é meu pai” (ACHEBE, 1983, p. 133). A negação da autoridade paterna e da filiação o libera para se envolver com a nova religião. Com o tempo, participa das reuniões dos cristãos, aprende as primeiras histórias, aprecia o efeito que as canções exercem sobre ele. A reação violenta do pai contra a aproximação do filho da nova religião sela a aceitação total de Nwoye do novo culto. O senhor Kiaga, representante cristão na aldeia, o envia à escola cristã onde Nwoye aprende a ler e a escrever. Quando ouve do senhor Kiaga “bendito seja aquele que abandona o pai e a mãe por amor de Mim” (ACHEBE, 1983, p. 141), Nwoye está “feliz por deixar o pai” (ACHEBE, 1983, p. 141). Mais tarde, seu cristianismo incipiente também se reveste da responsabilidade existencialista, na promessa de que “retornaria à companhia da mãe, dos irmãos e irmãs e os converteria à nova crença” (ACHEBE, 1983, p. 141). Para Sartre (1984), a responsabilidade humana se coloca duplamente, uma vez que quando “o homem se escolhe a si mesmo (...) ele escolhe todos os homens” (SARTRE, 1984, p. 06). Esta é a responsabilidade que Nwoye assume quando assimila a nova religião.

No romance Chorai, Pátria Amada, de Paton (1988), sul-africano branco, de novo é a busca da liberdade que leva o jovem negro Absalom a deixar a pequena aldeia paterna Ndotsheni em direção à grande Johannesburg. A adesão aos atrativos da vida na cidade grande o faz perseguir uma serie de bens culturais, cujo desenlace se torna dramático. A dramaticidade das experiências de Absalom em Johannesburg chega ao leitor através do pai, o Pastor Stephen. Stephen deixa a pequena aldeia para encontrar o filho e a irmã Gertrude e devolvê-los novamente a Ndotsheni. Depois de descobrir o paradeiro da irmã e, depois de colocá-la a viver na pensão da senhora Litherde, a atenção de Stephen, na companhia do colega de congregação Msimangu, se concentra na procura do filho. Stephen explica ao amigo as razões da busca: “É meu filho (...) Absalom é seu nome. Ele também veio, para encontrar minha irmã, mas nunca voltou, nem escreveu. Nossas cartas, as minhas e as da minha esposa, todas foram-nos devolvidas. E agora depois do que você me disse, estou mais temeroso (PATON, 1988, p. 24).

O medo do pai se justifica. Aos poucos, a vida de delitos do filho vai sendo desvelada ao leitor pelas andanças dos dois religiosos pelas favelas de Johannesburg. Em conversas com a irmã e o irmão John (ele também havia deixado a pequena aldeia natal), Stephen fica sabendo que Absalom e o primo Mathew, filho de John, moram em Alexandra. Lá, é informado pela senhora Mkize, a mulher que lhes dava morada, que os dois jovens “traziam muitas coisas (...) na calada da noite” como “roupas, relógios, dinheiro, comida” (PLATON, 1988, p. 45). Ela lhe passa o novo endereço dos primos: a favela de Orlando, entre os ocupantes de prédios abandonados. Mais adiante, Stephen descobre que o filho havia sido levado pelas autoridades para um reformatório com fama de que oferecia ajuda aos jovens negros infratores que desejassem mudar de vida. O diretor do estabelecimento, branco e cooperativo, informa que Absalom não se encontra mais no reformatório:

Fizemos uma exceção no caso dele, em parte por bom comportamento, em parte por causa da idade dele, mas principalmente porque havia uma jovem que estava grávida dele. Ela veio visitá-lo, e ele parecia gostar dela, e demonstrava ansiedade pela criança que estava para nascer. A jovem também parecia gostar dele, então com todos estes elementos, e a solene promessa de que trabalharia para a criança e a mãe, pedimos ao Ministro permissão para deixá-lo ir (...) Tudo já foi preparado para o casamento (...) Arranjei um trabalho para ele na cidade, e recebi bons relatórios sobre ele. Convenci-o a abrir uma Caderneta de Poupança e ele já economizou três ou quadro Libras (PATON, 1988, p. 60-61).

No local onde mora, a jovem conta a Stephen que já faz quatro dias que não vê Absalom. Dias mais tarde, Stephen fica sabendo através de Msimangu e do Diretor do Reformatório que Absalom havia assassinado Arthur Jarvis, o homem branco que trabalhava em prol da melhoria de vida dos negros. Stephen visita o filho na prisão, que, então, confessa o crime e assume a culpa, dizendo ao pai “fui eu que atirei no homem branco” (PATON, 1988, p. 88). A conversa entre pai e filho é uma tomada de consciência sobre a vida do jovem em Johannesburg. Em relação à cidade, Absalom reage de maneira dramática, dizendo que “Johannesburg é um lugar perigoso. A gente nunca sabe quando vai ser atacado” (PATON, 1988, p. 88). E a respeito das causas do crime, Absalom só encontra uma explicação para dar ao pai. “Foi o Diabo” (PATON, 1988, p. 90), ele diz.

Diante de todos esses dramáticos fatos, consideraram-se dois aspectos da vida de Absalom: de um lado, a assimilação dos valores da cidade grande desencadeia uma série de infrações, culminando com o crime do benfeitor branco e a condenação à morte por enforcamento; do outro, ela permite uma atitude de responsabilidade existencialista. Responsável, Absalom casa com a jovem grávida e dá uma família ao filho que vai nascer. Juntam-se, assim, responsabilidade existencialista, conversão política e a ética do amor, através da aproximação humanitária entre o pai e o filho negros e os benfeitores brancos. Vale repetir West (1994), neste momento, para quem, “uma política de conversão requer (...) afirmação” do indivíduo,  “consideração dos outros” e “uma ética do amor” envolvendo todos (WEST, 1994, p. 35).

II. NEGRITUDE.

Diferente do amor ao “pai ocidental” patrocinado pela negrice e “as configurações negativas”  (MARTINS, 2003, p. 15) da assimilação a ela associadas, negritude compreende “os aspectos positivos” (MARTINS, 2003, p. 15) colados à vivência negra pelos atores da resistência racial. Neste contexto de autonomia e auto-determinação, seguindo caminhos opostos aos dos assimilacionistas Ariel, Nwoye e Absalom, Calibã de Shakespeare (1999), Calibã de Retamar (2003), Okonkwo de Achebe (1983) e John de Paton (1987) desenvolvem identidades nacionalistas. De um lado, o nacionalismo das personagens se caracteriza pela identificação com valores culturais que julgam ser próprios dos seus povos e, do outro, pela resistência aos elementos que enxergam como pertencentes à cultura estrangeira. Na visão de West (1993), porque almejam a valorização da cultura autóctone e nacional, estas figuras se afirmam através de “uma busca nostálgica do pai Africano” (WEST, 1993, p. 85). A aliança com a África e com valores de matiz africano impede que Calibán, Okonkwo e John estabeleçam canais de contato produtivo com Próspero, Europa ou África branca. O Ocidente não os atrai, nem os benefícios ocidentais os seduzem. Memmi (1967) argumenta que “o impulso em direção ao colonizador”, que seduz Ariel, Nwoye e Absalom, “exigia, no extremo limite, a recusa de si próprio” (MEMMI, 1967, p. 112). Como resultado, diferentemente dos assimilacionistas, os dois Calibãs, Okonkwo e John, quando renunciam à assimilação, ativam a própria agência política “pela reconquista de si mesmo e de uma dignidade autônoma” (MEMMI, 1967, p. 112). Sua responsabilidade, existencialista e engajada, obedece ao mote sartreano de que “escolhendo-me, escolho o homem” e  “a humanidade inteira” (SARTRE,1984, p. 06-07). Ou seja, a agência do Calibã shakespereano se volta para si e à mãe Sycorex, a do Calibã de Retamar se dirige a si próprio e ao índio e negro da América, a de Okonkwo privilegia a si mesmo e ao clã; a de John alimenta a si próprio e aos mineiros negros de Johannesburg.

Em A Tempestade, de Shakespeare (1999), a assimilação de Calibã é temporária. A aliança estabelecida com Próspero que chega à ilha é recíproca: “logo que veio me afagava, mimava” (SHAKESPEARE, 1999, p. 35); “eu te amava, e mostrei a você tudo na ilha” (Shakespeare, 1999, p. 35), Calibã analisa as relações amistosas entre colonizador e colonizado que Próspero e ele representam. Porém, a relação entre amigos não se sustenta e a ruptura se dá quando Calibã desperta para o auto-amor e abandona o amor a/de Próspero. A primeira evidência de que a “dignidade autônoma” de Calibã se recupera aparece na reivindicação que ele faz da ilha roubada, esclarecendo ao europeu: “a ilha é minha, da mãe Sycorax que você me tirou” (SHAKESPEARE, 1999, p. 35). Calibã insiste na retomada da ilha, com a maldição que lança contra o inimigo:

Agora eu sei falar, e o meu proveito
É poder praguejar. Que a peste te pegue,
Por me ensinares tua língua (SHAKESPEARE, 1999, p. 36).

Mais tarde, Calibã vislumbra a liberdade com o auxílio de Trínculo e Stephano, os europeus que chegam à ilha no navio dos inimigos de Próspero, desviado para a ilha pela tempestade provocada por Ariel. Acreditando poder jogar europeus contra europeus, Calibã conta com os dois para o sucesso do plano de derrubada de Próspero. Ensina-lhes como devem proceder:

Mas antes, tira os livros (...)
Só lembrar de pegar primeiro os livros; sem estes
É um tolo igual a mim. (...)
É só queimar os livros (SHAKESPEARE, 1999, p. 85).

A oposição entre Calibã e Próspero, dramatizada pelo dramaturgo inglês, é retomada por Retamar (2003). No ensaio Calibã, o intelectual cubano coloca a figura de Calibã no lugar de Ariel, o símbolo latino-americano proposto por Rodó. “Nosso símbolo não é Ariel, como pensou Rodó, mas Calibã” (RETAMAR, 2003, p. 42), escreve o estudioso. A substituição de Ariel por Calibã significa a suplementação da atitude de assimilação cultural por uma postura nacionalista, a complementação da negrice pela negritude. Com Calibã, Retamar estipula que um outro modelo de cultura complementar para o continente não é a Europa, mas a própria América. E põe ênfase na necessidade de se viver também a cultura local, dizendo que “nossa Grécia é preferível à Grécia que não é nossa.” (RETAMAR, 2003, p. 57). É neste aspecto que o nacionalismo latino-americano, metaforizado em Calibã, é revolucionário. Para o autor cubano a cultura continental autônoma apresenta dois atores: o índio e o negro. Deles provém a força, a energia e o valor culturais da América Latina. “A nossa cultura é – e só poder ser – filha da revolução, da nossa repulsa multissecular a todos os tipos de colonialismos” (RETAMAR, 2003, p. 85), propõe Retamar. Ainda mais revolucionária se torna sua proposta porque abre espaço para Ariel, já que o inimigo de Calibã não é Ariel, mas Próspero. Assim, como o inimigo de Calibã-povo não é Ariel-intelectual, mas aquele que deseja subjugar o continente, pode-se depreender, do esforço conjunto de Calibã e Ariel, que a assimilação estratégica do segundo se mostra tão revolucionária quanto o nacionalismo autônomo do primeiro.

O romance O Mundo se Despedaça de Chinua Achebe (1983) desenvolve a trajetória de uma experiência calibanista e nacionalista na ficção Africana, na figura de Okonkwo, líder do clã ibo. Diferente do filho Nwoye cuja ação revolucionária deriva da necessidade de assimilar o Cristianismo, símbolo da cultura européia, Okonkwo ativa, simbolicamente, aproximação com o “pai Africano” (West, 1993), desfralda dignidade autônoma (Memmi, 1967), reclama a posse da ilha (Shakespeare, 1994), e erige sua Grécia cultural negra (Retamar, 2003). Todo esse fervor de Okonkwo para com a experiência autônoma do clã é canalizado pelo desejo de defender as tradições ibo contra as ameaças patrocinadas pelo Cristianismo que invade a vida daquela comunidade. Como Nwoye que evita os aspectos utilitários (Rodo, 2004) para alcançar valores espirituais dos cantos e orações cristãos, Okonkwo enfatiza os aspectos místicos e ancestrais das práticas religiosas do seu povo. Sua força se substancia numa postura de valorização e de permanência do culto ancestral entre os ibos e os familiares. Por isso, sua preocupação:

E se, quando ele, Okonkwo morresse, todos os seus filhos machos resolvessem seguir os passos de Nwoye e abandonar os ancestrais? Okonkwo sentiu um calafrio diante de tão terrível perspectiva, perspectiva que, para ele, significava total aniquilação. Via-se a si próprio e a seu pai, juntos, no santuário dos antepassados, a esperarem inutilmente pelo culto ou pelos sacrifícios de seus descendentes, nada restando ali senão as cinzas de antanho, enquanto seus filhos rezavam ao deus do homem branco. Se tal coisa chegasse a acontecer, ele, Okonkwo os faria desaparecer da face terrestre (ACHEBE, 1983, p. 141-142).

O nacionalismo de Okonkwo age no sentido de fazer “desaparecer da face” do clã o novo culto que ameaça a devoção aos ancestrais. Como os Calibãs de Shakespeare e Retamar, alia a autonomia da ilha e da América à independência da ancestralidade ibo. E reage ao avanço dos cristãos nas vidas dos ibos, com palavras claras e fortes de defesa do seu culto: “Se um homem entra na minha casa e defeca no chão (...) pego de uma vara e racho-lhe a cabeça! Assim é que um homem age.” (ACHEBE, 1983, p. 147). E é justamente assim que se comporta o nacionalista Okonkwo. Primeiro, adverte aos demais filhos que Nwoye “já não é nem meu filho nem irmão de vocês” (ACHEBE, 1983, p. 157). Em seguida, os admoesta de que os amaldiçoará se agirem como o irmão. Sua negritude ativa se torna ainda mais vital quando se dá conta de que a conversão dos irmãos ibos ao Cristianismo não está instalada apenas nos seu “compound” e família, mas ameaça tomar o clã inteiro. Range os dentes de raiva ao perceber que “o povo só tinha olhos e ouvidos para a nova religião” (ACHEBE, 1983, p. 166).

Consciente de que o clã se divide e se desintegra a olhos vistos, Okonkwo articula uma cartada decisiva. Inicialmente, entusiasmado com a destruição da igreja cristã por seu povo, ele parece reconciliado com o clã. Como reação, os ingleses prendem os líderes e só os libertam mediante o pagamento de uma multa de duzentos e cinqüenta sacos de cauris. Líder como os demais presos, aquela afronta incendeia o ódio de Okonkwo contra os invasores. “E jurou vingança [e até] se vingaria por conta própria” se o clã não o acompanhasse. Mais tarde, quando o clã se reúne na praça para decidir que resposta vai dar à afronta perpetrada contra os líderes, guardas ingleses chegam e exigem que reunião acabe. A reação de Okonkwo é, então, extrema, assim descrita: “num relâmpago, Okonkwo desembainhou a catana. O guarda agachou-se para evitar o golpe. Foi inútil. A catana de Okonkwo abateu-se sobre ele duas vezes, e a cabeça do guarda rolou pelo chão ao lado de seu corpo” (ACHEBE, 1983, p. 186-187). O ato fatal cela a sorte do líder no seio do clã. Ele é abandonado por quase todos. Sozinho, o suicídio é a alternativa que Okonkwo encontra para não se submeter ao domínio dos invasores e salvaguardar sua alma nacionalista.

O romance Chorai, Pátria amada de Alan Paton (1988) dramatiza experiências nacionalistas que se assemelham às de Okonkwo de Achebe. Elas são protagonizadas por John Kumalo, tio de Absalom e irmão de Stephen. Como o sobrinho e a irmã Gertrude, John deixa a pequena aldeia Ndotsheni e parte para a grande Johannesburg. Com palavras ácidas, apresenta ao irmão Stephen as razões da sua aída da aldeia natal:

Lá em Ndotsheni não sou ninguém. Até você, meu irmão, não é nada. Eu estou sujeito ao chefe, um homem ignorante. Devo saldá-lo e me ajoelhar diante dele, mas ele é um homem sem educação. Aqui em Johannesburg sou um homem com um pouco de valor, e alguma influência. Tenho meu próprio negócio e, em tempo bom, faço dez, doze libras por semana (PATON, 1988, p. 34)

Além da vida simples da aldeia natal, John ainda menciona a Igreja e o chefe como os motivos que o fazem trocar Ndotsheni por Johannesburg. Em Johannesburg, o ouro que os mineiros negros retiram das minas é que dá sentido a sua vida de líder dos trabalhadores negros. Ao justificar sua liderança junto aos mineiros que retiram o outro, mas não enriquecem com ele, John direciona críticas contra o sistema que penaliza o mineiro e beneficia o dono das minas, uma vez que, ele argumenta, “quando ouro novo é encontrado, não somos nós que recebemos mais por nosso trabalho. São as ações do homem branco que sobem na Bolsa” (PATON, 988, p. 34-35). A crítica contra os donos das minas fica ainda mais contundente quando a ela John adiciona a grandeza do trabalho dos trabalhadores negros na cidade: “Cada fábrica, cada teatro, cada casa bonita, tudo é construído por nós” (PATON, 1988, p. p. 35). E completa, com a convicção de que, no futuro, os negros vão transformar suas vidas na cidade. “Há algo novo acontecendo aqui, ele diz, mais forte do que qualquer igreja ou chefe. Você vai ver um dia” (PATON, 1988, p. 35).

O religioso Msimangu, amigo de Stephen, conhece bem o trabalho de John e reconhece sua liderança entre os mineiros de Johannesburg. Msimangu menciona a maneira como John utiliza a voz nas concentrações de mineiros. “Ele fala como um touro, urra como um leão, e pode deixar os mineiros loucos se quiser” (PATON, 1988, p. 36), explica o religioso a Stephen, irmão de John. A liderança de John não é solitária, mas se consolida com o trabalho de dois outros homens, Dubula e Tomlinson. Num episódio que mostra uma concentração de mineiros, a voz de John surge como uma habilidade mágica do líder que dinamiza a África toda. “A voz carrega a mágica nela, e possui ameaça nela, e é como se toda África se encontre nela” (PATON, 1988, p. 158). A voz do líder não se dirige apenas aos mineiros, mas a toda África, para fazê-la acordar, ressurgir. Aos mineiros, ele diz “só exigimos a nossa parte, suficiente para manter nossas esposas e famílias longe da fome” (PATON, 1988, p. 158). Consciente de que é a pobreza dos mineiros que deixa os donos ricos, e consciente também de que a indústria das minas não se mantém sem o trabalho dos mineiros, John fala: “vamos vender nosso trabalho pelo que ele vale. E se a indústria não consegue comprar nosso trabalho, que a indústria morra. Não vamos vender nosso trabalho barato para que a indústria viva” (PATON, 1988, p. 160). À África negra ele oferece a liberdade, gritando sua mensagem de libertação continental:

Eu digo a vocês que temos trabalho para vender, a liberdade do homem permite que ele venda seu trabalho pelo valor merecido. É por essa liberdade que travamos esta luta. Foi por esta liberdade que muitos dos nossos soldados africanos combateram (...) Não somente aqui, ele diz, mas na África toda, em todo este continente em que todos nós africanos vivemos (PATON, 1988, p.  160).

Stephen que ouve o irmão se deixa tomar pela voz poderosa do líder. “Ele mexeu comigo como se eu fosse uma criança” (PATON, 1988, p. 160), diz o religioso. O poder da oratória de John é também reconhecido por Msimangu. “Se ele fosse um pastor, todo mundo o seguiria” (PATON, 1988, p. 160), diz a Stephen.

III. NEGRITICE

Na pluralidade das experiências negro africanas na literatura, este terceiro conceito sugere a união dos dois primeiros e funde Negrice e Negritude. Combina “os aspectos positivos da negritude e as configurações negativas da negrice” (MARTINS, 2003, p. 15). Nesta configuração interativa, Negritice incentiva a transcendência das posturas isoladas dos ocidentalizados Ariel, Nwoye e Absalom e dos africanizados Calibã, Okonkwo e John. Nela, Exu metaforiza a superação das polaridades em que o “pai Ocidental” e o “pai Africano” se vêem encurralados. Diante das possibilidades da interação interracial que Exu propicia, a adesão do Ariel shakespereano ao colonialismo de Próspero, do Ariel de Rodó à beleza cultural da Europa, a conversão de Nwoye às práticas cristãs dos ingleses, a aceitação de Absalom da vida mundana Johannesburg aliam-se à rejeição a Próspero pelo Calibã shakespereano em favor da ilha e da mãe Sycorax, ao afastamento da Europa pelo Calibã de Retamar em nome da América, ao combate aos cristãos por Okonkwo ibo em favor dos ritos ancestrais do clã e, por fim, ao ataque do zulu John aos donos das minas de Johannesburg em nome dos mineiros e da África negra. Aqueles são isolamentos culturais, raciais e nacionais que podem – e devem – ser desafiados e superados. O desafio de Exu a todas estas posturas unilaterais e exclusivistas procura tanto problematizar os ganhos e perdas assimilacionistas de Ariel, Ariel, Nwoye e Absalom quanto redimensionar as conquistas e derrotas nacionalistas de Calibã, Calibã, Okonkwo e John. Ao problematizar os avanços e recuos dos dois grupos Exu propõe uma terceira alternativa para a agência dos africanos Nwoye, Absalom, Okonkwo e John. De um lado, Exu conserva as possibilidades revolucionárias da conversão política dos atores africanos metaforizados por Ariel e Calibã e, do outro, engendra uma saída ainda mais estimulante, reveladora e transformadora para os atores africanos simbolizada em Exu.

Quando associados às palavras de West (1993) sobre o papel do africano nas relações interraciais, Negritice e Exu advogam a mediação interracial entre colonizadores e colonizados, europeus e africanos, brancos e negros, ibos e cristãos, zulus e ingleses, Ndotsheni e Johannesburg. Em vista deste contexto conciliatório, West esclarece que o ator cultural afro-americano – africano também – se esforça para juntar “uma negação crítica, uma preservação sábia e uma transformação insurgente da linhagem negra [branca, também] que deseja proteger a terra e construir um mundo melhor” (WEST, 1993, p. 85). Motivada por Exu, a experiência africana exige do colonizado um avanço da “solidariedade nacional à solidariedade humana”, ou seja, demanda um abrir-se “ao mundo, humanista e internacionalista” (MEMMI, 1967, p. 117).

O anseio do africano de aproximar culturas diferentes, simbolizado em Exu, é discutido por Gates (1988). O estudioso explica que o potencial que Exu encarna de aproximar e misturar culturas e raças díspares reside no fato de o deus africano manter “uma perna ancorada no mundo dos deuses enquanto a outra descansa neste nosso mundo humano” (GATES, 1988, p. 6). Este movimento entre o divino e o humano transforma Exu no mediador que “interpreta a vontade dos deuses ao homem e leva os desejos do homem aos deuses” (GATES, 1988, p. 6). A habilidade de estabelecer diálogos entre os deuses e os homens permite a apreensão do deus negro como agente de relações interculturais e interraciais. Neste aspecto, Exu se transforma na metáfora do encontro entre os africanos e os europeus no continente africano, durante o período da colonização, o que explica o desenvolvimento de culturas híbridas, como as afro-descendentes, ou afro-européias. Gates argumenta que “a cultura [afro-européia] é uma cultura africana” que se re-significa de maneira catalista no contato, na África, com “as culturas e as línguas inglesas, holandesas, francesas, portuguesas ou espanholas” (GATES, 1988, p. 4) que para lá foram direcionadas pelo esforço colonizador. A liquidez e a fluidez interculturais de Exu, provenientes da permanência nas águas do oceano durante a viagem entre África e América, confere ao deus valor de significação viajante. Como resultado, Exu adquire elementos de “um emblema do processo de tradução e transmissão culturais que se repetem com extraordinária freqüência quando as culturas africanas se encontraram com culturas européias [da África] e criaram um novo sistema cultural” (GATES, 1988, p. 19): a cultura afro-européia.

Exu representa a possibilidade de superação da oposição binária – ou Ariel, ou Calibã – transformando-se na experiência combinatória – Ariel e Calibã. A multiplicidade divina de Exu advém do fato de que cada deus tem seu Exu; e a cultural, da aceitação de que cada ser humano – africano, europeu; ibo, zulu, inglês – carrega um Exu dentro de si. “Uma pessoa que não tenha um Exu no seu corpo não existe e nem sabe que está vivo” (GATES, 1988, p. 37), diz Gates. No clã ibo e em Ndotsheni, a cultura afro-inglesa provém do fenômeno de que os negros e os brancos africanos carregam exus dento de si. Esta fusão interracial e intercultural não significa a eliminação das diferenças, mas a possibilidade de que as diferenças possam conversar, sem medo de que uma parte controle a outra. Desta maneira, se Ariel/Ariel/Nwoye/Absalom e Calibã/Calibã/Okonkwo/John são revolucionários, Exu é a revolução dentro da revolução. Ou seja, transformam-se na conversão política através da mobilidade identitária por excelência, como ensinam West (1994), Memmi (1967) e Hall (2001).

O romance O Mundo se despedaça de Chinua Achebe (1983) aproxima o Exu ibo simbolizado em Akunna ao Exu inglês personalizado em Brown. Akunna e Brown promovem diálogos teológicos em que desenvolvem paralelos instigantes entre o culto ibo e o cristianismo inglês, possibilitando que as dois personagens atuem como Exus afro-ingleses. Sua mediação intercultural evidencia a possibilidade de superação das posturas extremas de Ariel e seus seguidores ficcionais, reveladas na adesão que estes postulam de modelos culturais externos; e as de Calibã e seus afiliados nos romances, representadas na devoção aos valores internos, próprios dos seus mundos culturais. Metaforizados como Exus, o ibo Akunna e o inglês Brown desejam um mundo melhor (West, 1993), deflagram a solidariedade humanista (Memmi, 1967), fazem dialogar as culturas de matrizes africana e européia (Gates, 1988), representadas nas duas crenças religiosas. O trabalho de mediação é possível pelo respeito que ambos nutrem pelas diferenças religiosas e pela admiração recíproca que alimenta às próprias experiências de crença. Como resultado do entendimento entre os dois, os ingleses constroem “uma escola e um pequeno hospital em Umuófia”, e o clã envia os alunos e, então, “a religião e a educação andaram de mãos dadas” (ACHEBE, 1983, p. 165) entre ibos e ingleses.

A estrada “de mãos dadas” entre as duas culturas é pavimentada pelos exus de Brown e Akunna, em diálogos em que ambos desvelam posturas conciliadoras. “O senhor Brown costumava pregar contra (...) excessos de zelo” cristão que poderiam “provocar a ira do clã” e, dessa maneira, minar qualquer potencial cooperação entre os dois grupos. Akunna “entregara-lhe um dos filhos, para que aprendesse na escola do senhor Brown a ciência do homem branco” (ACHEBE, 1983, p. 162). Esta tolerância recíproca se amplia quando, em seus encontros, os dois se põem “a conversar (...) sobre religião” e aprendem “alguma coisa a respeito de suas respectivas crenças, tão diferentes entre si” (ACHEBE, 1983, p. 162). Os conhecimentos religiosos partilhados – as experiências, também – aproximam o Deus cristão e o Chukwu ibo como criadores do céu, terra, e do mundo inteiro.

Outro ponto de concordância entre os dois teólogos e suas crenças diz respeito a como cada cultura se vale de mensageiros para que Deus e Chukwu mostrem sua presença divina na vida real. Akunna explica ao inglês o significado de Ikenga, a estatueta de madeira, detentora de status divino. “É na verdade um pedaço de madeira. Mas a árvore da qual foi cortado foi feita por Chukwu, da mesma maneira, aliás, que todos os deuses menores. Chukwu fez esses deuses para serem mensageiros, através dois quais todos nós podemos nos aproximar d’Ele” (ACHEBE, 1983, p. 163). Mais adiante, Akunna intensifica seu ponto de vista teológico, explicando ao inglês que:

Fazemos sacrifício aos pequenos deuses, mas quando eles nos falham e não há mais ninguém que nos possa socorrer, nos dirigimos a Chukwu. Isso é o que é certo. Pois a forma de nos aproximarmos de um grande homem é através de seus servos. Mas se esses servos fracassam e não conseguem nos auxiliar, então nós nos dirigimos à última fonte de esperança. É apenas uma impressão, a de que damos grande importância aos pequenos deuses, impressão falsa. Simplesmente, nós os incomodamos mais a miúdo, por temer incomodar o Chefe deles todos (ACHEBE, 1983, p. 164).

A cooperação de Brown é no sentido de realçar a bondade divina do Deus cristão, enfatizando que o Chukwu dele “é um pai amantíssimo” que valoriza aqueles que “cumprem Sua vontade”. A este pensamento Akunna adiciona o posicionamento de que a vontade divina de Deus ou de Chukwu “é algo grande demais para ser conhecido.” O colóquio sobre as teologias cristã e ibo é produtivo para ambos e, como sugere o narrador, “o senhor Brown aprendeu muito sobre a religião do clã” (ACHEBE, 1983, p. 164). O novo aprendizado o ajuda a estabelecer ações produtivas – afirmativas – de aproximação entre ibos e ingleses. A escola aberta por ele ensina a leitura e a escrita aos ibos, dá-lhes empregos de mensageiros e funcionários. O argumento forte de Brown para conseguir a adesão dos ibos é o da educação, convencendo-os de que “os futuros líderes da região seriam os homens e mulheres que tivessem aprendido a ler e a escrever” (ACHEBE, 1983, p. 165). As atitudes de Akunna em relação ao projeto de integração interracial de Brown são de apoio e, por isso, diferem das de Okonkwo para com os ingleses. As de Brown se opõem às de Smith que, mais tarde, o sucederá e condenará “a política de acomodação e concessões adotada pelo senhor Brown” (ACHEBE, 1983, p. 167).

O romance Chorai, Pátria Amada de Alan Paton intensifica as discussões teológicas de Akunna e Brown ao tirá-las do contexto teológico e levá-las o mundo real. O diálogo, agora, coloca lado a lado o religioso zulu Stephen Kumalo e o agro-empresário inglês James Jarvis, na aldeia Ndotsheni. A cooperação dos dois em prol da aldeia se torna ainda mais relevante se consideramos as mortes dramáticas de seus filhos: Absalom, filho de Stephen, é condenado ao enforcamento pelo assassinato de Arthur, filho de James. As ações cooperativas que os dois homens protagonizam em favor da aldeia comum são os projetos de melhoria da vida do povo, arquitetados pelo religioso zulu, para os quais o inglês carreia aportes financeiros, equipamentos e material humano. Diante das dificuldades que o povo da pequena aldeia enfrenta, Stephen expressa seu credo: “Aprendi que gentileza e amor podem compensar pela dor e sofrimento” (PATON, 1988, p. 193). Imbuído desta solidariedade humana, Stephen comunica ao Chefe da aldeia e ao povo seu projeto de manter os jovens na aldeia, “ensinando-os na escola a cuidar da terra. Então pelo menos alguns permaneceriam em Ndotsheni” (PATON, 1988, p. 196). Sua preocupação é consistente com os problemas que todos enfrentam. Stephen os resume:

É triste olhar o lugar onde se ensina [se aprende]. Não há grama nem água lá. E quando a chuva vem, o milho não alcança a altura de um homem. O gado está morrendo, e não há leite. O filho de Malusi morreu [de fome], o filho de Kuluse está morrendo. E quem mais morrerá, só Tixo [Grande Espírito] sabe (PATON, 1988, p. 196).  

Entre a prece feita na igreja “nas tuas mãos, oh Deus, coloco Ndotsheni” (PATON, 1988, p. 198) e as soluções transformadas em fatos concretos com a participação do inglês branco encontra-se o neto de James. Com o pretexto de aprender a língua Zulu com Stephen, o menino toma conhecimento das intenções do pastor e os leva ao avó, que providencia as soluções. Primeiro, o branco James manda leite todos os dias às crianças das aldeias, salvando o filho de Kuluse. Depois, James contrata um jovem negro especialista em agricultura para ajudar os agricultores da aldeia a desenvolver formas mais produtivas de lidar com a lavoura. Em terceiro, inicia a represa “para que o gado sempre tenha água para beber” (PATON, 1988, p. 216). O especialista explica ao religioso a função da represa: “a água vai sair através da comporta, e vai regar esta terra e vai molhar as pastagens plantadas” (PATON, 1988, 216). Em retribuição à ajuda recebida, quando a esposa de James morre, a comunidade de Stephen envia à família uma coroa de flores, acompanhada de orações. Em resposta, James agradece e informa que tudo o que está fazendo por Ndotsheni é “em memória do nosso amado filho” (PATON, 1988, p. 223), o Arthur assassinado por Absalom, filho de Stephen. Diante de todas as mudanças que ocorrem na aldeia, a impressão de Stephen é de gratidão: “estamos felizes (...) coisas novas estão acontecendo (...) há leite para as crianças, o jovem especialista está aí, e os preparativos para a represa foram iniciados” (PATON, 1988, p. 221).

A parceria entre os dois homens em prol de Ndotsheni tem seu ponto alto quando Stephen e James se encontram. Durante a conversa, Stephen é comunicado que o amigo está preparando a construção de uma nova igreja. Emocionado, Stephen agradece ao inglês “o jovem especialista, o leite, e agora a igreja” (PATON, 1988, p. 232). A solidariedade entre James e Stephen, em nome de Ndotsheni, é ampliada pela participação do jovem especialista que deseja ver o trabalho dos dois homens se espalhar por todo o continente africano. “Trabalhamos pela África, ele diz, nunca por este ou aquele homem. Nunca por um homem branco ou um homem negro, somente pela África,” (PATON, 1988, p. 229), sem ódio nem desejo de poder sobre ninguém.  

IV. INFERÊNCIAS

Que inferências podem surgir do que se apresenta até aqui a respeito da conversão política e da mobilidade identitária no âmbito das experiências negro-africanas protagonizadas por Nwoye, Okonkwo e Akunna no romance de Chinua Achebe (1983) e Absalom, John e Stephen na narrativa de Alan Paton (1988)? Pode-se afirmar que o estudo projeta um olhar sobre uma potencial comunidade africana imaginada na diferença. Nela a experiência africana negra é mediada por um conjunto complexo de diferenças, mediadas por conceitos, metáforas, identidades e personagens: conceitos de negrice, negritude e negritice; metáforas de Ariel, Calibã e Exu; identidades de assimilação, nacionalismo e catalismo; personagens Nwoye e Absalom, Okonkwo e John, Akunna, Stephen, Brown e James, respectivamente. O respeito às diferenças é preponderante porque, para Hall (2001), o que marca uma comunidade cultural – local, ou nacional – não é um repertório de igualdades, mas, ao contrário, um conjunto de diferenças. Ele recomenda que “em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade” (HALL, 2001, p. 62). Tomando a diferença como o elemento constitutivo de um grupo cultural, como aconselha o autor, pode-se se pensar que, nesta comunidade imaginada de personagens africanos das obras de Chinua Achebe e Alan Paton, a diferença identitária é seu aspecto mais característico. Nela, complementam-se – suplementam-se - as identidades de Nwoyes e Absaloms, de Okonkwos e Johns, e de Akunnas e Stephens.

As “profundas divisões e diferenças internas” (HALL, 2001, p. 62), associadas aos contínuos deslocamentos identitários que se interpelam no seio de uma comunidade não a paralisam. Ao contrário, a tonificam por que suplementares, e favorecem atitudes abertas ao diálogo dos diferentes. Por isso, é possível esperar que Nwoyes, Absaloms, Okonkwos, Akunnas e Stephens conversem entre si e se completem, sem exclusão de qualquer um deles. Em outras palavras, que se crioulizem, como pensa Glissant (2005) e, assim, se tornem agentes de uma comunidade de cultura compósita. “Nas culturas compósitas”, escreve Glisssant, a identidade se constrói “como fator e como resultado de uma crioulização, ou seja, da identidade não mais como raiz única mas como raiz indo ao encontro de outras raízes” (GLISSANT, 2005, p. 27). Pensar que nesta comunidade descortinada nos romances de Achebe e Paton, assimilacionistas como Nwoye e Absalom vão ao encontro de nacionalistas como Okonkwo e John, sem medo de rejeição ou de estigmatização, e os dois caminhem na direção de catalistas como Akunna e Stephen, é pensar em um tipo de conversão política cujo elo agregador é o amor, em sua dupla manifestação de auto-amor e amor dos outros. Este caminhar na direção do outro é uma mudança radical de agência política que, segundo West (1994), “se faz por meio da afirmação, pela pessoa, de seu próprio valor – afirmação essa alimentada pela consideração dos outros. Uma ética do amor tem de estar no centro da política de conversão” (WEST, 1994, p. 35).

Conversão política alia-se a duas outras mobilidades: a identitária e a textual. Hall (2001) alerta para o fato de que a identidade se constrói no movimento que transforma os atores políticos. Ele esclarece que a identidade é “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2001, p. 13). As identidades de Nwoye, Absalom, Okonkwo, John, Akunna e Stephen, deslocadas nas interações culturais que protagonizam, se afinam com o deslocamento textual que aproxima textos literários, permitindo diálogos e conversas intertextuais. Gates (1988) os definem como significação, ou seja, como o tipo de intertextualidade que “mostra como textos negros ‘conversam’ com outros textos negros [e brancos]” (GATES, 1988, p. xxvi). Para ele, esta conversa não é pura repetição, mas admite revisão e diferença. “A significação,” ele acrescenta, “é uma metáfora da revisão textual” porque permite que “um texto signifique sobre o outro texto, por meio da revisão, ou repetição e diferença tropológicas” (GATES, 1988, p. 88).

A visão que se alcança deste embate entre diferença, mobilidade, crioulização, conversão e significação é a de que Nwoye, Absalom, Okonkwo, John, Akunna e Stephen – amparados por conceitos, metáforas e identidades – são capazes de se construírem como sujeitos das margens, ativos e produtivos, que se introduzem “no cenário político e cultural” (HALL, 2003, p. 338) e dele se apossam. Nas posturas interculturais e interraciais pode-se vislumbrar como suas atitudes existenciais os aproximam do pós-moderno pela pluralidade, dos estudos culturais pela ênfase na diferença, e do existencialismo sartreano pela responsabilidade: a de Nwoye e Absalom para com eles e suas famílias; a de Okonkwo e John para com eles, o clã e os mineiros; a de Akunna e Stephen para com eles, a religião ibo, a aldeia Ndotsheni e a África. Para Sartre (1984), “o homem [não] é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas ele é responsável por todos os homens”, ou seja, cada um deles se escolhe, mas “escolhendo-se, ele escolhe todos os homens“ (SARTRE, 1984, p. 6).

Referências

ACHEBE, Chinua. O Mundo se Despedaça. São Paulo: Ática, 1983.

GATES, Henry Louis, Jr. The Signifying Monkey:  A Theory of African-American Literary Criticism. Oxford: Oxford University Press, 1988.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma Poética da Diversidade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.

HALL, Stuart. Que “Negro” é esse na cultura negra. In: HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003, p. 335-349.

MARTINS, José Endoença. Negritice: Repetição e Revisão. In: MARTINS, José Endoença. O Olho da Cor: Uma Peça em três atos. Blumenau: Edição do Autor, 2003, p. 13-18.

MEMMI, A. Retrato do Colonizado Precedido pelo Retrato do Colonizador. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

PATON, Alan. Cry, the Beloved Country. London: Penguin Books, 1988. 

RETAMAR, Roberto Fernández. Todo Caliban. San Juan: Ediciones Callejón, 2003

RODÓ, José Enrique. E. Ariel. Madrid: Ediciones Cátedra, 2004.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In: SARTRE Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo; A Imaginação; Questão de Método. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 1- 32.

SHAKESPEARE, William. A Tempestade. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999.

WEST, Cornel. The Dilemma of the Black Intellectual. In: Cornel West Keeping Faith: Philosophy and Race in America. London: Routledge, 1993, p. 67-85.

WEST, Cornel. Questão de Raça. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Nota

* Professor do Mestrado em Letras de Práticas Transculturais.

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