Bissau entre o Djamu e o Tchintchor
sob os olhares e cantares de Odete Semedo1

 

Roberta Maria Ferreira Alves*

Ensinaram-me que as letras e as palavras
Traduzem reproduzem encantam contam
Pensamentos intentos devaneios sonhos.

Odete Semedo

Cá estamos nós, diante de um livro, aparentemente comum, um exemplar vermelho, que representa como diferencial elementos de uma terra, que pouco sabemos, ilustrada com panos, cabaças, gamelas, tradições e letras brancas. Os sentidos, involuntariamente, nos arremessam a vários espaços, a vários momentos e, quase imperceptivelmente, percebemos que temos em mãos um pedaço de África que nos fala forte. A leitura ávida nos permite uma travessia de um chão para outro, como a própria autora anuncia em sua nota de abertura. É impossível não olhar para trás e sentir os embrulhos que carregamos até aqui, nem tampouco é possível deixar de vislumbrar aqueles que nos serão no presente, colocados para o futuro.

Ler um livro de poesias é uma experiência sensorial completa, um ir e vir, uma troca entre leitor e sujeito lírico, quase uma relação simbiótica entre esses dois elementos tão essenciais diante de uma das ações mais caras para o ser humano: ler. Ler é um processo de desnudamento e percepções, e, por este motivo, admitimos que, por mais que tenhamos tentado tecnicamente distanciar nossa figura da poeta, mulher forte, singela, desconfiada e cativante como Odete Semedo, a história de seu povo, as tristezas e esperanças de sua gente, tememos que todas as nossas tentativas tenham sido frustradas e que ainda existam gotículas de tudo isso esparramadas pelo artigo.

O intuito inicial deste texto é propor uma das possíveis leituras de uma parte específica do livro No fundo do canto (2007), e para isto, é preciso abandonar a mulher e assumir a Tcholanadur1 feminino de uma nação, sujeito crítico de sua história e de seu tempo e que, ao mesmo tempo, não se permite distanciar, um segundo sequer, de sua tradição, de sua condição, de sua posição e de sua história.

O título do livro, No fundo do canto, nos instiga com a ambiguidade da palavra canto, substantivo masculino que pode ser lido em dois planos de leitura: por um lado, como ângulo saliente ou reentrante, algo formado pelo encontro de linhas ou superfícies, um local esconso, talvez, afastado e pouco frequentado, e, por

ser esse um livro de poesias, poeticamente, vale recordar que canto se refere a cada uma das divisões de um poema épico em cujo conteúdo, o divino se confunde com a realidade e a lenda com a história, geralmente invocando algo ou alguém de valor extraordinário. Por outro lado, no terreno específico da ambiguidade linguística quem sabe, não estejamos apenas diante do intenso ato de cantar a tradição, os costumes, o amor à terra?

A própria Semedo alega que seu livro é uma das inúmeras tentativas de manter viva a sua terra, sua gente, sua memória. Admite não querer que sua terra se torne uma outra Itabira, “apenas um retrato na parede”. Escreve um livro que possa resgatar, do fundo da alma, verdades e lembranças, mesmo aquelas bem no canto, aquelas mais recônditas, para que assim, o povo seja ouvido, sentido, cantado, e se orgulhe do que foi, e é, e construa sua terra como nação um pouquinho a cada dia.

O livro em última análise, divide-se em quatro partes: “No fundo.... No fundo...”, “A história dos trezentos e trinta e três dias”, “Consílio dos Irans, e ainda “Os embrulhos” que se desdobra em três partes, dentre as quais, da subdivisão intitulada “O terceiro embrulho”, a parte que analisaremos mais detidamente. Assim sendo, nossa leitura será direcionada aos sete poemas, a saber: “E os falsos heróis chegarão”; “Esperança agonizante”; “Discurso de Urdumunhu2”; “Bissau levante-se”; “A partida dos Irans3”; “Então o cantor da alma juntou a sua voz ao do thintchor4” e “Largou no vento a poesia canto”.

Durante a leitura deste canto guineense, deparamo-nos com expressões e fatos que se desenham como elementos dificultadores de uma leitura fluente para aqueles que não são guineenses e não conhecem a fundo a história, as tradições e percepções do povo guineenses e não conhecem a fundo a história, as tradições e percepções do povo guineense, o que, obviamente, causa estranhamentos e incompreensão imediatos, empecilhos, contudo, transpostos pela inserção, no livro, de um carinhoso glossário e da versão, em português, de poemas em crioulo, que direcionam à leitura eficaz e contundente de que o livro faz jus.

Esse canto é uma forma de externar poeticamente todas as angústias provocadas pelas crises políticas, pela fragilidade de uma nação em momentos de guerra civil, pela visão das atrocidades impingidas a um povo. O texto é mnemônico, mas também apresenta projeções e questionamentos sobre o presente e o futuro, uma necessidade premente de se fazer porta-voz de usa gente. A este respeito, assim se manifesta Moema Augel:

Odete Semedo, no instante mesmo da angustiada fuga, pressentiu efervescer dentro de si a necessidade de expressar de algum modo aquela vivência. Artista da palavra, não tomou de pincéis nem do bombolon5. Um livro, um longo poema extraído do fundo de suas entranhas, do canto mais recôndito do seu medo, das suas lágrimas e da sua cólera, um cantopoema, um tokatchur6 (SEMEDO, 2007, p. 186-187).

É nesse sentido que conduzimos nossa leitura, tentando desvelar uma pequena parte desse cantopoema como um grito feminino de socorro, de manutenção, de valorização e de esperança. É perceptível a função que se atribui ao sujeito lírico criado por Senado; cabe a ele transmitir notícias, apontar caminhos, mas sem se distanciar do lirismo das metáforas, nem tampouco da realidade cruel de um caos de desgovernança que assola o contexto de uma época. Em um período no qual o silêncio impera e se torna atitude comum, os poemas são vistos como atos de coragem, espaço de resistência, relicário de memória que deve ser preservado como fonte de conhecimento para as gerações que virão.

Fazemo-nos, em nossa proposta, parceiros daquela mulher que em momento de fuga se define como um ser que carrega no olhar o passado vivido, os horrores do presente que vive e a necessidade de vislumbrar esperança no futuro, como uma guineense que carrega um “nbludju7 na cabeça e a criança às costas”. Que embrulho seria esse, suas memórias, seus pertences? Seriam três os embrulhos que Semedo nos permite perceber: pacotes, coisas e situações confusas? A autora, verdadeiramente, nos permite percebê-los, ou ela, simplesmente, nos deixa fazer leituras ambíguas?

Em “Os embrulhos”, fica bem delineado o processo mnemônico reflexivo e testemunhal que a autora utiliza em seus poemas, e nos quais o desvelamento temporal permite antever estratégias que burlam o discurso eurocêntrico do colonizador, seja no uso irônico da língua oficial seja na inclusão de diversos índices da tradição africana, em um mesmo patamar da tradição europeia. É a Guiné que fala um português mesclado com o crioulo; é a língua como porta-voz da resistência. A poeta nos convida a desembrulhar o embuste e, para isto, simbolicamente desenha um fio que conduzirá a ação em nossa tentativa de desfazer este pacote.

Os sete poemas são articulados como uma espécie de rede através da qual os finais dos poemas retomam e dialogam com os inícios deles. Ao abrirmos o terceiro embrulho, nos deparamos com um alerta. O sujeito lírico nos apresenta uma Guiné destroçada e fragmentada, mas que deve ter cuidado com a ânsia e o desejo intenso de se fazer uma, inteira, pois, pode se deparar com falsos heróis, como aqueles desenhados em “E os falsos heróis chegarão”, poema no qual o sujeito lírico alerta seus compatriotas contra aqueles que, mansamente, “com os pés de lá”, tomarão de assalto a nação ferida; eles são indivíduos falsos que obedecem a dois reis e aproveitarão o momento propício para eliminar a esperança que a nação cultiva, aquela que, por muito tempo, foi seu esteio na busca por soluções para os problemas experienciados. O poema opera como advertência contra a fragilidade crescente, porque a esperança, mesmo se agonizante, deve ser mantida e valorizada.

Mesmo tendo sido transformado em “terra regada de sangue”, o sujeito lírico se assume esperança em “Esperança agonizante”, e se desvela como algo que nasceu repleto de luz e cor, mas que foi, ao longo de um tempo, marcado e vilipendiado e que, por isso, se sente agonizante. Este sujeito batalha com as armas que possui para não fenecer. No combate contra a dominação, o esquecimento, as intempéries, ele resiste, mas se percebe transformado, recriado, sobrevivente, despedaço e verborragicamente falante, detentor de um discurso que se articula como algo sem sentido, ou que dá voltas sem sair do lugar, uma fala com cartas marcadas, valores mantidos e favores sustentados.

A necessidade de falar, de estabelecer um contato que valorize a intimidade e a identificação com aquele que ouve, e assim convencer, estabelecendo uma verdade única, é o que deixa transparecer o sujeito lírico de o “Discurso de Urdumunhu”. A voz que fala no poema chama sus interlocutores de irmãos, aproxima suas experiências e desenha o substantivo pátria através dessas aproximações. Ele é um “serve-dor” da pátria e não um servidor, ele a oferece e não a sente. Ele a suga e não a valoriza, ou a constrói. A poeta, ironicamente, desvela as incongruências que constituem este sujeito lírico, mostrando que a exploração não aconteceu apenas pelos colonizadores, mas pelos falsos heróis que se intitulavam “irmão”, capazes de estabelecer uma relação ilógica entre valores e vícios, é o que lemos nas palavras do sujeito lírico nos enunciados: “Nada de receber ao final do mês que é vício colonial”; receber pelo trabalho executado é algo que os colonizadores criaram, mas agora que os guineenses podem pensar por si mesmos, é hora de poupar, para que indivíduos como ele possam melhorar a nação e sua vida financeira.

O texto do poema é um apelo ao povo pela manutenção de sanguessugas que, se fazem ricos às custas da miséria do povo, e que exigem os bens essenciais próprios dos colonizadores, como comida na mesa, luz elétrica, água canalizada, hospitais, valores supérfluos diante de um bem maior, a nação puramente presa às suas tradições e valores ancestrais. Em tom irônico, a poeta aponta aqueles que querem a conservação da exploração, mas, ao mesmo tempo, conclama a Bissau de seus amores a se levantar e se posicionar contra a manutenção da opressão.

Um convite à luta é feito em “Bissau levante-se”. Os embrulhos já foram abertos em outros espaços, em outras instâncias, mas a batalha travada ainda se faz perceber nos olhos e se sentir nos corações. Revela-se a importância da união dos esforços e das diferenças como instrumento para transformações. Cada cidadão contribuindo com suas qualidades e especificidades são capazes de formar um todo eficaz e vitorioso. Bissau-Guiné, uma só, percebida como um todo, vigorosa, reafirmando-se com a força da fênix que ressurge das cinzas, protegida e abençoada pelos Irans que se permitem partir em “A partida dos Irans” cobertos em suas mantas, estancando o pranto, depois de abertos os embrulhos, depois do fim de um corpo acéfalo, depois que o futuro aprendeu que o passado permite que o presente o construa sem os erros e desacertos antes cometidos.

As crianças, como símbolo do futuro da nação, sã colocadas como elementos de ligação entre espaços-temporais que são desvelados em “Então, o cantor da alma, juntou sua voz à do Tchintchor. O alerta feito no primeiro poema se transforma em uma espécie de testamento, palavras deixadas para aqueles que virão a se tornar a força de uma nação que se reconstruirá aos poucos. As plausíveis respostas às possíveis perguntas são construídas, os porquês diante daquilo que é visto. O sujeito lírico se considera um testemunho verdadeiro e se compromete a desvelar a verdade. Metaforicamente, alia as particularidades de elementos da natureza aos da natureza demasiadamente humana, responsável pelo estado em que se encontra seu país. As centopeias e os sanguessugas são comparados aos seres humanos com seus defeitos, como a dissimulação, a exploração e a falsidade. A característica defensiva do camaleão é comparada à capacidade humana de adaptar suas atitudes para levar vantagens. É a substantivação das atitudes abusivas daqueles que exploram o povo e a nação. O sujeito lírico se fará um griot para contar às gerações futuras os erros, problemas e vicissitudes que fizeram seu povo sofrer. Este sujeito será também aquele que não deixará que as crianças se esqueçam de suas histórias, de seus valores e de suas tradições, para assim, construírem uma Guiné Bissau prenhe de passado, com os pés no presente e fortalecida no futuro.

É esta proposta dos sujeitos líricos desenhados nos embrulhos desvelados e jogados ao vento para que se multipliquem e se tornem cerne, para que se concretizem. No último poema, “E largou no vento a poesia canto”, o sujeito lírico se permite definir sua poesia como viagem e fantasia, uma forma adejante de lamento que consegue dar voz ao silêncio opressor de tantos anos e espaços. É essa a poesia que nos oferece Semedo, “um grito sussurrante” que lhe sai das entranhas e fecunda a terra. O silêncio angustiante, de um djamu sofrido, nas mãos habilidosas de um Tchintchor chamado Odete Semedo, transforma-se em poesia.

Notas

1 In: DUARTE, C. L. et al. (Org.). Arquivos Femininos, literatura, valores, sentidos. Belo Horizonte: Mulheres, 2013. p. 299-306.
2 Intérprete, mensageiro em crioulo guineense.
3 Redemoinho.
4 Divindade protetora, mas que também pode castigar.
5 Pássaro que anuncia a chuva (a boa nova)
6 Instrumento de percussão.
7 Cerimônia fúnebre tradicional.
8 Embrulho

Referências

AUGEL, Moema Parente. O crioulo guineense e a oratura. “SCRIPTA, Belo Horizonte, v.10, n.19, p.69-91, 2º sem. 2006.

MENDY, Peter. Colonialismo português em África: a tradição e a resistência na Guiné-Bissau. 1879-1959. Bissau: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), 1994.

SEMEDO, Odete Costa. No fundo do Canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007 (Coleção para ler África, Volume 1). 200p.

RIBEIRO, Margarida Calafate & SEMEDO, Odete Costa. Literaturas da Guiné-Bissau: cantando os escritos da história. Porto. Afrontamento, 2011. 257p.

SODRÉ, Muniz. Claros e escuros. Identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes,1999.

TCHEKA, Tony. Noites de insônia na terra adormecida. Bissau Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), 1996 (Colecção Kebur, vol. 2).

____________________________________

Roberta Maria Ferreira Alves é professora da Universidade dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM. Pós-doutorado em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Doutora em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Coordenadora do Grupo de Estudo Estéticas diaspóricas (GEED). Coorganizadora com Wellington Marçal de Carvalho do livro: Deslocamentos Estéticos (2020) e integrante da Comissão editorial do literÁfricas.

 

Texto para download