As feições da guineidade
na prosa de Odete Semedo e Abdulai Sila¹

 

Wellington Marçal de Carvalho²

 

1. O labor com a memória em projetos literários politicamente estetizados³

Como enxergar, no fazer literário guineense, fragmentos da concepção da Guiné-Bissau como um país?

Enfrentar a complexidade do mundo e tentar compreendê-la requer a utilização de construtos de toda ordem. O gesto literário pode ilustrar esse trabalho. Mais especificamente, a literatura guineense instrumentalizaria possibilidades de entendimento das noções de identidade dos povos que compõem aquele país, uma vez que esses construtos ficcionais trariam, em seu interior, ingredientes das várias mentalidades de que fazem parte.

Essas considerações pretendem afirmar o objetivo geral deste trabalho que se volta à reflexão sobre a memória e os lugares de memória que, sob alguma medida, encontram-se simbolicamente construídos em textos em prosa dos escritores guineenses Odete da Costa Semedo e Abdulai Sila. Deseja-se pensar como se efetivam textos arquitetados por escritores oriundos de uma cultura em que a oralidade ainda é muito forte e presente em todas as esferas da vida social, uma vez que o universo da escrita, da letra, é ainda muito pequeno na Guiné-Bissau.

Nesse sentido, seria interessante discutir sobre como o conceito de “lugares de memória”, originalmente gestado no campo da História e, posteriormente, disseminado para a Geografia e Sociologia, pode ser apropriado pelos estudos literários como um robusto operador teórico na discussão de narrativas de memória. E, ainda, ressaltar as estratégias narrativas utilizadas tanto por Odete Semedo quanto por Abdulai Sila para criar textos que se constroem com apelo às modulações da oralidade e a aspectos do passado histórico guineense. A pertinência de se buscar respostas para essas indagações é referendada por Fonseca, para quem

a investigação das relações entre oralidade e escrita literária induz ao estudo das formas de narrar que os escritores africanos [...] assumem quando imprimem nos textos escritos a força de manifestações da oralidade, ainda tão presente em grupos culturais de seus países. (FONSECA, 2015, p. 125).

Como adiante se demonstrará, Semedo e Sila exercitam a todo instante a memória e, com esse processo deliberado, atravessam os tempos e, no cômputo final, suas obras performam espaços de simbolização da memória. Portanto, é fundamental a reflexão sobre projetos de escrita que se fazem com inserções nas diversas culturas de um país, cuja tradição se assenta na palavra falada

Faz-se necessário, então, apresentar informações gerais acerca desses dois escritores. Maria Odete da Costa Semedo nasceu em 7 de setembro de 1959, em Bissau, capital da então colônia portuguesa Guiné-Bissau. Licenciou-se em Línguas e em Literaturas Modernas pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e doutorou-se em Literaturas de Língua Portuguesa, em 2010, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.1 Professora de Língua portuguesa, foi Diretora da Escola Normal Superior “Tchico Té”. Atuou como Ministra da Educação Nacional e Presidente da Comissão Nacional da UNESCO-Bissau e, também, como Ministra da Saúde Pública e Consultora do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) para as áreas da Educação e Formação. Em 1971/1972, publicou na revista Zeitschrift fur literatun, Kuns and kultur politik losophones Afrika e Giraz. Em 1996, publicou o livro de poesia Entre o ser e o amar, além de diversos trabalhos em várias antologias literárias, jornais e revistas especializadas (no exterior e na Guiné-Bissau), como por exemplo: Antologie de Literatures Francophones de l’Afrique de l’Ouest, Paris, pela Editions Nathan, e na revista austríaca Sterz. Participou da fundação das revistas Tcholona Artes e Cultura. Em 2000, publicou dois volumes de contos inspirados em histórias tradicionais, respectivamente, Soneá: histórias e passadas que ouvi contar I e Djênia: histórias e passadas que ouvi contar II. Os livros foram editados em Bissau, pelo INEP, e marcam a sua estreia na ficção. Em 2003, lançou a primeira edição do livro de poesia No fundo do canto pela Câmara Municipal de Viana do Castelo, em Portugal.2 Neste mesmo ano recebeu o prêmio, na categoria escritora, de personalidade que contribuiu para o desenvolvimento global da Guiné-Bissau. Em 2011, organizou com a pesquisadora Margarida Calafate Ribeiro, o livro Literaturas da Guiné-Bissau: cantando os escritos da história. Também em 2011, pela Editora Nandyala, publica o livro Guiné-Bissau: história, culturas, sociedades e literatura. Destaca-se, de sua produção crítica, os artigos “A língua e os nomes da Guiné-Bissau” e “Língua esvoaçante” e o texto “As cantigas medievais e as cantigas de dito: uma leitura comparada possível”, publicado pela revista Scripta, v. 11, n. 20, 1º semestre de 2007 (DEUS, 2012, p. 77-78; COSTA, 2009, p. 6)

Abdulai Sila nasceu em Catió, na Guiné-Bissau, em 1º de abril de 1958. Após a proclamação da independência, em 24 de setembro de 1973, participou das brigadas de alfabetização, sob a orientação do pedagogo brasileiro Paulo Freire. Formou-se em Engenharia Eletrotécnica pela Universidade de Dresden (Alemanha) e dedicou-se aos estudos das tecnologias de informação e comunicação, tornando-se empresário nessa área. É um dos fundadores da primeira editora privada guineense: a Ku Si Mon Editora. Participou da fundação da revista Tcholona e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) na Guiné-Bissau. (AUGEL, 1999, p. 42; BISPO, 2010, p. 1). Os romances do autor já editados são A última tragédia (1984/1995); Eterna paixão (1994) e Mistida (1997). Esses livros foram posteriormente editados em Cabo Verde, em Praia, pelo Instituto Camões, em 2002, sob o título comum de Mistida (trilogia). Além desses, o autor publicou, ainda, as peças teatrais As orações de Mansata (2007) (PADILHA, 2011, p. 175), Dois tiros e uma gargalhada (2013), Kangalutas (2018) e Memórias somânticas, romance, em 2016.

Acredita-se que esta reflexão pode contribuir para a tentativa de se compreender a formação do sistema literário guineense e da constituição da própria guineidade.

A reflexão encaminhada se estrutura a partir de dois conceitos que funcionarão como chave de leitura para a efetivação das discussões que ora se propõem: “memória” e “lugares de memória”. As discussões sobre memória são amparadas em estudos clássicos como os de Le Goff (2003) e Ricoeur (2007), além de se valer das indagações/reflexões de Achugar (2006), Halbwachs (2006), Hampaté Bâ (2010), Huyssen (2000), Todorov (2002), Winter (2000) e ainda Semedo (2010), que dialogam, no presente trabalho, com os estudos de Nora (1985-1993). As teorizações sobre “lugares de memória” serão retomadas a partir do texto fundante de Pierre Nora (1993), que trata dessa categoria.

Os textos literários selecionados para este livro pertencem ao gênero conto, os de Semedo, e ao gênero romance, os de Sila. O gênero conto é utilizado por Semedo como estratégia para deslocar, para o universo da escrita, “a cultura do contar e cantar histórias que corre na veia africana em geral e na guineense em particular” (SEMEDO, 2000, p. 19). O gênero romance utilizado por Sila reveste-se de peculiaridades que demonstram como o escritor faz desse gênero literário, marcadamente europeu, uma extensão da tradição africana de contar estórias, como se pretende demonstrar nos próximos capítulos desta obra.

A história, a memória e a identidade nacional encontram, no meio literário, o ambiente ideal para se formarem e se propagarem (VALANDRO, 2011, p. 127). Afirma-se, assim, a potencialidade da arte literária de dar conta de propalar enunciações dos agrupamentos sociais, cuja memória foi silenciada. Ratifica-se, pois, a força da literatura para estetizar a “voz do qualquer um” e a experiência vivida. Vale, nesse sentido, resgatar um fragmento da reflexão do filósofo francês Georges Didi-Huberman, principalmente em sua defesa do que denomina de “um rosto humano qualquer”. Sua teoria sobre a sobrevivência dos vagalumes, em oposição à prevalência das grandes luzes, no presente trabalho, parece pertinente:

Linguagens dos povos, gestos, rostos: tudo isso que a história não consegue exprimir nos simples termos da evolução ou da obsolescência. Tudo isso que, por contraste, desenha zonas ou redes de sobrevivências no lugar mesmo onde se declaram sua extraterritorialidade, sua marginalização, sua resistência, sua vocação para a revolta. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 72).

O texto literário pode desenhar essa rede de sobrevivência ao articular, mesmo que subrepticiamente, relações entre memória e história. A produção literária guineense objeto de estudo neste trabalho reativa instantes de um tempo desacelerado e impede, à sua maneira, a extinção das práticas e reforça a preservação da tradição. Como se pretende demonstrar, a literatura dos escritores selecionados se faz na pauta que glorifica o qualquer um.

Se uma das exíguas maneiras de romper o silêncio é o uso do gume afiado da linguagem, da literatura, observa-se que um conjunto de escritores não se furtará a fazê-lo, ainda que possam despertar reações violentas. Afinal, colocar elementos dissonantes na pauta desse instrumento elitista que é a literatura pode convocar a atenção para as fraturas de um projeto de organização de mundo em que a glória do qualquer um não tem lugar. Ou tem lugar enquanto coisa, enquanto subalternidade.

Por meio de estratégias transgressoras utilizadas na composição das ações narrativas que formatam as obras de Sila e Semedo, potencializa-se a retomada da história sonegada pela força homogeneizadora do discurso do colonizador, viabilizada através da encenação das memórias e dos “lugares de memória” hibridizados e simbolicamente construídos nas narrativas, na medida em que suas respectivas literaturas assumem, com diferentes matizes, “a relevante tarefa de forjar a guineidade”1.

Ora, na intenção de se recorrer ao texto ficcional, ao resultado do trabalho estético com a língua realizado por Sila e Semedo para consubstanciar seus construtos artísticos, enlaça-se a ideia de lugar de memória e, nessa direção, apontam-se, na ex-colônia portuguesa Guiné-Bissau, novas peças para compor o mosaico de uma jovem nação.

Independentemente do estágio da audiência, pelo mundo, do que se produz em literatura da Guiné-Bissau, o que se constata é um interesse cada vez mais significativo por parte da crítica literária em fazer desse material objeto de reflexão.

Cumpre registrar o percurso executado para realização do levantamento bibliográfico que subsidiou a concepção das reflexões apresentadas neste livro. Alguns acervos ou fontes de informação consultados são elencados a seguir: sumário dos periódicos científicos2 Africa Studia, Scripta, Cadernos CESPUC de Pesquisa, Gragoatá, Via Atlântica, Metamorfoses, Soronda3, Tcholona4, Research in African Literatures5; Coleção História Geral da África; e acervo do Centro de Estudos Africanos da UFMG.

Para fins de aquisição de informações histórico-culturais guineenses, percorreram-se os fascículos do Boletim Cultural da Guiné-Portuguesa, sem perder de vista aspectos observados por Augel (2006a, p. 74; 2007, p. 79).

De certa maneira, espera-se que esta reflexão cumpra o desafio proposto pelo escritor Luandino Vieira (2008) quando convoca pesquisadores e estudiosos das literaturas africanas de língua portuguesa para se voltarem a questões que foram empurradas para os “buracos negros”, tais como as que afirmaram a inexistência da literatura da Guiné-Bissau. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que este trabalho procura atenuar o esquecimento que ameaça a palavra forte do qualquer um, ressignificando, de alguma maneira, os sentidos construídos por Nora com a metáfora das “conchas vazias” que chegam à areia da praia.

2. Configurações da memória em Semedo e Sila

O labor de Semedo, seu projeto literário, parece ter como planta baixa a orientá-lo uma questão nuclear, um princípio mesmo: a imbricação entre oralidade e escrita. Seus contos estão colados, deliberadamente, nessa imbricação, sobretudo porque na Guiné-Bissau a força preponderante, em todas as esferas da vida social, provém da oralidade. É desafiadora a empreitada de Semedo exatamente por esse aspecto. Há uma subversão do que, regra geral, acontece em várias outras literaturas, cujo predomínio da letra, da escrita, está consolidado. No caso da Guiné-Bissau, em relação ao trabalho de Semedo, tem-se um movimento da escrita flertando, invadindo e acomodando-se no espaço em que circulam as estórias, os contos, as cantigas, como bem demonstrou a escritora em sua tese já mencionada.

O presente trabalho adentra alguns dos contos de Semedo lendo-os tanto como uma imersão na memória oral guineense e na sua cultura, quanto como uma proposta de se fazer com que essa escritura não se configure como o apagamento da oralidade. Algumas questões que as análises aqui levadas a efeito pretendem elucidar versarão sobre o trabalho de contação exibido nos contos, sobre o modo como os contos retomam a tradição de contar estórias e, ainda, sobre a pesquisa que a escritora vem realizando com o material recolhido da oralidade e seus significados em culturas da Guiné-Bissau.

Como se efetivam os agenciamentos entre a tradição oral e a literatura produzida por escritores em alguns países de África? Parece elementar o imbricamento da oralidade na literatura para, inclusive, materializar a memória das ex-colônias portuguesas, notadamente, em Guiné-Bissau.

No conto “Os dois amigos”, a escrita oralizada de Semedo assume a contemporânea discussão sobre a imbricação da oralidade no mundo da escrita, oferta outra temporalidade e convoca peremptoriamente a tradição. Logo, de alguma maneira, assume os “tempos vividos múltiplos” aludidos por Le Goff.

Já o conto “Aconteceu em Gã-Biafada” encena uma roda de contação de estórias feita por uma senhora a uma turma de crianças, inclusive uma que é seu filho, sentadas em sua volta.

Pode-se pensar, a partir da narrativa feita de encaixes, que conta a história do casamento de Lamarana, no recurso à memória das coisas e costumes da tradição veiculados às crianças. Não é trivial o fato de ser alterada a ordem “natural” dos acontecimentos, principalmente por se tratar de um público ouvinte e partícipe da estória formado por crianças. A roda de contação é um momento pedagógico em que se veicula a experiência.

No conto intitulado “Sonéá”, integrante do primeiro volume de passadas da escritora, explicitando a transmissão da experiência que precisa ser passada às gerações futuras. A escrita teimosa de Semedo assume a modernidade, a atual investida da Guiné-Bissau no desenvolvimento, mas sem desprezar a oralidade, lugar no qual se inspira para entretecer um projeto literário esteticamente politizado.

É interessante, de igual modo, refletir sobre as estratégias narrativas postas em prática por Abdulai Sila em parte dos romances Eterna paixão (1994) e A última tragédia (1995), para ressaltar as memórias colocadas em tensão na urdidura textual. Propõe-se destacar os movimentos que a enunciação literária de Sila leva à exaustão para enfrentar, com tenacidade, a tentativa de roubo praticada contra os guineenses pelos agentes que, em diferentes épocas, exerceram e exercem o poder no país.

Que mecanismos narrativos são apropriados para demonstrar a habilidade de transpor para o gênero romance, burguês e ocidental, estratégias que poder-se-ia chamar de cafrealização1, a partir do mergulho deliberado na oralidade guineense? Importa demonstrar como o projeto literário do escritor se constitui a partir das tramas sensíveis da memória, tornada dejeto, restolho, para realçá-la no âmbito da modernidade em um um país que se mostra assolado pelas sequelas da descolonização, parecendo estar completamente perdido e desencantado com a própria independência.

É possível perceber na obra Eterna paixão, diferentes configurações de memórias e destacar, sobretudo, seus desdobramentos em três vertentes: i) o processo detomada de decisão do filho do casal Dan e Ruth, o menino Kwame; ii) a decorrente do fortuito encontro de Dan e o taxista Mukedidi e da sólida amizade entre eles; e por fim, iii) a que é inerente a Dan e sua idiossincrática concepção da autenticidade africana. De maneiras distintas, pensa-se que o ponto a unir esses trajetos é a prevalência do jogo, por vezes árduo, entre o que se deve lembrar e o que se deve esquecer. A vida das personagens ressaltaria a dificuldade para enfrentar, deliberadamente, o destutelamento da memória.

Também no romance A última tragédia, visualiza-se a boa fatura colhida por Sila para destruir, mais uma vez, a tentativa de roubo da memória do povo do qual ele faz parte.

A enunciação literária, a contrapelo, estrategicamente põe em evidência a cosmovisão das comunidades assentadas na tradição e, ao mesmo tempo, desmonta o roubo de memória de que eram alvo esses povos.

O mergulho em alguns aspectos presentes nos dois primeiros romances de Sila autoriza concluir pela assertividade alcançada, na enunciação deste escritor guineense que toma justamente como substrato de criação o roubo da memória planejado pelas forças estrangeiras e também pelos mecanismos do poder interno.

As várias dimensões nas quais a memória se faz motivação para a tessitura enunciativa de Semedo e Sila permitem repensar uma postura contundente dos escritores para escavar o terreno das oralidades e reinscrevê-las no texto escrito. Este, como se vem afirmando, é caminho escolhido pelos escritores para não deixarem desaparecer traços importantes de sua cultura.

Tamanha engenhosidade não permitiria considerar, na criação literária dos escritores, notadamente nos contos de Semedo, sustentáculos de “lugares de memória”, tais como concebidos por Pierre Nora? Por outro lado, as particularidades da obra romanesca de Sila, que denunciam as consequências terríveis da tentativa fracassada de roubar a memória aos guineenses, também não poderiam ser entendidas como alinhadas aos esforços desenvolvidos pelos “lugares de memória” para salvaguardar a memória do que não mais existe, como assinala o cientista político e historiador francês?

Para que serviriam os acervos de memória simbolicamente construídos pela obra dos dois escritores? Em que esse movimento contribuiria para construir, em seus projetos literários esteticamente politizados, uma visão de futuro que condiz com um projeto de nação? Na atual conjuntura política da Guiné-Bissau, caracterizada pelo processo de descolonização, em que os planos programáticos dessa literatura, enquanto próteses da memória viva, objetos em abismo, “lugares de memória”, sinalizariam em direção a uma mirada esperançosa para o futuro do país? Em que a obra de Semedo e Sila impulsionaria a consolidação do sentimento de guineidade?

Por essas razões considerou-se fundamental tentar esquadrinhar as várias espacialidades encenadas na produção literária de Semedo, na passada “Kunfentu stória da boa nova” e Sila, em algumas passagens do romance Mistida, pois não é nada absurdo ler esses construtos literários ressaltando marcas textuais e estratégias que, ao fim, podem situar essas obras como objetos em abismo, “lugares de memória” que reativam o discurso do qualquer um, do rosto humano qualquer e, a seu modo, afirmam uma rizomática identidade nacional guineense em contínuo processo de fundação.

3. Considerações finais: a centralidade do rosto humano qualquer

É razoável reafirmar a força dos artifícios transgressores utilizados na gestação das ações narrativas das obras de Semedo e Sila, que retomam instantes da história sonegada pelo discurso do poder colonial e o proferido pelos agentes do poder no pós-independência. A encenação da memória e de “lugares de memória” hibridizados e figurativamente construídos pelas narrativas ressalta a contribuição dessas literaturas para edificar a construção da nação guineense.

O tempero estético-politizado que alinhava o projeto literário de Semedo e Sila permitiu apreender os motivos que levam os dois escritores a revolver os acervos de memórias figurados em seus textos como avenidas seguras para encenar as múltiplas feições da nação guineense. De certa forma, a enunciação por eles construída oferta a sua força para a consolidação do sentimento de guineidade.

Semedo expande o grito dos povos guineenses que denunciam atos de aprisionamento esculpidos em projetos de ideologia nacional feitos à revelia da memória viva, da tradição e da oralidade.

Por seu turno, Sila, gerencia fragmentos de memória que esboçam o nacional, dessa feita, posicionado na defesa de se manter viva a esperança, ainda que o cenário pós-independência seja túrgido de desencanto e decepção, que fortalecem a construção de metáforas alusivas à amnésia coletiva do povo guineense. Nesse desenho do nacional o escritor sublinha, mais uma vez, a força das mulheres na condução do projeto de comunidade imaginada, principalmente, ao não escamotear os conflitos advindos das diferentes temporalidades representadas por personagens que funcionam como metonímias da nação guineense.

Parece ter sido comprovada a habilidade da literatura de congregar esforços para a conquista de uma feitura do nacional, sobretudo em tempos de globalização, em que prevaleça a esperança e a felicidade. Essa é a bandeira que o projeto literário de Semedo e Sila insiste em colocar a prumo.

A reconstrução da ideologia nacional, na pena desses dois escritores, operacionaliza-se com a centralidade do qualquer um e, por conta desse ato político, materializa uma revolução estética. Nos termos de Rancière (2009, p. 48), um programa literário dessa natureza, ao articular em seu núcleo ficcional rastros e vestígios dos que a história oficial considerava como infra-humanos, promove novas engrenagens de apreensão do real, culminando em uma história de matiz poético.

Notas

Originalmente publicado como capítulo na obra Bibliotecários negros: informação, educação, empoderamento e mediações.1 ed. Florianópolis: Rocha Gráfica e Editora / Nyota, 2019, p. 15-34.

1 O presente capítulo, de cunho ensaístico, retoma e desenvolve aspectos essenciais de tese produzida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa, na PUC Minas, defendida em março de 2017, sob orientação da Professora Maria Nazareth Soares Fonseca.

2 A tese defendida e aprovada na linha de pesquisa “Identidade e Alteridade na Literatura”, sob orientação da Professora Doutora Maria Nazareth Soares Fonseca, intitula-se As mandjuandadi – cantigas de mulher na Guiné-Bissau: da tradição oral à literatura.

3 Em 2007, publica-se a primeira edição “brasileira de No fundo do canto, [que] inaugura a Coleção “Para ler África”, disponibilizada pela Nandyala Livros aos leitores de língua portuguesa, a fim de contribuir para a socialização, principalmente no Brasil, da produção literária de escritores africanos de Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Desta forma, amplia-se o leque de efetivação da Lei 10.639/2003 junto ao universo literário de professores e estudantes brasileiros, nos diversos níveis da educação nacional” (AMÂNCIO, 2007, p. 11

4 Expressão tomada de empréstimo de Moema Parente Augel (2006, p. 16), em seu Prefácio ao romance de Abdulai Sila, intitulado A última tragédia.

5 De acordo com Fonseca (2008, p. 22), as publicações científicas, editoradas no Brasil, mais significativas para o estudo dessas literaturas são, pelo menos, as que se seguem: a Gragoatá, da Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF), cujo primeiro número é de 1996; a Scripta, do Programa de Pós-graduação em Letras e do Centro de Estudos Luso-Afro-Brasileiros (CESPUC), da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), lançada no segundo semestre de 1997; a Via Atlântica, da Universidade de São Paulo (USP), de 1998; e a Metamorfose, da Cátedra Jorge de Sena, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de 2000.

6 Soronda. Revista de Estudos Guineenses é uma publicação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) que vem saindo regularmente há mais de duas décadas (desde janeiro de 1986), um acervo indispensável para qualquer estudioso de assuntos relativos à Guiné-Bissau. [...] Destaco o fato de a maioria dos artigos serem resultado de reflexão teórica e da pesquisa de campo dos próprios cientistas do país, apresentando a visão endógena indispensável para nós, pesquisadores de fora (AUGEL, 2007, p. 103). Soronda, palavra crioula que significa germinar, rebentar, desabrochar, crescer, foi escolhida pela equipa pioneira do Instituto para simbolizar a eclosão cultural e científica da qual a revista deve ser o vetor (KOUDAWO, 2000, p. 6).

7 O periódico Tcholona - Revista de Letras, Artes e Cultura divulgou, durante o curto período de sua existência (1994-1997), artigos sobre a literatura guineense e a cultura em geral, assinados por guineenses e por estrangeiros. Os autores nacionais foram Leopoldo Amado, Odete Semedo, Tony Tcheka e ainda Carlos Lopes, Carlos Cardoso, Maria Domingas Pinto, Alexandre Furtado, entre outros (AUGEL, 2007, p. 102).

8 1970 viu a publicação de Research in African Literatures, de uma qualidade excepcional que a faz o mais próximo dos jornais de reputação internacional estabelecida em outras áreas da literatura no mundo (GÉRARD, 1980, p. 79, tradução nossa).

9 De acordo com Fonseca (2011, p. 80), o termo cafrealizar ou cafrelizar significa “adotar os costumes dos cafres, população africana banta, do sudoeste da África.”

1 A pesquisadora Moema Augel assinala: “[...] Quando falo de guineidade ligada à literatura, refiro-me ao modo de como o texto literário se inscreve no sistema cultural guineense. Foi possível verificar que não se trata, como o foi num primeiro momento, de uma oposição à lusitanidade, ou portugalidade, e sim, muito mais, de uma auto-afirmação identitária, baseada no respeito e no apreço à alteridade, na aceitação das culturas nativas e tradicionais, na vontade de enfeixar todas as diferenças, todas as especificidades, no seio comum e no elo umbilical com a pátria, mátria ou frátria.” (AUGEL, 2007, p. 361, 362).

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²Wellington Marçal de Carvalho é Pós-Doutorando em Estudos Literários na FALE/UFMG. Doutor e Mestre em Letras pela PUC Minas. Bibliotecário coordenador da Biblioteca da Escola de Veterinária UFMG. Integrante do Grupo de Estudo Estéticas Diaspóricas (GEED). Autor de: Aquele canto sem razão: espaço e espacialidades em contos de Guimarães Rosa, Luandino Vieira e Boaventura Cardoso (2014) e A defesa incansável da esperança: feições da guineidade na prosa de Odete Semedo e Abdulai Sila (2018). Coorganizador de Deslocamentos estéticos (2020). Integrante da Comissão editorial do literÁfricas. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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