A voz da mulher, a voz da nação, a voz possível:
ecos plurais na poesia de Odete Semedo¹

Pedro Afonso Barthi

 

Resumo: A poesia de Odete Semedo, uma das principais autoras de Guiné-Bissau, ecoa discursos de enfrentamento e dor que questionam o passado colonial e também o passado/presente de guerras e conflitos de seu país. O presente artigo analisa poemas da autora da perspectiva dos estudos pós-coloniais (BONNICI, 2009, 2017; SPIVAK, 2010, BHABHA, 2007) refletindo como a sua poética, além de dar voz a uma nação e permitir a construção de uma consciência nacional, também supera a dupla condição de subalternidade que afeta mulheres dos países que passaram pelo processo de colonização. Nos poemas “Silhueta da Desventura” e “Minhas Lágrimas” percebemos uma poética que expressa o entrecruzamento de dores. Entretanto, os poemas não são apenas lamentos, eles indicam um importante impulso de enfrentamento e emancipação – tanto do eu-lírico, quanto da nação – pois ao verbalizar a dor, a voz do subalterno pode enunciar, pode significar e narrar a própria história.

Palavras-chave: Odete Semedo; Pós-Colonialismo; Literaturas Africanas de expressão Portuguesa; Literatura Guineense.

Considerações Iniciais

Odete Semedo (1959-) é uma das autoras contemporâneas de Guiné-Bissau que se destaca como uma das vozes mais marcantes da jovem literatura guineense. Sua produção coordena uma poética de questionamento do processo de colonização e assim faz um enfretamento de correntes simbólicas forjadas no passado colonial de sua pátria. No contexto de sua obra, a Guerra civil na Guiné-Bissau (1998-1999) também pode ser considerada como um ponto de partida para a construção de vozes poéticas questionadoras, que tateiam impressões a partir dos escombros. A partir de uma poesia antibélica, anti-imperialista e engajada, e entre passado e presente, a obra da autora traça a essência de seu povo e tenta criar uma liberdade possível para sua gente

Conhecer sua obra, além de permitir uma interlocução com Guiné Bissau e com sua literatura produzida em Língua portuguesa, permite inúmeras reflexões acerca de representações de resistência no contexto de países que por séculos sofreram processos de colonização e exploração e hoje precisam administrar as consequências desse passado. É importante lembrar que Guiné-Bissau foi colônia portuguesa até 1974, ano em que Portugal reconhece a sua independência. Nos anos seguintes, o país passa por períodos de instabilidade política, que culminam em uma trágica guerra civil entre os anos de 1998-1999. Assim, é possível afirmar que a cronologia do termo “pós-colonial” para esse pequeno país africano é recente demais, já que as marcas do passado colonial são ostensivamente presentes. Por isso, apenas nas últimas décadas é possível observar o florescimento de uma literatura questionadora e libertadora. É nesse contexto que o nosso olhar se desloca para a obra de Odete Semedo e para a forma que a autora representa os sujeitos. Assim, neste trabalho analisaremos poemas da autora a partir de diálogos com os estudos pós-coloniais.

O termo “pós-colonialismo” surge no âmbito dos estudos anglo-saxônicos a partir dos anos 70 e dos anos 80 e passa a se popularizar (MATA, 2014). Inicialmente parece apontar a um aspecto meramente cronológico: o período de tempo compreendido após a finalização de um processo de colonização. Entretanto, é importante não perder de vista que ele faz referência a uma práxis de contestação e resistência: um movimento crítico de questionamento do processo histórico do colonialismo e de suas consequências, nas mais diversas esferas: cultural, política, social, histórica, econômica. Assim, as chamadas teorias pós-coloniais buscam a criação de instrumentos para a análise das relações de poder ainda resultantes da colonização, bem como uma reação e resistência ao próprio processo de colonização, que nunca cessou em um nível simbólico, e assim continua atuando sobre o funcionamento das sociedades (BONNICI, 2005; MATA, 2014).

Há de se considerar a existência de detratores e contestações às aplicações dessa crítica pós-colonialista. Segundo Bonnici (2009), o termo é criticado por misturar aspectos cronológicos e ideológicos e por apresentar uma diversidade de acepções e aplicações. Atualmente, há outras correntes de estudos, igualmente profícuas e importantes, como os estudos decoloniais, que utilizam outros arcabouços conceituais para quesionar a colonialidade presente nas sosicedades contemporâneas. Apesar das importantes discussões e problematizações sobre o termo, um ponto importante que deve ser enfatizado é a importância dos estudos pós-coloniais para a construção de um olhar crítico sobre as consequências do processo de colonização sobre as populações contemporâneas: o desnudamento dos fios, aparentemente invisíveis, mas dolorosamente presentes, que amarram as antigas colônias a um discurso de subalternidade e inferioridade.

Neste sentido, os estudos literários também apresentam importantes contribuições: a aplicação desse olhar sobre as obras literárias do passado e do presente, auxilia no desnudamento de representações e na criação de questionamentos sobre a ordem estabelecida na contemporaneidade. Bonnici (2009) aponta que a crítica literária de orientação pós-colonial interroga as produções do passado, avalia o cânone e percebe os silenciamentos e forças representadas nas obras. E sobre a literatura contemporânea, a perspectiva pós-colonial permite uma reflexão sobre o conceito de identidade, sobre as formações dos sujeitos e sobre a formação de uma consciência crítica a respeito dos processos e apagamentos que forjaram o contexto social, político e cultural em que vivemos. É a partir dessa premissa que desenvolvemos o presente texto, em que objetivamos refletir sobre as vozes e identidades presentes na lírica de Odete Semedo.

  1. Pós-Colonialismo e a representação do sujeito

Um dos esforços importantes de análises na perspectiva dos estudos pós-coloniais é a exposição dos processos que explicam o silenciamento dos sujeitos de países colonizados e as formas pelas quais eles podem lutar contra essa realidade e adquirir a sua voz. Nesse sentido, destacamos a obra Pode o Subalterno falar? publicada originalmente em 1985, por Spivak (2010).

A palavra “subalterno” faz referência ao sujeito que é considerado de categoria inferior. Assim, a obra citada denuncia o silenciamento de populações inteiras, especialmente em países considerados, naquele contexto, como sendo de terceiro mundo, e, portanto, seu povo, sob o ponto de vista eurocêntrico, seria sempre inferior. A autora descreve as diferentes formas que fazem com que os subalternos não tenham acesso ao direito de narrar as suas próprias histórias. Na obra, há ainda o alerta a respeito da importância de criar a consciência de que a construção de uma história única, de uma única versão para os fatos. Assim, uma única forma de ver a história de formação de um país, por exemplo, é uma violência epistêmica sobre as minorias, pois forjar uma história única, silencia muitas vozes.

Na perspectiva de Spivak (2010), um fator complicador para o fato de que os povos subalternos não sejam ouvidos são os processos, tanto coloniais quanto advindos de um modo de produção capitalista, cujos efeitos invisibilizam populações, não permitindo que possam ter voz e vez. Nesse contexto, o sujeito subalterno é aquele que não é ouvido. Também podemos citar como autores importantes nessa perspectiva, Bhaba (2007) e Bonnici (2009). O primeiro que vai nos dizer que a voz do nativo pode e deve falar, precisa ser efetivamente recuperada enfrentando a ainda presente autoridade colonial; por sua vez, o segundo, aponta que o sujeito colonizado passa a ter uma voz quando adquire consciência política para enfrentar o opressor.

Torna-se fundamental destacar que em sociedades pós-coloniais, a situação dos sujeitos femininos é sempre marcada por tensões, isso porque, as mulheres são duplamente subalternas, primeiro pela estrutura do poder colonial, e depois pela própria construção de gênero da sociedade (BONNICI, 2009). Sobre essa questão, Spivak expõe:

No contexto do itinerário obliterado do sujeito subalterno, o caminho da diferença sexual é duplamente obliterado. A questão não é a da participação feminina na insurgência ou das regras básicas da divisão sexual do trabalho, pois em ambos os casos há “evidência”. É mais uma questão de que, apesar de ambos serem objetos da historiografia colonialistas e sujeitos da insurgência, a construção ideológica de gênero mantém a dominação masculina. Se no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino, está ainda mais profundamente na obscuridade (SPIVAK, 2010, p. 66-67).

Assim, os sujeitos femininos são duplamente colonizados – pelo poder colonial e pelo patriarcado e assim há um duplo silenciamento e uma dupla subalternidade. Ainda em relação a isso, Bonnici (2009) e Spivak (1985) alertam sobre como muitas vezes as questões de gênero podem ser relegadas a um segundo plano em um análise pós-colonial, o que é um equívoco. Spivak inclusive é lembrada como uma das primeiras pensadoras que desenvolveram uma crítica feminista a partir de uma perspectiva não-eurocêntrica. A pensadora critica com muita contundência a crítica feminista que não leva em conta a heterogeneidade dos países que foram colonizados.

Também é importante ressaltar que a voz feminina em textos literários rompe com pressupostos masculinos e assim apresenta um potencial de enfrentamento a ordenação estabelecida pelo poder colonial e patriarcal. Ainda, com a literatura de autoria feminina há a consolidação de um estilo literário que pode ser carcaterizado pela diferença, pela diversidade e pela imprevisibilidade (BONICCI, 2009).

É fundamental considerar que cada processo de colonização – e consequentemente os processos de domínio/libertação/consicência crítica – é distinto em cada país que foi colonizado. Assim, não há como homogeneizar as narrativas e experiências do pós-colonialismo - portanto, não há um sujeito pós-colonial, mas vários possíveis, de acordo com o país, com a classe social, com a etnia a que pertence, com a região em que vivem. Da mesma forma, os sistemas literários estão em estágios diferentes em relação a sua formação – por exemplo, o Brasil, apresenta uma literatura enquanto sistema consolidada, e Guiné-Bissau passa a ter produções literárias publicadas no formato de livros apenas nas últimas décadas. Sendo assim, é natural que as emergências em relação às representações dos sujeitos no contexto do pós-colonialismo sejam também distintas. Entretanto, mesmo com as diferenças, a condição de subalternidade permite uma aproximação, a construção de uma alteridade. A esse contexto, podemos relacionar o seguinte posicionamento de Bhabha:

O estudo da literatura mundial poderia ser o estudo do modo pelo qual as culturas se reconhecem através de suas projeções de 'alteridade'. Talvez agora possamos sugerir que histórias transnacionais de migrantes, colonizados ou refugiados políticos — essas condições de fronteira e divisas — possam ser o terreno da literatura mundial, em lugar da transmissão de tradições nacionais, antes o tema central da literatura mundial. (BHABHA, 2007, p. 33)

A citação apresenta a proposta de que a literatura dos povos colonizados – além das produções literárias de outras vozes em posição de subalternidade como refugiados e migrantes – é uma literatura que transcende fronteiras e limites entre países, já que a experiência da exploração é algo que permite identificação e alteridade. Dessa forma, em uma perspectiva pós-colonial teríamos como elemento caracterizador da literatura me nível mundial essa relação instrinseca pela experiência e dor, não apenas a literaturas nacionais interagindo com suas respectivas tradições. Além disso,

Muitos dos escritores pós-coloniais mais interessantes carregam dentro de si seu passado – como cicatrizes de feridas humilhantes, como estímulo para práticas diferentes, como visões potencialmente revistas do passado tendendo a um novo futuro, como experiências a ser urgentemente reinterpretadas e reapresentadas, em que o nativo, outrora calado, fala e age em territórios recuperados ao império. (SAID, 2011, p. 73)

Os escritores pós-coloniais, que cultivam uma poética de confrontação e a busca de uma libertação, direcionam a sua experiência como indíviduos cujos corpos foram explorados pela lógica colonialista e assim criam obras críticas que buscam novos rumos para suas respectivas nações. Bonicci (2009) aponta que outro ponto comum nas obras desses autores é a presença de metodos de resistência contra o colonizador ou a elite dominadora. Dessa forma, a presença de um discurso pós-colonial questionador e a possibilidade da apropriação da linguagem – a voz marginalizada podendo falar e criando realidades possíveis – permitem um início para a superação da subalternidade.

O projeto de descolonização da literatura eurocêntrica implica a crioulização da língua europeia, o uso da paródia e da mímica, a apropriação do poder para afirmar a identidade através da releitura, a denúncia do estrago colonial revelado pela diáspora, a ampliação do cânone literário, a ruptura da primazia dos textos metropolitanos pela reescrita. O contexto dessa descolonização é a diáspora e o hibridismo, características dos povos atingidos pela colonização europeia (BONNICI, 2017, p. 4).

2.0 A poética de Odete Semedo

Maria Odete da Costa Semedo, conhecida como Odete Semedo, é professora, pesquisadora, poeta e muito atuante na vida política de seu país, Guiné-bissau. Nascida em 1959, viu seu país ficar independente e passar por muitas crises institucionais, políticas, passando inclusive por um traumático conflito bélico (1998-1999). Professora desde os 18 anos, Semedo é licenciada em Estudos Portugueses pela Univerisdade Nova de Lisboa (1990). Na década de 90, ocupou cargos importantes no governo de Guiné-Bissau, nos ministérios da Saúde e da Educação. Fez o seu doutorado no Brasil, pela pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, defendendo em 2010 a tese “As mandjuandadi – cantigas de mulher na Guiné-Bissau: da tradição oral à literatura”.

A escritora publicou quatro obras literárias, Entre o Ser e o Amar (1996), Sonéá: Histórias Passadas que Ouvi Contar I (2000) e Djênia: Histórias Passadas que Ouvi Contar II (2000) e No fundo do Canto (2007). Destas, destacamos a primeira e a última, pois são livros de poesia. Sobre Entre o Ser e o Amar (1996), destacamos que a “obra bilíngue, escrita em português e crioulo guineense, contém 45 poemas, sendo 32 desses escritos em ambas as línguas, 8 registrados apenas em português e cinco se apresentam exclusivamente em crioulo”. (BISPO, 2019, p. 92). A obra é bílingue e isso é coerente com o fato de Semedo considerar o seu pertencimento a duas culturas. A presença do crioulo e esse questionamento do uso da língua portuguesa – que não deixa de ser a língua do colonizador – são coerentes com práticas críticas para questionar o colonialismo (BONNICI, 2017).

Outra obra de poesia que destacamos é o livro “No fundo do canto”, publicada alguns anos depois da guerra civil de 1998-1999 e expressa a dor e choque de um país após sangrento conflito (CALADO, 2016). O livro foi publicado no Brasil no ano de 2007 pela editora Nandyala. Sobre a própria a obra, no prefácio, a autora declara: “Livro mais triste da Guiné-Bissau [pois] será o espelho da dor de um povo e de tantos quantos se virem nele e através dele a silhueta do próprio destino (SEMEDO, 2007, p. 7).” Assim, Semedo caracteriza a sua poesia como não sendo épica, pois não canta grande feitos, grande conquistas, nem barões – fazendo referência às armas e barões assinalados de Camões. Tampoco caracteriza como lírica, pois não consegue se lembrar da beleza. E assim:

Voltei para trás, voltei para dentro de mim, para encontrar algo que me fizesse entender o mundo de outras terras que não o da minha, voltei para trás tentando encontrar uma explicação para tudo aquilo que eu não conseguia entender naquele momento. Por que tudo isso? Qual o porquê destas páginas que se abrem ante os meus olhos? (SEMEDO, 2007, p. 15).

Dessa forma, a poesia é uma forma de orientação em um mundo feito em escombros, em mundo partido por séculos de exploração e por conflitos recentes que partiram e repartiram uma nação.

Como exemplificação de como Semedo articula nacionalismo, identidade e resistência no contexto pós-colonial faremos uma breve análise do poema “Silhueta da Desventura” retirado do seu primeito livro. Nele observamos um sujeito lírico perdido, dividido, incompleto, vagando em um espaço da incerteza, ilhado entre lembranças fugazes.

Silhueta da desventura

Sou a sombra dum corpo que não existe
Sou o choro desesperado
Sou o eco de um grito articulado
Numa garganta sem forças
Sou um ponto no infinito
Silhueta da desventura

Perdida neste espaço
Vagueando... finjo existir
Insistem chamar-me criança
E eu insisto ser
A esperança do incerto

O meu tantã é de outros tempos
A melodia que oiço
É o crepitar de chamas
Confundindo-se com o roncar da fome
E o chão onde piso
É uma ilha de fogo

A minha nuvem é a fumaça
Da bala disparada
Gotas salgadas orvalham
O meu pequeno rosto
Enquanto choro

Na esperança do incerto
(Semedo
, 1996)

 

O título é significativo: o termo desventura recupera as muitas desventuras que atravessam Guiné-Bissau. O sujeito poético enuncia: “sou a sombra de um corpo que não existe”, ou seja, é a marca de algo já não presente. É um eco, um vestígio, não apresenta uma materialidade corpórea. Porém, mesmo sem forma, uma presença constante é a dor, pois “sou o choro desesperado”, “sou o eco de um grito articulado numa garganta sem forças”. Assim, o sujeito encontra-se em uma exaustão que define sua existência.

O sujeito lírico feminino vaga perdida, inclusive “fingindo existir”.Dessa forma, é marcada no poema que a incerteza do presente é fruto do passado “o meu tantã é de outros tempos”. Porém, também aponta para o passado da ancestralidade, para uma unidade que está inexistente no presente. Esse passado agora é refletido em um presente fraturado em que se ouve o crepitar de chamas que se confunde com o roncar da fome, possíveis menções a problemas recorrentes de Guiné Bissau nas últimas décadas: conflitos armados que deixaram o país em um clima de violência e sem paz institucional e grande grau de miserabilidade de seu povo. Assim, “minha nuvem é a fumaça da bala disparada”. O poema, publicado em 1996, parece antecipar que a dor e a destruição não só permaneceriam, como se intensificariam no conflito armado de 1998-1999. Assim, o poema é ao mesmo tempo uma denúncia às consequências da violência e um sensível alerta premonitório.

Para a perspectiva pós-colonial adotada nesse trabalho, é fundamental destacar que há no poema uma tomada de consciência, uma incorporação de marcas identitárias,marcadas pelo uso do verbo ser. O sujeito apresenta caraterização, apesar de ainda ser uma identidade diluída pela dor, pelo enfraquecimento. Tal aspecto marca uma dupla possibilidade de caracterização da voz do sujeito instaurado no tecido textual do poema: além de ser uma expressão de uma voz individual, pode ser uma voz coletiva, um sujeito-nação, representando todo o país perdido após séculos de exploração colonialista e depois de conflitos políticos e a iminência de uma guerra civil. Bonnici (2009) aponta que uma estratégia para analisar uma obra do ponto de vista pós-colonial é inserir a análise do texto literário inserido no contexto histórico e no espaço geopolítico e assim perceber como os autores representam e questionam o imperialismo, o colonialismo e o patriarcalismo. O poema analisado tem os seus sentidos potencializados justamente quando levamos em conta o país e o momento em que foi produzido. Porém, longe de cercear outras interpretações, ele permite relações e intertextualidades, por exemplo, com a realidade brasileira.

Narrar a dor e a fragmentação dos sujeitos após essa espiral de violência, vinda desde o processo de colonização e continuando mesmo após a libertação de Guiné Bissau, poderia soar como uma consolidação de um desespero, porém, não é esse o significado global do poema. Por mais que “gotas salgadas orvalham o meu pequeno rosto” há também a constatação de que “eu insisto ser a esperança do incerto”. Para ser algo mais que uma silhueta, uma sombra, para ser um ser completo, o sujeito lírico precisa enfrentar seu passado e seu presente. E esse enfrentamento passa pelo direito de enunciar.

Dessa forma, esse sujeito lírico feminino, que representa também todo o país Guiné Bissau, chora e sente as consequências de um ciclo de violência, mas precisa enunciar, reconhecer, necessita sentir com intensidade a sua dor. Assim, há aqui a enunciação de um nacionalismo crítico que se abre para uma postura de resistência (BONNICI, 2009). É o “eco de um grito articulado”.

Ao denunciar esse sujeito que se sente como uma mera sombra sem corpo, há a possibilidade de despertar consciências, de despertar inconformismos. Assim, abrem-se as consciências para novas perspectivas. Ou seja, há a articulação de uma poética de resistência. É nessa provocação que se insere a obra de Odete Semedo ao representar o sujeito no contexto pós-colonial.

Agora vamos direcionar o nosso olhar para outro poema da autora, retirado do seu livro No fundo do canto (2007).

As minhas lágrimas

As lágrimas
escapuliram
esboçaram
no chão do meu rosto
um fio de mágoa profunda
queimando
bem fundo

Nenhum grito...
nenhum gemido...
palavra nenhuma
letra alguma
jamais traduziu
tanto sofrer
os olhos sentiram

a minha gente viu
E eu?
E eu?
(Semedo, 2007)

O poema tem um título que encaminha sentidos diretos: o pronome possessivo é uma marca identitária – as lágrimas, sinal de dor, são propriedade do sujeito poético. A escolha dos verbos na primeira estrofe apontam uma imprecição: escapulir, esboçar são termos vagos e sutis, ainda como o caminho que uma lágrima faz em um rosto. A lágrima que parece sutil, é na realidade uma exteriorização de uma marca profunda pois é um “fio de mágoa profunda”. É uma água que queima, pois sua fonte é o calor do fogo da guerra e da destruição.

Por sua vez, a seguinte estrofe constrói a ideia de que a dor e o sofrimento passados pelo país e sua gente são de tanto dor e sofrimento que a linguagem não dá conta de descrever e de compreender. Não há tradução possível para tanto horror, apenas quem viu e sentiu os horrores da guerra pode compreender em exatidão (CALADO, 2016). Apesar da imprecisão das descrições, os leitores são conduzidos a sentir a confusão e dor, possibilitando a interação com as imagens. Os dois ultimos versos são muito significativos:

Encerrando o poema “As minhas lágrimas”, os dois últimos versos encenam o questionamento do eu poético “E eu? / E eu? ” diante da sua própria condição de mãe, mulher, poeta, mensageira, de uma nação dilacerada pela guerra. Esse autoquestionamento é o ponto de partida para a intenção de testemunhar as suas vivências, que registram também as experiências vividas pelas pessoas de seu país (CALADO, 2016, p. 122)

Os dois últimos versos concretizam a busca do sujeito poético como quem enuncia e denuncia os horrores da guerra. O pronome pessoal em formato de pergunta corresponde a uma dupla indagação: o eu-lírico pergunta-se sobre a sua identidade em meio a tanto dor, mas também pergunta qual a sua função. Uma particularidade interessante é que a resposta para essa pergunta parece já estar na textualidade poética: a função e identidade do sujeito poético é justamente tentar traduzir o intraduzível, é verbalizar a dor, para assim superá-la.

Nos poemas analisados, percebemos um sujeito imerso em dor e que sinaliza não estar completo e assim não ter meios de descrever e traduzir com precisão o que viu e sentiu. Porém, as próprias interrogações são respostas: mesmo entre silhuetas e palavras não ditas, o eu-lírico enuncia, fala, denuncia assume o protagonismo de ser a porta-voz de seu povo. As singularidades de Guiné-Bissau, os seus desafios enquanto nação, após submergir de décadas de sofrimento, guerras, além das consequências do processo de colonização são em Odete Semedo fonte de energia criativa, combustível poético. São formas de um sujeito subalternizado enfrentar a realidade e ser a porta voz de uma esperança (SPIVAK, 2010). Entre lágrimas e nuvens de fumaça da bala disparada, Semedo articula na sua poesia uma esperança mesmo em uma realidade coberta de incertezas: a esperança possível.

  2. Considerações Finais

A obra de Odete Semedo, representada nesse texto pelos poemas “Silhueta da Desventura” e “Minhas Lágrimas” de certa forma responde ativamente à pergunta entoada no título da obra citada de Spivak (2010): o sujeito subalterno pode falar e pode lutar para sair da posição de inferiorização. Uma forma de combater o processo descrito por Spivak é justamente quando o subalterno assume a voz da sua história, a voz da sua vida e narra claramente, enunciando um eu consciente de sua subalternidade e que assim assume uma postura de combate. Odete Semedo, mulher, africana e na perspectiva de Bonnici (2009), duplamente subalternizada, faz da sua arte, da sua poética um alento e uma denúncia.

A reflexão tecida nesse texto expôs uma visão possível a respeito da representação dos sujeitos em um contexto pós-colonial, demarcada ainda pela presença de lembranças de guerra, de morte, e de laços coloniais rompidos há pouco tempo. Poéticas brasileiras, angolanas, moçambicanas podem trazer outras vozes, outros sujeitos – mas é possível apontar que a presença de obras que interrogam o passado e problematizam o presente é um denominar comum – apesar do sujeito que interroga ser outro.

No caso do sistema literário brasileiro, a recente valorização e resgate de autoras mulheres, autores e autoras negros, além das vozes indígenas, é um reflexo da importância do olhar pós-colonial questionador. Pois estudar e conhecer esses autores é uma maneira de permitir a fala dos sujeitos duplamente subalternizados e combater desigualdades e preconceitos ainda presentes na sociedade brasileira. É nesse sentido que reside a importância do trabalho com a crítica pós-colonial articulada com os estudos literários, com as pesquisas acadêmicas, nas disciplinas de graduação de letras: ela permite a formação de profissionais mais questionadores, mais conscientes dos processos sociais-discursivos ainda presentes em nossa realidade.

Nota

Originalmente publicado na Revista Igarapé, Porto Velho (RO), v. 14, n. 2, 2021.

Referências

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

BISPO, Érica Cristina. A poesia de Odete Semedo: uma introdução. Revista Mulemba, v. 11, n. 21, 2019, p. 90-106.

BONNICI, Thomas. Avanços e ambiguidades do pós-colonialismo no limiar do século 21. Revista Légua & Meia, v. 3, n. 1, p. 186-202, 2017.

BONNICI, Thomas. Teoria e crítica pós-colonialistas. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, LúciaOsana. Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2009, p. 257-285.

CALADO, Karina de Almeida. Memórias da guerra: Um diálogo entre poemas de Odete Semedo e o registro fotográfico do conflito armado de 1998-1999, na Guiné-Bissau. Scripta, v. 20, n. 39, 2016, p. 117-129.

MATA, Inocência. Estudos pós-coloniais. Desconstruindo genealogias eurocêntricas. Civitas-Revista de Ciências Sociais, v. 14, n. 1, p. 27-42, 2014.

SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. Trad. de Denise. Bottmann. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011.

SEMEDO, Odete. Entre o ser e o amar. Guiné-Bissau: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, 1996.

SEMEDO, Odete Costa. No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

SPIVAK, GayatriChakravorty. Three Women's Texts and a Critique of Imperialism. In: GATES, Henry Louis. (ed.) "Race", Writing and Difference. Chicago: University of Chicago Press, 1986, p.262-280.

 --------------------------------------------------------------------------------------------

i Pedro Afonso Barth é Doutor em Letras – Estudos Literários, pela Universidade Estadual de Maringá (UEM/2019). Pesquisador do Grupo do CNPq "FORPROLL: Formação de Professores de Línguas e Literatura". Atualmente, professor colaborador do Curso de Letras na Universidade tecnológica do Paraná (UTFPR), Campus de Pato Branco. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.