Ainda e sobretudo a paixão[1]

Simone Caputo Gomes[i]

O Direito era a norma e a poesia, o sonho.

E Vera Duarte presenteia-nos com mais um livro de poemas...

O arquipélago da paixão retoma rotas traçadas na obra anterior, Amanhã amadrugada (Duarte, 1993), e aprofunda navegações e reflexões, evidenciando a intenção da poeta em continuar realizando um projeto que contempla os níveis existencial, nacional e universal, sob o signo da paixão. Paixão que domina e liberta, paixão do eu, paixão do  outro, paixão-mulher; paixão do arquipélago, arquipélago de paixão.

Tentemos acompanhar, no eco da voz de Vera Duarte, esses modos da paixão que nos são comunicados.

No nível da estruturação, observamos um equilíbrio formal mais concentrado e maduro, se comparado ao do primeiro livro. O número total de poemas é menor (36) que o da obra de estreia (59), embora mantenha-se a divisão em quatro partes ou “cadernos”, assim disposta, respectivamente: caderno 1 (15 momentos), caderno 2 (10 exercícios poéticos), caderno 3 (22 poemas de bloqueio) e caderno 4 (12 poemas) em Amanhã amadrugada (AA); caderno 1 (12 poemas), caderno 2 (10 poemas), caderno 3 (sete reflexões) e caderno 4 (sete navegações) n’O arquipélago da paixão (AP).

Quanto à interpenetração dos gêneros, poesia e prosa, apontada já pela epígrafe de Manuel Alegre aos “exercícios poéticos” de AA (“Mallarmé tem razão./ A prosa não existe”), mantém-se e apura-se em AP, em simetria quiasmática – no primeiro livro, os “momentos” intercalam a forma da poesia na dominância da prosa, os “exercícios poéticos” consagram a prosa e os dois cadernos posteriores elegem a forma da poesia, resultando num esquema aproximado PPVV.

Na obra que ora prefaciamos, ao contrário, os dois primeiros cadernos compõem-se de poemas e os dois últimos de textos em prosa poética, num plano esquemático VVPP.

As dedicatórias e epígrafes, chaves importantes para uma orientação inicial da leitura dos textos, apontam para o passado-patrimônio (a memória do Pai, em AA, a Mãe e Antígona, em AP) e para o futuro (“amanhã amadrugada, para além do horizonte”, tempo de redenção em AA, tempo novo em AP), num trajeto libertário que conduz do “pássaro fechado”[2]  ao “pássaro vermelho” que voa no amor (AP) “columbina/borboleta” (AA), que “soltaram as amarras/ em direcção a uma madrugada diferente” (AP).

Na ação das figuras de mulher que presidem esse segundo livro de poesia, incluindo Florbela Espanca, cantora máxima da paixão (outra linha dialógica que se adensa aqui), forja-se o futuro pessoal (sementes lançadas pela Mãe, útero e Terra-Arquipélago) e o futuro de todas as mulheres da terra (Antígona). Na complexidade (dor-prazer) da paixão e nos voos do amor navega a poeta, vivencia e reflete.

Cabe ressaltar a produtividade literária do vulto heroico de Antígona, referido no teatro de Sófocles, Eurípedes, Racine, Alfieri e Anouilh, na ópera de Honneger e no balé de Cranko, ressignificado por Vera Duarte no âmbito do feminismo. Filha de Édipo e Jocasta e irmã do Polinice, é condenada a ser enterrada viva pela desobediência às ordens de Creonte, rei de Tebas, que a proibira de sepultar o irmão suicida. Antígona defende as leis não escritas do Direito moral ao insurgir-se contra a falsa justiça da razão do Estado, sepultando o irmão que se enforcara.

O Direito era a norma e Antígona-Poesia, o sonho, a liberdade.

As sensações de fechamento (sepultamento) e voo, propostas no poema tutelar do trajeto poético (“Pássaro fechado”, de Jorge Barbosa), de impossibilidade/bloqueio e de libertação (do/no amor, da mulher, do ser humano), concentradas na figura de Antígona e de seu amado Hêmon (filho de Creonte, que se apunhala pela dor de perder a noiva) alucinam o “peito ardente” do eu lírico.

Uma poesia intimista, de vivências intensas, de experiência de mulher, de exaltação dos sentidos, de momentos de plenitude, união e beatitude, alternados com extremos de sofrimento, desencanto, solidão e dolorosa alteridade, que não esquece das guerras, das utopias, das revoluções de homens e mulheres, de seu povo, de todos os povos do mundo é o que nos apresenta, em consonância com os aspectos destacados, O arquipélago da paixão, de Vera Duarte.

Da paixão

                                                                                                                                                                    Arrebatai a minha alma
                                                                                                                                                                    Para que, despedaçada, ela se liberte

Em entrevista ao Jornal Artiletra (1997), falando sobre sua escrita, a autora a assume como “fonopaica” (escrita de emoção, segundo Ezra Pound) e que procura transmitir “uma mensagem de tolerância, beleza e liberdade que ajude a viver o prosaico quotidiano”. Suas finalidades, catarse, cumplicidade (fecundar uma ideia), afirmação (da mulher), essência (liberdade, felicidade). E a mensagem última é de liberdade.

Membro da Comissão Africana dos Direitos dos Homens e dos Povos, da Comissão Internacional de Juristas, da Associação das Mulheres de Carreiras Jurídicas, da Organização das Mulheres de Cabo Verde, seu ativismo em prol das liberdades sociais é notório. Vejamos como se desenvolve essa paixão na poesia.

O cântico à mulher, entoado em Amanhã amadrugada, impresso em folhas de cadernos cobertas de “pequenas formas arredondadas que talvez/ levem a mensagem do milénio mil, rica e sinuosa, vermelha como um grito e, acima de tudo, MULHER” ao próximo milênio, persiste na presente obra.

Em dueto com o eu lírico – desesperado – do poema (“Deus te abençoe”) que inicia a viagem já em diálogo com Tu, surge Florbela Espanca, a quem Vera dedica o poema “Salmo para ti”. Inúmeras passagens da poesia de Florbela, cultora exaltada da paixão e da dor, dos estados excessivos, da ânsia de infinito tornada patética pela constatação do finito, são revisitadas a partir deste segundo texto: “Fanatismo” (“tu és como Deus: princípio e fim”), “Loucura” (“tropel febril a cavalgada/Das paixões e loucuras triunfantes”), “Exaltação” (“irmã dos boémios, vagabundos e poetas”), “O maior bem” (“E quanto engano nos seus vãos dizeres!...”), “Torre de névoa” (os dois versos finais reescritos – “é desde então que eu choro amargamente/ na minha Torre esguia junto ao céu!...”).

Tal como Florbela, na primeira parte d’O arquipélago da paixão, o eu lírico é filho da mágoa, princesa da quimera, e sente os passos da dor, na noite triste, preta[3].  Na “impossibilidade do amor” (título do primeiro caderno), na tragicidade e monotonia quiasmática do refrão, debate-se o pássaro fechado: “Ai pobre de mim traída/ ai pobre de mim deixada (...) ai pobre de mim deixada/ ai pobre de mim traída”. Corpo e alma aniquilados, resta-lhe a mais desamparada solidão. A queda é irremediável – da Torre junto aos céus:

Do teu cálice contudo
não bebi as delícias prometidas
nem da tua alma
as alegrias com que me acenaste
e no teu corpo
o meu corpo não repousou seguro (“Salmo para ti”)
choram aqui também os poetas. O coração é uma
chaga aberta:

Fissuraste a minha alma
com o teu amor inconsequente
           e por ti me traí

Abriste no meu peito uma ferida
que não cessa de sangrar
        e por ti me doí

 Quis matar-te e viver-me
 mas meu amor não deixou
        e por ti me morri

                (“Fissura”)

Contra essa paixão insensata, inexorável, insustentável, ou amor totalitário, obsessivo, egoísta, desmedido, “impotência” e “desvario” (cf. poemas de título correspondente), cansado de seus próprios gemidos e mágoas, o eu lírico feminino, incerto e só, convoca almas redentoras e corações guerreiros para a sua salvação/libertação.

Depois de Antígona traz à cena Pandora, primeira mulher da humanidade, responsável pela vinda do mal sobre a Terra (por ter aberto o vaso onde Zeus havia encerrado todas as misérias). Esta, no poema “Impotência”, vai vingar a poeta e, ao mesmo tempo, dar-lhe a esperança:

quisera eu ser Pandora
e despejar-te todo o meu mal
fazer-te fraco e ser eu forte
de coração pérfido e face bela
para de amores por mim morreres.

Em “Sítios sitiados”, outras redentoras, heterônimas e militantes da liberdade, cada qual a seu modo, habitam a alma da poeta. Safo, também ilhoa, evocou o amor, a morte, a beleza em nove livros de poemas; a rainha Ginga, irmã africana, em Angola, ergueu-se contra o colonizador, com todo o seu vigor matriarcal; Madre Teresa de Calcutá (Agnes Gonxha Bajaxhiu), Prêmio Nobel da Paz, 1979, na Ordem das Missionárias da Caridade amparava cegos, leprosos, aleijados, idosos e moribundos.

Na história de escravas humilhadas e das grandes redentoras, reais ou mitológicas, a poeta escreve, também, “sangrando/os séculos da história dos homens”.

É preciso redimensionar a história do amor que “não dá risos nem felicidade” (“Desvario”), que se alimenta do refrão monocórdico do “não posso” (poema “Por ti”).

Deuses, demônios, boêmios e escritores são ainda convocados como “testemunhas da condição humana” desse corpo que se quer “insurrecto” e que espera a libertação da dor (“Corpo insurrecto”). Em busca da recuperação do sorriso, do amor e da vida, é trazida à cena a figura de Penélope, no encadeamento dos poemas “Lonjura” e “O cinzento quotidiano”. Distância e abandono, esperança de um mesmo/ou outro amor preparam o seguinte texto:

O amor morreu com Julieta
e Romeu nunca existiu
No prosaico quotidiano
teimosamente aguardo
contudo
em meu banco junto ao cais
qual Penélope desenganada
a chegada do amor
num Ulisses navegador
ou Passo-amor reinventado.

Consumida a paixão, que a levava a destecer a mortalha (do sogro Laerte), cujo término acarretaria o fim da espera por Ulisses e a escolha de um novo pretendente, Penélope tem medo de reinventar o amor, de dar o passo-salto: “Mas meu coração teme amar (...) / Oh alma redentora / salva-me desta indigência / arma-me de um coração guerreiro / para que eu possa me salvar!”

Destecer à noite a mortalha é amortalhar-se cada vez mais Penélope precisa mover-se, ela mesma navegar, lançando-se da “espiral terrível e desvairada que aterra e devora”, do atrelamento a um dono que domina a sua paixão (poema “Navegações”), para lá da dor, no além-voo do amor que liberta. E esse é o título do caderno 2.


Do amor

                antes               Neste momento em que te amo...
                   êxtase e paixão            eu e tu
                   mãos vazias                 sentadas na ilha (...)
                   corpo carente               saberemos ser
                                                          -  amor –

Na navegação do segundo caderno, aquele eu lírico triste e choroso, que ama “demasiado”, que é capaz de “troca(r) o verde a chuva e a vida” pela atenção do amado (“Por ti”) – mesmo sabendo que chuva e verde são sinônimos de vida em solo crioulo – vai começar a descobrir a alegria nuns “olhos lunares/marinhos”. Esse novo Ulisses vai ser capaz de despertar um novo modo de paixão (“Uma centelha faiscou”), que troca a mortalha pelo “existir” e o “sentir” (títulos de poemas):

pois eu não me sabia assim
eu coração
não batia assim
minha paixão
não sentia assim.
("Sentir”)

O novo amor habita o corpo da poeta, sem pecado, sem culpa, pois “hoje” ela já é “dona” dos seus jardins, “livre e insubmissa”, já deixou gravados os sinais da sua trajetória histórica e existencial:

Pelo tempo por que passei
deixei gravados os meus sinais
d’insurreição, revolta e rebeldia
e d’alegria para lá da dor (...)

d’escrava amarrada ao tronco
esperando a cruel chibata
de pobre jovem impúbere
abusada por todos os senhores
de anônima operária exangue
aos desmandos do patrão
de triste esposa submissa
obedecendo ao rude senhor (...)

deixei gravados outros sinais
de jornadas de luta
de oitos de março
do repto e Rimbaud
do no woman no cry
da fantástica solidariedade

Pelo tempo por que passar
Deixarei gravados outros sinais
    sinais de fogo
    de sangue
    e  de amores.

Recuperada, no fundo da caixa de Pandora, a esperança, o poema-manifesto “Ortodoxias em desagregação” traz de volta o sorriso, revoluções que libertaram e utopias que triunfa(ra)m, e deflagra a ação: “QUERO/poder, conhecer, visitar, cantar/e tudo o que cheirar a liberdade”. Em recolecção, reaparecem aqui algumas das personagens femininas disseminadas na primeira parte (Antígona, Safo, Ginga), superpostas no sujeito lírico que se qualifica como “uma mulher de outubro/ uma mulher de outubros”, justiça-beleza-bravura.

Conhecemos essa mulher. Cada uma de nós, mulheres do século XX, tem ou almeja ter um pouco dela.
Conhecemos Vera Duarte. E sabemos, para além de sua militância poética, de suas grandes preocupações com o destino do ser humano:

cuidarei das crianças desamparadas
tratarei das mulheres violentadas
acalmarei os velhos abandonados
e cumprirei
    enfim
meu destino peregrino

Reconquistada a dimensão do desejo que move a ação, chegamos ao que considero o êxtase d’O arquipélago da paixão, os poemas que compõem “A trilogia do amor” e o poema subsequente, “A canção do corpoamor”. Naquele conjunto a poeta encena e prepara, em três atos (alma, corpo, febre), o encontro-dança que chega ao ápice na “Canção”.

Reinscrevendo o tema do terra-longismo cabo-verdiano (partir/ficar) num universo intimista, o eu lírico afirma “desvendado o segredo do amor” no ato primeiro – ele cresce na reciprocidade e na liberdade. O “barco carregado de estrelas”, o voo e os corpos em festa bem o demonstram no campo das imagens. O acto segundo apresenta o corpo que explode e transcende, uma vez mais projetado no espaço aéreo (“e me alcei etérea”, “miríades de estrelas”). O amor compartilhado, como na poesia de Vinícius, tem sabor de eterno enquanto dura, delirante, intenso:

por um instante eterno
fizeste-me deusa e rainha
   fiz-te amo e senhor
e nos rendemos
  maravilhados
à quimera do amor.
E o prazer mútuo traz a almejada felicidade...
deixa-me, oh deixa-me
comungar-me do teu corpo
neste delírio partilhado.

Ao homem lunar que surge no caderno 2 dedica a poeta a sua mais bela “canção” e o seu “Corpoamor”, ágil, solto e livre. Vale a pena ler o poema em voz alta, várias vezes, no seu jogo de paralelismo e diferença, em ritmo de grito e êxtase. Marquemos algumas passagens:

Ter-te-ei algumas vez dito
homem de tormentas mil
e desassossegos vários
que tu és o meu homem (...)

quando
        em êxtase
cavalgo pelas estepes agrestes
do teu corpo perfeito
         bô ê nha ôme (...)

Tu és guiné
e és berlim
tu és praia
e és salamansa
tu és nicarágua
e és mi hombre

Quero ter-te em paixão
com sabor do maracujá
que me enlouquece os sentidos (...)

Por teu corpo de homem
me faço e refaço
desfaço e renasço (...)

Teu corpo é corpo de homem
onde deságua meu rio de mulher
tu es mon homme (...)

du bist mein man, you are my man, bô ê nha óme.

Fica-nos o refrão na memória, enquanto o eu lírico feminino, de corpo ressignificado, apoteoticamente ouve a música da terra e dança, no momento do encontro de corpos, almas e febres:

E quando meu corpo renascido
suadamente repousar sobre o teu
ouvirei o som distante
de um batuque original
nas batidas de teu coração
e em teu ventre liso e marinho
abrirei uma clareira luminosa
onde dançarei
        nua e voluptuosa
essa dança tão africana
de alegria
        de amor
                 e de júbilo

bô ê nha ómi
bô ê nhá ómi.

 

 

A Paixão do Arquipélago
                                                                                                                                                                                           Somos filhos dilectos
                                                                                                                                                                            De um povo herói do quotidiano.

Em todos os textos de Vera Duarte encontramos uma paixão confessa e maior: Cabo Verde. Neste, especialmente, e pelo que temos exposto, a interlocução com a literatura cabo-verdiana, da claridosa à contemporânea, é frequente: a poeta convoca Osvaldo Alcântara (Baltazar Lopes/Nhô Baltas), Jorge Barbosa, Manuel Lopes, Mário Fonseca em suas epígrafes e contratempos temáticos.

Também o diálogo com a cultura crioula, com a África berço e os irmãos de língua portuguesa (Angola, Brasil) vai sendo habilmente tecido. O poema “Vozes em contraponto”, dedicado a Mário de Andrade, intelectual e militante angolano, fala-nos da luta e do eco solidário, une sonhos e liberdade e realidades.

Se,                                                   
espalhando-se pela rua                    
o som pesado do silêncio                      
invadir o nosso quarto                                                
e violentamente                                
me quiser arrastar                                 

arma-te
comigo                                                          
e não deixes                                          
que um último som bonito
      se apague 

(...)

Mas se subindo da rua
da praça e das achadas
um som colorido
de vozes soltas
e palavras cheias
me encontrar

em sono profundo e exausto

 Acorda-me amor
      sacode-me

 

Pois                                               
contigo irei para a rua
soltar os risos reprimidos
deixar correr as palavras sufocadas
e ouvir
       das vozes em contraponto
o eco devolvido
dos nossos anseios

O poema-manifesto “Ortodoxias em desagregação” estabelece um elo nítido com o caderno 3 (reflexões), quando marca os “momentos iniciáticos/ que incendiaram o coração dos homens” – as revoltas dos escravos, os outubros de dezassete, as áfricas de sessenta, os maios subversivos, os abris, as mulheres que ousaram/ que fizeram, as revoluções – e mergulha pés e mãos em solo crioulo, com abertura para o mundo:

quero poder
       por meus pés
cruzar ares
cruzar mares
conhecer gentes
visitar povos
cantar independências
e tudo o que cheirar a liberdade (...)

cantar o orgulho de ser-se Povo
cantar a glória de ser-se Nação.

A tristeza e a raiva pela miséria, o ódio pelo genocídio, a guerra, a fome, a sida, a solidariedade pelas crianças aleijadas e famintas (produtos da tragicidade da guerra na África e no mundo) lançam esse eu lírico para além de uma insularidade que se “fecha” na passividade da evasão, fazendo ponte ativa com o universal:

não quero mais partir!

de malas desfeitas
quebrarei na ilha
a prisão das ilhas
e voarei para lá do horizonte
com os pés fincados na areia.

Homenageando e, ao mesmo tempo, operando uma releitura dialética do texto da Claridade, Vera Duarte inicia as reflexões do caderno 3 a partir do diálogo entre Jorge Barbosa e o “irmão atlântico” Manuel Bandeira, semente da modernidade do discurso claridoso e de um aspecto revolucionário dentro da literatura feita em Cabo Verde, mais precisamente a mudança de foco de um hesperitanismo, ainda comprometido com uma estética gasta e colonial, para o telurismo crioulo, que caminhará posteriormente para a cabo-verdianidade.

Jorge Barbosa, em sua “Carta para Manuel Bandeira” (Claridade 4), vai empreender uma viagem imaginária e a busca (até o impossível) da “estrela da manhã”, para ofertá-la, do outro lado do Atlântico, ao poeta brasileiro, através da porta – o Atlântico, estrada cultural[4] – entreaberta.
O gesto de solidariedade é repetido pela poeta na reflexão1, com carga de denúncia e intervenção social, quando passa, também sem qualquer palavra (apenas gesto, como faz Barbosa), a estrela da manhã dos poetas aos meninos cabo-verdianos, esqueléticos, filhos da pobreza, abandonados à fome crônica.

Na segunda reflexão, o tema da viagem é explorado na ótica de Nhô Baltas (Baltazar Lopes), associando quotidiano de miséria e evasão/emigração. Um dos consagrados temas literários cabo-verdianos é sublinhado, a ânsia da partida.

Utilizando o processo de leixa-prem, que encadeia cada texto com o posterior, a próxima reflexão apresenta as mulheres cabo-verdianas chefes de família, mães de inúmeros filhos de pai ausente (por emigração) ou incógnito, fato insuficiente para minar-lhes a força e o sorriso:

Elas invadem a cidade com o seu coloquiar alegre e
barulhento, e sorriso alvo e rijo de mulheres que não
hesitam face a nada para poder criar os filhos.

O novo tema de reflexão (4), a chuva, dispensa comentários, a partir mesmo da dedicatória ao Manuel Lopes de Flagelados do vento leste. Representa, na maioria dos textos cabo-verdianos, a angústia, a esperança, o passado, o presente e a possibilidade de futuro.

Num céu de um azul indescritível navegam nuvens
carregadas de esperança.
Pouco abaixo uma terra fissurada por anos de seca,
desesperadamente espera que as nuvens se precipitem
sobre ela abençoando as sementeiras dolorosamente
parturientes, as almas ressequidas e as rochas
escalabradas. (...)

Quando finalmente a esperança sorrir num céu
carregado de nuvens e num arrepio da pele mal
agasalhada, as águas desabarão violentas e, sem
compaixão, arrastarão para o mar profundo tudo o
que foi esforço, entrega e devoção, nesta crença
irrenunciável e dolorosa da chuva que virá.

A circulação na ponte atlântica ainda se faz na reflexão 5, como abril e o sonho futuro celebrado junto ao poeta português Manuel Alegre. Depois da estação da dor e da estação da assimilação e da denúncia, estamos entrando na estação do amor. [5]

Na sexta reflexão, dedicada a João Paulo II, a poeta vai olhar o mundo e sonhá-lo para além da ilha, sem guerras (Angola-nação, Burundi-paraíso), sem fome, sem epidemias, sem discriminação, sem lutas pelo poder. Pleno de convívio, amor e felicidade.

Uma reflexão muito pessoal fecha o caderno 3 (e abre as navegações), assumindo o SER mulher e humana, com todas as suas consequências e implicações.

A alegria, a espontaneidade e o gosto pela liberdade
me condenam. Pretexto para as acusações que não
faltaram. (...)

Contudo sou. Orgulhosamente sou. Com uma
sobranceria de defesa o parecer tem de ser emanação
do ser. (...)

Mas, qual Florbela, sinto que a minha sede de infinito
é maior do que eu, do que tudo.

Voltamos ao início, à paixão. Novas navegações serão realizadas e novas estações visitadas. Chegamos ao caderno final (4).

O arquipélago da paixão

A mensagem última é de liberdade.

Em epígrafe de John Keats, afeto e imaginação destacam-se como norteadores da navegação.

A imagem do pássaro fechado, compartilhada com Jorge Barbosa, retorna na navegação 1, engaiolada, cobrando ainda “explicações tão urgentes quanto inexistentes sobre a salvação do mundo e a redenção dos homens”. E a poeta FALA. Em versos homéricos, de origem. Fala e recolhe os fios que lançou ao longo de seu texto, de seu longo poema, misto de lira e epos:

Falo de Deus e do nada. Do caos e do recomeço. De
Abel e eternamente Caim. De Romeu e Julieta e a
negação do amor. Sobretudo falo-lhes de Antígona. E
de clareiras abertas no mato, de navios negreiros, de
porões ensanguentados. E de terras, em terras, de
outras terras, de escravos amarrados ao tronco
esperando a chibata, e as mulheres que cochiam o
milho e rodopiavam ao som do batuque. (...)
Fitar bem no fundo dos olhos de cada pássaro
engaiolado e aquecê-los numa fogueira de amor e
ternura.

A partir daqui, as navegações retomam estações já visitadas e as redimensionam: a dor (navegação 2), a outra (mulher – 3), a amizade (4), a paixão (5), o amor (6), o juízo final (7, ainda o amor); as navegações da mulher, a relação com o outro e a harmonia entre os homens coroam o livro, num epílogo ainda reflexivo. A navegação 2 localiza a dor num corpo de mulher (feito cadáver pela violência do companheiro), documentando a persistência daquela, apesar do feminismo e do neofeminismo.

A navegação 3 prossegue uma indagação sobre o amor e a condição da mulher no mundo atual, recorrendo novamente a um artifício heteronímico para o eu lírico feminino, através do fenômeno da “habitação”, já citado antes em relação a Antígona, Ginga, Safo, Florbela. Nesse momento, dito de “civilização incoerente”, a outra, Madalena, é evocada como possibilitante de insubmissão (“total, a felicidade suprema”), tendo como contraponto Maria Virgem-Mãe e “um destino feminino sem subversões, feito de silêncios e renúncias”.

Chegando quase ao limite da(s) rota(s) traçada(s), a navegação 4 apresenta, entremeada à prosa poética das navegações, a forma do verso, “lírica mensagem de amor/no vermelho ardente” que lembra “a mensagem do milênio mil, vermelha como um grito/ MULHER” do Momento IX, de Amanhã amadrugada.

Mergulhando na paixão (5), definindo-a como “feita de material incandescente e precário”, a poeta atinge, apesar dessa certeza, a estação do amor (fecundo e jubiloso, correspondido), nas navegações 5 e 6. A felicidade e a plenitude são documentadas pela escrita: “O que eu quero é que se eu morrer amanhã todos saibam que morri feliz”.

Enfim, a navegação 7 (número cabalístico), o juízo final. A aprendizagem do amor e a sua definição pela experiência. A iniciação pela dor está completa. Voltando ao começo, na infinitude do circular, fomos, com o texto de Vera Duarte, visitar o pássaro fechado.
Transformado, “o pássaro vermelho e lindo voou”...

NOTAS

1 Originalmente publicado na obra Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa, organizada pela Professora Dra. Ângela Vaz Leão, em 2004, pela Editora PUC Minas.

2 Poema de Jorge Barbosa, referido nas duas obras: em AA, a última estrofe é epígrafe do caderno 1; em AP, a primeira estrofe é a epígrafe do caderno equivalente.

3 Poemas 'O que tu és', 'Sem remédio', 'Noite', de Florbela Espanca.

4 Comunicação proferida por Vera Duarte no Encontro Internacional de Literaturas de Língua Portuguesa, Belo Horizonte, Brasil, ano 2000, de título: “O Atlântico, estrada cultural, e a poesia cabo-verdiana do século XX”.

5 Ibidem, as estações da estrada cultural cabo-verdiana, numa ótica atlântica.   




i Simone Caputo Gomes é Doutora em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atualmente, é Professora Sênior de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo. Pós-Doutorados (5) realizados, respectivamente, nas Universidades Jean Piaget de Cabo Verde, de Aveiro, de Lisboa (2) e de Coimbra, nas áreas de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (em especial, Literatura Cabo-verdiana e História da Literatura Cabo-verdiana) e Poesia Portuguesa Contemporânea. Autora de Cabo Verde – Literatura em chão de cultura (2008), Uma recuperação de raiz: Cabo Verde na obra de Daniel Filipe (1993), além de coautora, organizadora ou autora de capítulos de livros como: Literatura e cultura de Cabo Verde: navegando pelas ilhas e pelo mundo (2021), Liberdade, sempre! (2020), Luis Romano: comentários literoverdianos 1960-2002 (2017), Claridosidade: edição crítica (2017), Cabo Verde –100 poemas escolhidos (2016), Literatura Cabo-Verdiana: seleta de poesia e prosa em língua portuguesa (2015), Contravento, pedra-a-pedra: conferências do I Seminário Internacional de Estudos Cabo-verdianos (2015).

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