Diálogos prováveis
Roberta Maria Ferreira Alves
O escritor Joaquim Arena, nascido em 1964 na ilha de São Vicente, Cabo Verde, é filho de pai português e de mãe cabo-verdiana. No início dos anos setenta, chega com a família a Portugal. Viaja pela Europa, regressando a Lisboa, no início dos anos noventa, onde se licencia em Direito. Em sua trajetória, Arena dedica-se também à música, à literatura e ao jornalismo. Dirigiu a revista Nova África e África Hoje, ambas com temática lusófona, função que exerceu em paralelo a projetos na área musical. Apenas em 1998, regressa a Cabo Verde, trabalha como redator do jornal A Semana, antes de fundar o jornal O Cidadão. Atuou como coordenador editorial do portal SAPO.CV e como correspondente da RTC (Cabo Verde), em Lisboa. Além dessas funções citadas, vale salientar que também foi conselheiro cultural da Alliance Française e exerceu a advocacia no Ministério da Justiça. No campo da política, também ligado às artes e à cultura de seu povo, foi conselheiro cultural do Presidente de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, até 2021. Atualmente, vive na ilha de São Vicente, na cidade da Praia.
Arena é autor de uma obra singular composta pelas seguintes publicações: a novela Um Farol no Deserto (IPC, 2000); Para onde voam as Tartarugas (Leya, 2010); Debaixo da nossa pele - uma viagem (Imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM), 2017), obra premiada com Menção Honrosa do Prêmio Vasco Graça Moura, 2016), Siríaco e Mister Charles (Quetzal Editores, 2022), vencedor do prêmio Oceanos 2023 e O Sabor da Água da Chuva e Outras Memórias da Amiga Perfeita (INCM, 2023). É vencedor do Prêmio Literário Arnaldo França, instituído pela Imprensa Nacional, para distinguir a promoção da língua portuguesa e do talento literário em Cabo Verde. De 2017 a 2021, foi conselheiro na área da cultura e comunicação do presidente de Cabo Verde. É colaborador da revista Ler.
Seu primeiro romance, A verdade de Chindo Luz (2006) aborda um tema bem latente para seu país: o processo de descoberta da identidade cultural pelas comunidades emigrantes que habitam na orla das grandes cidades. Suas publicações desde então ocupam um espaço de destaque na produção contemporânea de Cabo Verde.
Em seus textos, Arena dialoga com seu povo e sua gente, seja cruzando várias histórias associando ambientes tensos e temas sempre prementes, como a proteção ambiental, seja numa busca pelos últimos sinais da presença dos descendentes de escravizados negros trazidos para a região, depois do século XVIII, para o cultivo do arroz, propondo diálogos constantes entre ficção e a historiografia. Seus textos entrelaçam memórias, caminhos da história e do testemunho, tendo como pano de fundo sempre seu país. Com maestria desenha seus protagonistas como elementos que podem nos permitir perceber a história oficial a partir de memórias subterrâneas, utilizando, assim, a literatura como um instrumento do “como poderia ter sido”.
Siríaco e Mister Charles é um romance não linear dividido em 57 capítulos, que, como a memória, se encaixam em uma sequência fragmentada, permitindo que o leitor conheça a história de um personagem que existiu e ficou eternizado em duas pinturas do século XVIII, ambas em óleo sobre tela. A primeira, Siríaco, de Manuel Joaquim da Rocha, do ano de 1786, e a segunda, La mascarade nuptiale, de José Conrado Roza, do ano de 1788. Os dois artistas eram pintores oficiais da Corte de Dona Maria I.
Partindo da segunda pintura, do detalhe que completa a imagem do jovem Siríaco, o autor cabo-verdiano começa a traçar sua narrativa. Em cada uma das pessoas retratadas, há uma inscrição sobre sua origem. Na imagem do menino com vitiligo encontramos em seu calção as informações:
Siríaco, natural de Continginba, donde passou/ e dahi o mandou de presente ao Prince/pe N.S.[D.José] o Governador e Capitão General que então/ era D. Rodrigo Jo/sé de Menezes No/ronha; tem 12 anos de idade; chegou/ a esta Corte em /Julho de 1786; os raros /e celebres acidentes des/te preto se descobrem no/seu retrato. (ROZA, 2013).
Na inscrição feita na tela, Siríaco é descrito como um presente do governador e capitão-general D. Rodrigo José de Menezes Noronha ao príncipe D. José, filho de D. Maria I. A prática de presentear com pessoas, especialmente crianças africanas, era comum nas cortes europeias. Como símbolo de status e poder do presenteado, essa prática decorria da objetificação e desumanização dos indivíduos negros durante o período colonial. Siríaco, originário de Continginba (Alagoas, Brasil), foi levado à corte portuguesa aos 12 anos, sublinhando a perda de liberdade e identidade que marcou a vida de muitos africanos trazidos à Europa. A referência feita aos “raros e célebres acidentes” que se “descobrem no seu retrato” alude provavelmente ao vitiligo de Siríaco. A curiosidade europeia pelo exotismo físico e cultural dos africanos era um reflexo de ideias sobre os habitantes de regiões consideradas exóticas e selvagens. Algumas características de povos vistos como diferentes eram tratadas como curiosidades ou até como atrações bizarras. O uso do termo “acidentes” para descrever sua condição de pele sugere uma visão eurocentrada, que enquadrava o corpo preto como um objeto de estudo ou entretenimento, em vez de ser reconhecido em sua plena humanidade.
Embora Siríaco estivesse presente na corte, sua representação e tratamento como um “presente” fazem dele objeto de curiosidade e revelam sua posição subalterna. O fato de sua história ser preservada apenas em termos de sua “curiosidade” física – e não por qualquer outra contribuição ou experiência pessoal – sublinha a forma como pessoas como ele eram desumanizadas e reduzidas a suas características externas.
A citação grafada na tela La mascarade nuptiale e o contexto de Siríaco ilustram as complexas relações de poder, de racismo e exotização que permearam as cortes europeias durante o período colonial. A vida de Siríaco, encapsulada por essas poucas linhas, representa a experiência de muitos outros africanos que, apesar de suas histórias ricas e diversas, foram reduzidos a meros objetos de curiosidade e subjugação. Sua história leva-nos a uma reflexão profunda sobre a maneira como a história foi registrada e contada, frequentemente omitindo as vozes dos próprios sujeitos que viveram essas experiências.
Esse é um dos pontos principais do romance, qual seja, o de ressignificar o que poderia ter acontecido, através da literatura, com aquele indivíduo que foi delineado por questões sociais, econômicas e culturais. Arena, assim, constrói uma vida ficcionalizada para humanizar e rever a figura do alagoano em Cabo Verde. Ele recria, pela imaginação, aquilo que está fragmentado nos registros artísticos e históricos.
Em um mundo interconectado e multifacetado, a literatura, em campo expandido, redesenha ligações e diálogos que ultrapassam fronteiras das artes e da ciência, desafiando leitores a reconsiderarem limites. A história oficial é redesenhada, e os seus registros reavaliados e reestruturados.
Dessa maneira, sabemos que é fato registrado, historicamente, a passagem da corte portuguesa por Cabo Verde, em fuga para o Brasil. Contudo, é a pena de Arena que devolve a humanidade ao escravizado, pelo simples fato de permitir que ele renasça1, se apaixone por uma ilhoa e decida ficar no arquipélago. É essa escolha ficcional que permite a Siríaco, anos mais tarde, encontrar-se Charles Darwin, o naturalista inglês.
Nesse inusitado encontro, o escritor coloca a história de sua terra assolada pelas secas e colorida pelas belezas naturais. Ficção e realidade surgem como duas pontas do mesmo fio. Regado pela ironia, analisa teorias científicas e técnicas de colonização. Questiona sempre a história única que, durante muito tempo, determinou memórias e registros.
Por esses outros motivos, cremos que Siríaco e Mr. Charles, de Joaquim Arena, seja uma leitura recomendada, especialmente para quem tem interesse em narrativas que explorem as complexidades culturais e históricas de África. O livro, além de se destacar por abordar temas como a identidade, o choque de culturas e a influência do colonialismo, delineia a perspectiva de personagens que transitam entre diferentes mundos.
A prosa de Joaquim Arena é rica e detalhada, com uma narrativa que envolve o leitor e o faz refletir questões profundas e como elas têm sido abordadas ao longo da história. A linguagem é bem trabalhada, consegue transmitir de forma eficaz as tensões e as nuances culturais presentes na história.
Trata-se de um romance relevante para quem estuda ou tem interesse por temas relacionados à pós-colonialidade, identidade cultural e diáspora. A história oferece uma visão multifacetada dessas questões, pelas vivências dos personagens principais. A narrativa impacta por levantar perguntas que ressoam com a história de muitas ex-colônias portuguesas, podendo oferecer novas perspectivas e provocar discussões relevantes sobre a herança colonial e suas repercussões contemporâneas.
Os personagens são bem construídos, com profundidade psicológica e complexidade que adicionam camadas à narrativa. Siríaco e Mr. Charles são figuras que representam diferentes aspectos da experiência humana em contextos de transição e confronto cultural.
Cremos que, se você se interessa por literatura que explora o entrelaçamento de culturas e identidades, e se busca uma narrativa que ofereça tanto uma experiência literária rica quanto uma reflexão crítica sobre temas contemporâneos, Siríaco e Mr. Charles é uma leitura altamente recomendada.
Diamantina, agosto de 2024.
Nota
1 Segundo a pesquisadora Isabel Braga, de acordo com os gastos registrados em documentos contábeis da Família Real Portuguesa, Ciríaco (Siríaco), o “anão malhado” da Corte Exótica de Dona Maria I de Portugal, faleceu em julho de 1791.
Referências
ARENA, J. Siríaco e Mr. Charles. Lisboa: Quetzal Editores, 2022.
BRAGA, I.M.R.M.D. Os “Pretos da rainha”: Serviçais exóticos na corte de D. Maria I: Disponível em: https://chi.guimaraes.pt/actas/4CH/2sec/4ch-2sec-002.pdf. Acesso em 28 maio 2024.
ROZA, J.C. Un regard, une ceuvre La Mascarade Nuptiale. Alienor.org, 2013. Disponível em: https://www.alienor.org/publications/2161-mascarade-nuptiale. Acesso em: 28 maio 2024.
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Professora de Magistério Superior da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Coordenadora do Grupo de Estudos Estéticas Diaspóricas (GEED).