Utopia e dualidade no contato de culturas: o nascimento da literatura cabo-verdiana[1]

Benjamin Abdala Júnior[i]

A literatura cabo-verdiana pode ser dividida em dois períodos: antes e depois da revista Claridade (1936-1960). A trajetória dessa revista corresponde a circunstâncias políticas, sociais, históricas e literárias que, a partir da década de 30, levaram os escritores cabo­verdianos a se preocuparem com a identidade de sua literatura, uma identidade com marcas regionais que viriam a evoluir, a partir da Segunda Guerra Mundial, para uma ruptura mais acentuada, de caráter nacional, em relação aos padrões literários metropolitanos.

Os escritores do arquipélago de Cabo Verde procuravam voltar as costas para modelos temáticos europeus. Seus olhos se fixavam no chão crioulo, próprio da mesclagem étnica e cultural de seu país. A crioulidade deve ser tomada neste texto, diferentemente do que pensavam os autores da revista Claridade, como uma mescla cultural não unívoca (mestiça), um todo em que pedaços de culturas interagem entre si, ora se aproximando, ora se distanciando. Essa atitude dos intelectuais cabo-verdianos, de oposição aos padrões hegemônicos provenientes da metrópole, era correlata à obsessão pela procura de origens - étnicas e culturais -  que sensibilizava a intelectualidade africana do continente.

"Galo cantou na baía", de Manuel Lopes, cuja versão original foi publicada no segundo número da revista Claridade, em agosto de 1936, é o primeiro conto da literatura identificada com a cabo-verdianidade. A edição revista dessa narrativa é de 1959. Faremos referência, neste ensaio, à sua terceira edição (Lopes, 1984).

O nascimento de Vênus

Em "Galo cantou na baía", a personagem central era o guarda Tói, um guarda alfandegário. Seu salário era pequeno e ele conseguia sobreviver à custa da apreensão de "contrabandos". "Contrabando" era a mercadoria que circulava, sem pagar impostos, de uma ilha para outra, no arquipélago de Cabo Verde. Ao mesmo tempo, ele era um compositor de mornas, a forma musical mais popular do arquipélago, símbolo da maneira de ser de Cabo Verde, a cabo-verdianidade, tal como acontece no Brasil com o samba.

Para buscar· inspiração, ele se colocava diante do mar. No entendimento dessa personagem, a composição musical deveria emergir das águas, inteira, letra e música, de uma forma similar à pintura O nascimento de Vênus, de Botticelli.

O nascimento de Vênus (1485) - dos tempos da descoberta de Cabo Verde pelos portugueses - está ligado, de certa forma, a conceitos neoplatônicos. O corpo de Vênus, surgindo das águas, pode sugerir, com suas linhas puras, o renascimento da alma através do batismo. Tal imagem será retomada várias vezes no curso desta exposição.

Morna, uma linguagem musical

O guarda Tói é personagem contraditória, dividida entre as solicitações da boemia que se reunia num bar da cidade de Mindelo, na ilha de São Vicente, Cabo Verde, e os habitus repressivos exigidos por sua profissão de guarda. Enquanto buscava inspiração para compor a sua morna, deslocava-se simbolicamente pela estrada marginal que contornava o porto, para atingir um local mais elevado onde estava fincado um padrão. É claro que se tratava, nesses tempos coloniais, de um padrão português, comemorativo não da posse da terra, como aconteceu noutros cantos das terras colonizadas por Portugal, mas de uma aventura aérea, não marítima, os "feitos" de dois heróis portugueses do século XX. A narrativa não nomeia esses heróis. São eles Sacadura Cabral e Gago Coutinho. Ao deslocar-se pela estrada marginal até esse ponto elevado, onde se descortinava o conjunto da baía de Mindelo, o guarda Tói procurava refletir sobre as origens da morna. Para ele, a morna nascera entre os pescadores da ilha da Boa Vista, pertencente ao conjunto do arquipélago de Cabo Verde. Seu ritmo seria análogo ao das ondas do mar, com uma cadência correlata aos movimentos dos remos dos barcos de pescadores. No assunto veiculado oralmente pela canção, as composições traziam os lamentos e as queixas desses pescadores. Como se percebe, o que está em pauta no conto de Manuel Lopes não é apenas a construção da morna. Analogicamente, discute­ se a própria construção do conto que inaugurava então a prosa de ficção do país. Seu horizonte ideológico é a cabo-verdianidade, isto é, a tomada de consciência da ideia de uma identidade regional, etapa para a nacional, diferentemente daquela proveniente de Portugal.

Em perspetiva fica a procura, pelo autor do conto, de uma linguagem tão musical como aquela que aparecia nessa canção. Vasco Martins (1990, p. 94-96) diz que já há anos existe uma preocupação dos cabo-verdianos em definir as origens da morna, estudo problemático, já que não existe uma documentação relativa a essa forma de memória coletiva. Para esse estudioso, a morna configurou-se como forma musical com estatuto próprio na ilha da Boa Vista. Até chegar a essa forma mais estável, teria tido origem remota no lundum africano, provavelmente assimilado no Brasil e levado para Portugal. Era o "doce lundum chorado", que o poeta brasileiro Caldas Barbosa introduziu nos salões lisboetas.

Nos finais do século XVIII, o lundum teria entrado em Cabo Verde, época em que ocorreu um grande afluxo/refluxo de escravos para a Bahia. Nos princípios desse século, a morna atingiu São Vicente e ilhas adjacentes, dada a importância do porto de Mindelo, que serve de referência espacial básica no conto "Galo cantou na baía". Aí a morna ganhou maior complexidade melódica e um novo contato com a música brasileira (as modinhas) e com o fado português, forma musical também originária do lundum. Em "Galo cantou na baía", o narrador aponta essa presença musical brasileira em Cabo Verde. As cantigas brasileiras eram então tocadas ao lado das mornas, no porto de Mindelo, na Ilha de São Vicente.

Como se vê, a composição musical simbólica da identidade nacional cabo-verdiana tem muitas correlações com a nossa música. Correlações equivalentes poderão ser apontadas na prosa de ficção, como apontaremos mais adiante.

"Estrada marginal": caminhos da identificação

O guarda Tói circulava em Mindelo, na imagem literária que estamos lendo, por uma simbólica estrada marginal. Seu "campo comunicativo" no bar que reunia a boemia da cidade era formado por personagens representativas de um sentimento de parentesco mais amplo, a cabo-verdianidade, e muitas delas não deixavam de atuar à margem do poder do Estado português, coexistindo com ele. Essa existência à margem do poder de Estado coexistia com o guarda Tói. O exame do espaço dessa "marginalidade" revela, todavia, e de imediato, a existência de um tecido social paralelo, feito de relações que o "outro" (colonial) é incapaz de penetrar. Para a literatura de ênfase social dos anos 30, a consciência social vem desses setores marginalizados: o lúmpen - como é evidente na produção, por exemplo, de um Jorge Amado-, em sua existência à margem dos padrões instituídos, transforma-se no proletário.

Em "Galo cantou na baía", a comunidade cabo-verdiana é observada com os pés assentados nas margens e não no centro do domínio colonial português.  Esse descentramento da ótica metropolitana revela, então, novas faces do referencial cabo-verdiano, por desconsiderar as mesmices que não permitiam descortinar o específico de Cabo Verde, perspectivas impostas aos cabo-verdianos pelos padrões coloniais do centro metropolitano. Nessa imagem literária, não se trataria apenas de um grupo: simbolicamente, toda a nação estaria numa situação correlata, toda ela seria marginal.

Entretanto, a própria construção do conto mostrava que o barco não estava à deriva, solto pelas margens. Sua configuração advinha, na verdade, de um descentramento estratégico de ótica: pelas margens subverter o centro do imaginário colonial.

Esse mesmo descentramento permitia que se olhasse para outra margem do Atlântico, para o Brasil. Historicamente, o Brasil foi, para os cabo-verdianos, nas palavras de Jorge Barbosa, integrante do grupo da revista Claridade, "o meu irmão do Atlântico".

E a presença da literatura regional brasileira foi marcante para os cabo-verdianos, um influxo que veio de fora para que os escritores desse país repensassem a identidade do arquipélago - uma identidade regional reimaginada em termos sociais, da mesma forma como ocorreria um pouco depois com o chamado neorrealismo português, no território metropolitano.

Em 23 de setembro de 1936 (o segundo número da revista Claridade em que se publicou "Galo cantou na baía" é de agosto de 1936), o poeta brasileiro Ribeiro Couto, que estava na Holanda, enviou carta a Manuel Lopes, afirmando:

Salta aos olhos que a literatura do grupo da Claridade está mais perto do Brasil do que de Portugal (...). A propósito ainda do assunto, quero dizer-lhe que achei admiravelmente feito o seu conto um galo que cantou na baía. Na forma e na essência(...). Não sei se conhece o artigo que escrevi sobre Cabo Verde no Jornal do Brasil, há uns três anos. Creio que o intitulei: as ilhas da perpétua aventura. O Osório deve tê-lo. (Santos, 1989, p. 207-208)

Osório é o crítico português José Osório de Oliveira, figura importantíssima para a circulação literária entre Portugal, Brasil e Cabo Verde. Ao lado da publicação de "Galo cantou na baía", no segundo número da revista Claridade, aparece um texto de José Osório de Oliveira com o título:

"Palavras sobre Cabo Verde para serem lidas no Brasil", em que esse crítico afirma que os cabo-verdianos precisavam de um exemplo que a literatura de Portugal não lhes podia dar, mas que o Brasil lhes forneceu. As afinidades existentes entre Cabo Verde e os estados do Nordeste do Brasil predispunham os cabo­verdianos para compreender, sentir e amar a nova literatura brasileira. (Santos, 1989, p. 4)

Conforme aponta Maria Aparecida Santilli em "Ecos do modernismo brasileiro (entre africanos)" (1985, p. 25-30), José Osório de Oliveira também não aceitava que os escritores de Cabo Verde, como acontecia com a literatura anterior à Claridade, se voltassem para temas alheios à realidade do arquipélago. Baltasar Lopes, em "Cabo Verde visto por Gilberto Freyre", diz:

Há pouco mais de 20 anos, eu e um grupo reduzido de amigos começamos a pensar o nosso problema, isto é, no problema de Cabo Verde. Precisávamos de certezas sistemáticas que só nos poderiam vir, como auxílio metodológico e como investigação, de outras latitudes. Ora, aconteceu que por aquelas alturas nos caíram nas mãos, fraternalmente juntas, em sistema de empréstimo, alguns livros que consideramos essenciais pro doma nostra. Na ficção o José Lins do Rego d'O menino de engenho, do Bangüê; o Jorge Amado do Jubiabá e Mar morto; o Amando Fontes de Os corumbas; o Marques Rebelo de O caso da mentira...(Lopes, 1956, p. 12)

Existiu essa intenção programática, por parte da intelectualidade ligada à revista Claridade. De acordo com Baltasar Lopes, em entrevista a João Lopes Filho,

uma das mais "urgentes" motivações de Claridade (revista e grupo) foi o estudo da realidade cabo-verdiana, com vista ao melhoramento econômico e social da nossa gente, nomeadamente da que se situa nos níveis mais baixos de possibilidades. É justamente esta intenção programática que constitui o elo de ligação com as gerações subsequentes, cujo ideário, em termos de perspectivas de ação, assentava nessa mesma intenção.²

Manuel Lopes, em "Reflexões sobre a literatura cabo-verdiana" (1959, p. 14), aponta a forte presença em Cabo Verde do "modernismo e do neorrealismo" da literatura brasileira, por sua intensa "radicação nacional, identificados com o meio físico e social, evocando o homem brasileiro e os problemas sociais do Brasil, mas sempre humanos e universais nos seus propósitos revolucionários".

Jorge Barbosa também discute essa ressonância brasileira, tão presente em sua obra: "O exemplo, repito-o, do ensaísta, do romancista e do poeta modernos brasileiros fez ecoar entre nós, com a sua novidade, um ardor novo, e daí advieram novas ideias e a indicação de outros caminhos".³

O farol do Ilhéu dos Pássaros: um símbolo da Claridade

Enquanto o guarda Tói, junto ao padrão, aguarda a emersão (criação) de sua morna, de forma análoga ao nascimento de Vênus, vamos nos fixar num outro motivo simbólico do conto: o farol do Ilhéu dos Pássaros, situado defronte ao porto de Mindelo, observado pelo guarda. A luz intermitente do farol ilumina em ritmo regular toda a baía dessa cidade.

O farol liga-se ao campo sêmico da claridade, por oposição à escuridade. Seus fachos de luz apontam rumos e ele pode ser entendido como imagem literária do grupo da revista Claridade, uma imagem iluminista, mas intermitente. Conforme depoimento de Baltasar Lopes, o nome da revista cabo-verdiana veio de Henri Barbusse, "que era na França figura importante senão dominante do grupo Clarté" (Ferreira, 1986, p. 13). No Brasil, essa designação já aparecera na revista C!arté, da Liga Socialista, com Evaristo de Morais, Maurício de Lacerda, entre outros. Como se observa, a revista brasileira também nasceu sob os influxos do movimento que teve, na França, a liderança de Henri Barbusse (1873-1935). Do Rio de Janeiro, o grupo C!arté estendeu sua influência a São Paulo, com Nereu Rangel Pestana e ao Recife, com Joaquim Pimenta.

Grinalda, um veleiro ao ritmo da morna

Enquanto o guarda Tói, junto ao padrão, procurava inspirar- se, no claro/escuro da luz do farol do Ilhéu dos Pássaros, um falucho de nome Grinalda entrava na baía de Mindelo. A embarcação a vela trazia um contrabando de grogue, a bebida nacional de Cabo Verde. Era comandada por Jom Tudinha e trazia quatro passageiros, além da pequena tripulação.

Ao ritmo do mar' cada uma dessas personagens apresenta suas carências: Jom Tudinha, outrora capitão de longo curso, lamentava sua situação presente, comandando um barco velho; a professora voltava para Mindelo, afastando-se de uma região inóspita assolada pela seca; Miguel, solitário, estava carente de amor; para o embarcadiço Castanha, a carência vinha da fome.

Carências normalmente cantadas pelas mornas e que, como as personagens, também adentravam a baía de Mindelo, vindas de outras ilhas. E a embarcação, conforme diz o narrador de "Galo cantou na baía", configurava-se musicalmente: "A batuta do mastrozinho não mostrava pressa, entregue a um ritmo retardado e certo de metrônomo".

O crioulo cabo-verdiano: no registro social da linguagem, as marcas da identidade

A morna, como cantiga popular, era cantada em crioulo, ou língua cabo-verdiana. E o crioulo, como na intermitência dos flashes de luz da Claridade, vai também impregnar a escrita de "Galo cantou na baía". O português-padrão continua como língua de base, mas impregnado pelas "iluminações" do crioulo. Ao lado da morna, o crioulo é um dos temas mais frequentes da cultura de Cabo Verde.

Estigmatizado pelo poder colonial, o crioulo, ponto de referência do regionalismo cabo-verdiano, será então incorporado ao português­ padrão em produções identificadas pela cabo-verdianidade, matizando-se através de marcas referenciais da forma de sentir e imaginar esse território africano. Serão feitos, ao mesmo tempo, poemas em crioulo. Como indica Pierre Bourdieu em O poder simbólico, "o estigma provoca a revolta contra o estigma, que começa pela reivindicação pública do estigma, constituindo assim em emblema - segundo o paradigma black is beautiful (...). É, com efeito, o estigma que dá à revolta regionalista ou nacionalista (...) as determinantes simbólicas." (Bourdieu, 1989, p. 78)

Em "Galo cantou na baía", o crioulo, símbolo da identidade nacional, associa-se ao português, dando origem a uma tensão linguística em que o idioma do colonizador, mais frequente, cumpre sua função veicular, mas as matizações do crioulo guardam relações de analogia com formas de um novo imaginário literário em gestação. O ritmo da luz do farol é simétrico ao dos movimentos do falucho comandado por Jom Tudinha. Sua luz também atinge a praia da Matiota, onde outra personagem Jul'Antone) aguarda para recolher o contrabando. O farol simbólico associado à práxis da revista Claridade, com sua luz igualmente intermitente, oscila, com rápidos flashes, no espaço e no tempo, contrastando a situação atual de Mindelo com o passado idealizado de seu porto, ao ritmo da morna. Na caracterização psicossocial, à maneira do neorrealismo (ênfase na situação econômica e social), esse foco intermitente ilumina alternadamente as personagens do Grinalda e Jul'Antone, que estava em terra.

Como procuramos desenvolver, essas personagens de existência à margem do Estado apresentam-se como imagens da cabo-verdianidade. Um Estado pode ser definido como uma instituição que reivindica para si, com êxito, o monopólio da violência legítima numa área geográfica definida. Reserva para si o direito a impor e a obrigar. Uma nação é uma comunidade; o Estado é uma instituição ou, como Max Weber o chamou, uma "associação compulsória".

Vontade de felicidade: a imagem dupla que move a ação

Vamos nos fixar agora nos flashes da luz do farol do Ilhéu dos Pássaros, para observar os sonhos das personagens. Mais precisamente, a vontade de felicidade que move suas ações. É o momento do "nascimento de Vênus", na perspectiva do guarda Tói: o momento da emersão das águas, do nascimento da morna. Essa emersão não será apenas imagem do nascimento. Como observamos anteriormente, também é imagem do batismo. Batismo da morna, batismo de uma literatura que passa a existir enquanto literatura da cabo-verdianidade.

A morna e o conto nascem ao ritmo marítimo, ligado à principal atividade econômica de Cabo Verde: a pesca. Foi a pesca que, historicamente, singularizou os cabo-verdianos, um povo de marinheiros. Como temas da morna, figuram os conflitos que envolvem o veleiro, no mar e na terra. Dispostos melodicamente em flashes - à luz do farol da Claridade - os conflitos circulam entre passado, presente e o futuro sonhado pelas personagens, entre a oscilação rítmica do barco e a projeção desse ritmo em terra firme. O ritmo também embala personagens insuladas e que aspiram a romper o solitário através do solidário.

É assim a perspectiva de Jom Tudinha, colocado na narrativa como o principal ator social da nação. Ele se contrapõe, nesse sentido, ao guarda Tói, ator social com as marcas do Estado.

Focalizemos então o casal (a professora e Miguel) que traz o tema universal do amor, de presença obrigatória na morna. A vontade de felicidade leva a professora e Miguel a serem circunstancialmente felizes. A professora vinha de região inóspita, assolada pela seca. Precisava de uma forma de amor, de solidariedade. Encontrava-se sentada no convés da embarcação, em ângulo reto, ao lado de um desconhecido.

No embalo das ondas, seu corpo tocava ritmicamente o corpo desse desconhecido, o tímido Miguel, que no claro/escuro da noite e do farol, entre avanços e recuos, ia incursionando sua mão pelo braço da professora, até beijá-la. Nessa incursão, de acordo com o narrador, os nervos do rapaz "vibravam como as cordas de uma viola lançada ao vento".

A imagem que Miguel teve da professora parece desfocada. Ela o vê como uma sombra. A luz fugidia do farol do Ilhéu dos Pássaros provocava imagens dúplices: a figura concreta de uma pessoa desconhecida e aquela do sonho - uma imagem fantasmagórica que expressava a carência de cada uma dessas personagens.

Para Miguel, seria a imagem de uma mulher sonhada, fisicamente desejada. Para a professora, que vivera em região com carências de toda ordem, seria uma forma de solidariedade e de carinho, uma espécie de boas-vindas da população de Mindelo, como informa o narrador.

O ideal de felicidade alimenta a narrativa como elemento imaginário de integração, como proposta implícita de um modelo alcançável. E, também, como horizonte de utopia contraposto às limitações do real. Nessa situação, a prática das personagens estabelece uma relação subterrânea com o proibido.

No clímax do beijo, o casal é convidado pelo comandante do Grinalda, Jom Tudinha, a deixar essas coisas para a "terra firme", já que o tempo era de contrabando. Como vimos, o contrabando nesse conto é ambíguo. É fazer o que deve ser feito, nas brechas da ordem estabelecida. Nesse sentido, todas as personagens do conto, à exceção do guarda Tói, são contrabandistas e não apenas as envolvidas no contrabando de grogue.

O grogue é, aliás, a bebida nacional de Cabo Verde, algo correlato à nossa cachaça. Sem o grogue não se produz a morna. E, de acordo com as estratégias da enunciação, a prática amorosa pede a harmonização das ordens individuais com as sociais. Dessa forma, as personagens, ao serem descobertas por Jom Tudinha, acabam vexadas, diminuídas. Observa-se, assim, como o ideal de plenitude contrapõe-se à ordem moral fundada na repressão dessa plenitude, inclusive da plenitude física.

No claro/escuro da entrada do Grinalda no Porto Grande, o erotismo das personagens -e aqui nos valemos de G. Bataille- também se associa à grande imagem do batismo, que enforma o conto. Para Bataille, o erotismo está "ligado para todo mundo ao nascimento", contra a sombria presença da morte (Bataille, p. 21-22).

Cabe aqui uma recorrência a Ernst Bloch, em seu livro O princípio esperança (1976). Ao lado de Walter Benjamin, são dois autores que repensam a utopia em termos de atualidade. Podemos situar, assim, a tensão professora/Miguel como atualização de modelos culturais que Bloch localiza numa lenda da antiguidade clássica, recolhida por Eurípides e que se contrapõe à Odisseia. Ao voltar da guerra de Tróia, de acordo com essa lenda, Menelau descobre que a Helena que motivou dez anos de guerra era uma imagem, uma miragem que se esfumaça quando a Helena real é descoberta.

A Helena que motivara a guerra de Tróia, segundo a lenda recolhida por Eurípides, fora criada por uma artimanha de Hera. A verdadeira Helena permanecera numa ilha egípcia e seria a Helena real contraposta àquela criada por Hera. Ao encontrar a Helena do Egito, a real, Menelau preferiu a miragem. Via na miragem a imagem verdadeira e vai procurá-la na imbricação dessa imagem com a imagem relativa da Helena real. Nela residiam, podemos inferir, as cintilações da sua utopia. Esta não é abstrata, mas existe como possibilidade: a Helena de Tróia fulgura na Helena do Egito. Como desenvolve Ernst Bloch, para Menelau há uma fusão nas duas Helenas - a onírica e a da realidade ainda virtual - numa imagem tendencial, pela utopia que habita o próprio ser como imagem da esperança: "C'est là seulement que la congruence totale du contenu de l'intention et de celui de la possession du but, autrement dit de l'identité de l'identique et du non­ identique (ce dernier étant compris comme distance de l'intention, distance de l'espérance) peut être latente. Le repos ne sera possible que le jour ou l'Hélene égyptienne rayonnera de l'éclat qui auréolait celle de Troie". (Bloch, 1976, p. 225)

Com Miguel vai acontecer algo parecido. Em "terra firme", como queria o comandante Jom Tudinha, ele vai procurar a professora. Isso ocorre num outro texto de Manuel Lopes, o romance Os flagelados do vento leste (1979). Nesse romance, a professora foge de Miguel. Na verdade, esqueceu-se dele. Sua consciência indicava que beijara uma imagem anônima, sonhada e não real. Ela sai de Mindelo e retorna à escola. Miguel procura-a de todas as maneiras, indo depois encontrá-la. Tem diante de si, entretanto, a professora real, que o repele. Miguel se afasta, mas continuará a sonhar com a professora, não com a imagem dela que encontrara à luz do sol, mas com a figura feminina entrevista no veleiro.

Na representação desses momentos de plenitude amorosa pode ser visualizada uma correlação analógica com a intermitência do farol do Ilhéu dos Pássaros. É um lusco-fusco similar àquele que marca as atualizações da utopia, no sentido de Ernst Bloch. É a posse do presente, do instante, para a liberação do futuro. É a liberação da esperança, que será truncada pelas contingências do real. São as "iluminações", intermitentes, abertas pela revista Claridade.

Ernst Bloch vê criticamente a realização utópica restrita à posse de um instante fugidio, pois considera que nada é mais contrário ao espírito utópico do que a utopia condenada a uma corrida sem fim. A perspectiva de Bloch é neorromântica. Seu desejo seria desbloquear totalmente o futuro latente nas relações sociais. Talvez desconsidere o fato de que essa latência só pode ser liberada pela ação do sujeito, com suas limitações pessoais e situacionais. Nesse sentido, a ação de Miguel, ao vencer sua timidez, permitiu-lhe a posse do instante. O futuro fez-se presente, no nível do momento - uma circunstância conjuntural, alimentada pelo sonho. O sonho deve continuar como radicalidade do sonho utópico, em seu horizonte de expectativas.

Talvez pudéssemos aproximar essa presentificação da utopia - essa latência do sonho nas limitações dos fatos reais - da razão iluminista à maneira de Habermas. Habermas defende um ponto de vista experimental. E o horizonte de plenitude almejada não deveria restringir-se à contemplação, mas constituir-se em conquista, numa atitude claramente reformista.

Abordemos agora o guarda Tói. A sua imagem neoplatônica do nascimento de Vênus, por outro lado, voltava-se para a presença de modelos ideais. Como observa essa personagem, cada uma das quadras de sua morna vinha completa, emergindo das águas. Bastava então apropriá-las, pois que a configuração letra-música já vinha completa. Desconsiderava a personagem, pois, as condições dessa gestação envolta na ambiência aquática. Ele se realiza, assim, pela atualização/concreção de modelos ideais, situados externamente a si. Tais perspectivas do modelo ideal já configurado da tradição platônica da utopia levam a se pensar numa apreensão dessa vontade de plenitude para a de um Estado-nação ideal, que disciplinaria o que a utopia tem de assistemática, de potência no nível de virtualidades de um estado de natureza. Como ator social de um Estado (colonialista), guarda Tói, na sua profissão de guarda, seria talvez capaz de disciplinar o novo emergente das águas num novo Estado. Se, entretanto, nos afastarmos das imagens de falsa consciência dessa personagem e atentarmos para o discurso do narrador, verificaremos que o que motiva o guarda é um estado de carências: da pessoa amada e da solidariedade/reconhecimento do grupo (seu "campo intelectual" e seu "campo comunicativo"). Contra esse estado de carências é que ele vai aplicar sua vontade de imaginar, de criar uma morna. Nesse sentido, a imagem do batismo brotava de seu trabalho sobre um referente da tradição cultural europeia e do referente histórico de Cabo Verde. Essa vontade subjetiva, como aquela que também motiva a ação de Miguel e da professora, é que impregna os objetos. Não se trata, pois, de ver no "outro" modelos ideais de um sonho de plenitudes, mas de um simulacro, em que a imagem entrevista, materializada como posse do instante, entra em tensão com o real. É a imagem sempre nova da diferença e não a do igual, que provém do modelo ideal. Esta seria previsível, afim do convencional ou do estereótipo.

A imagem da fantasia, assim, não produz catarse no casal do Grinalda. O mesmo não ocorre com o guarda Tói. Como é ator do Estado, a força utópica - o desejo de felicidade - que o impulsiona a construir a morna acaba por ser controlada pelo Estado. Ao terminar a composição, precisa discipliná-la, cristalizá-­la no papel. Solicita para tanto o auxílio do Jack da Inácia, que escreve a canção ditada pelo guarda, ao ritmo da luz que vem do farol do Ilhéu dos Pássaros.

A energia utópica é assim dominada no que tinha de virtualidade, embora o guarda Tói trabalhasse na composição musical com matéria plurívoca - energia de um movimento infinito da natureza. Ele associa os sons da natureza com os do movimento social. Em sua morna, associa amor/pobreza. A carência amorosa como metáfora da pobreza:

Sê rosto ê sol de nha pobréza,
Nha rosto ê céu que tá variá:
Se Sol bem, tá fazê clareza,
Ma só el dxom'm, scuro tapá...

Os dois cantos do galo

"Temos contrabando, temos canja".

Essa era a primeira quadra da composição de guarda Tói. A segunda está ligada ao título do conto de Manuel Lopes. Já diante da praia da Matiota, de Mindelo, após adentrar na baía, houve o desembarque do grogue. A carga passou para o barco a remo de Jul'Antone. Com a carga, seguiu um galo. Era um presente do capitão Tudinha para a mulher de Jul'Antone, Guida.

Com a aproximação da aurora, o galo cantou pela primeira vez, em meio à baía. O canto foi um motivo configurador da segunda quadra da morna do guarda Tói, que recolheu-a da água por inteira, já plenamente organizada, com a letra associada à música. Ou como diz o narrador na perspectiva dessa personagem: "Era a espinha dorsal, o eixo. Era o nascimento de Vênus. Morna salgada, morna de mar. Música e letra se agarrando no ato de emersão":

Jâ cantâ galo na baía
Sol câ tâ longe de somâ,
Coma'm tâ longe de
Maria Scuro tâ continuá

O guarda Tói, menos como foco emissor e mais como radar sociocultural, apropria-se dessa formação cultural que emerge simbolicamente das águas do mar. Ele é o artista que se alimenta da dor de sua gente - tópico neorrealista muito frequente nas literaturas africanas.

O galo, no primeiro canto, é motivo configurador da morna. No segundo canto, já é também motivo de dor. Se no primeiro canto anuncia uma nova literatura, no segundo denuncia as personagens.

Vamos nos deter agora nessa imagem do batismo, que pertence à tradição cultural europeia. Só a forma pode transformar um produto em obra de arte. A forma é uma experiência social cristalizada. E a sua tendência é ser extremamente conservadora. Entendemos que as formas têm dinâmica própria e podem acabar por violentar o novo objeto em termos de função. O impulso da velha forma pode continuar a impulsionar os novos objetos. Assim, por exemplo, no sonho de Ícaro, o voo humano seria com asas de pássaros; na "Passarola" de Bartolomeu de Gusmão, o modelo estrutural que se reproduz para a "navegação da área" é a da caravela etc.

O repertório do guarda Tói seria proveniente das tensões ideoculturais da intelectualidade cabo-verdiana. Se, de um lado, tratava-se de "fincar o pé na terra", por outro havia o peso da cultura clássica. Na geração que precede a da Claridade, um Pedro Cardoso, por exemplo, embora defendesse o ensino do crioulo cabo­verdiano, fazia poemas, como um José Lopes, à maneira clássica. Para eles, Cabo Verde seria as ilhas das Hespérides do imaginário grego. Buscavam no mito da Atlântida, desenvolvido por Platão, ou nas lendas da Grécia antiga, as suas primordiais origens. Desenraizados do continente africano, massacrados pela ideologia da metrópole - a quem ainda pretendiam ser fiéis (era o início da ruptura) - esses autores buscavam em novos conteúdos míticos o apoio para a construção da sua identidade histórica e geográfica.

Dividiam-se entre Cabo Verde e Portugal. Simbolicamente, como os africanos do continente, cantavam a mãe-terra (a mátria), mas continuavam a prestar reverências ao poder paterno (o etnocentrismo da pátria colonial). Começam a se afirmar então formulações do imaginário brasileiro, a frátria do outro lado do Atlântico.

Em "Galo cantou na baía", a consciência dividida do guarda Tói acaba por se inclinar para o prestígio da visão eurocêntrica que aprendeu, segundo o narrador, com certos intelectuais de Mindelo. Se, por um lado, o guarda Tói (e, com ele, no nível da construção do conto, o autor implícito) vale-se da imagem renascentista de Botticelli, por outro - a partir do estímulo do referente cabo-verdiano - essa personagem justifica internamente a escolha do galo como motivo de sua canção. O galo (nascer do dia, dos novos tempos e da nova literatura) torna-se, assim, símbolo da cabo-verdianidade: "Até galo já canta na baía! Mas é poético. Se fosse rouxinol ou cotovia, como nos livros, mais poético seria. Mas não temos cotovia, temos é galo".

Para o leitor, fica a evidência de que sua morna surgiu, na melodia e na letra, da situação ecológica (ecologia cultural) de um povo de pescadores. Na modelização da morna (por analogia, também do conto que se lê), está a práxis da vida, das condições físicas e sociais do trabalho dos cabo-verdianos.

Configura-se nessas ambiguidades o ideário do grupo da Claridade: uma literatura cabo-verdiana voltada para a maneira de ser de Cabo Verde. Essa forma de cabo-verdianidade estava na consciência possível dos intelectuais do país na década de 30, um horizonte para o qual olhavam de maneira cada vez mais auto­ reflexiva, até poderem proclamar suas "certezas" (título da revista neorrealista Certeza), dos anos 40 em diante.

Após a configuração de sua morna, o guarda Tói encontrou a sua catarse. Estava já despreocupado, quando ouviu um segundo canto de galo. Percebeu então que se tratava de contrabando. Vai repetir, na sequência, o que dizia sempre para todos: "Temos contrabando, temos canja".

Consciência regional e consciência nacional

Entendemos, pois, a cabo-verdianidade - tal como aparece em "Galo cantou na baía" - como uma forma de regionalismo social, com marcas implícitas de autonomia nacional. A nação - a comunidade das pessoas que querem viver em conjunto - associa­ se simbolicamente, nessa narrativa, à marginalidade. E essa vontade de viver em conjunto dos cabo-verdianos efetiva-se, assim, por entre as brechas do Estado que não comporta a nação.

Envolve as personagens de Galo cantou na baía um sentimento de parentesco, que vai além das divisões em classes sociais. Jom Tudinha, por exemplo, entra no contrabando não propriamente para obter vantagens, mas para auxiliar todo um sistema de pessoas que dele dependiam. Esse nos parece o sentido comunitário da identidade nacional.

Em "Galo cantou na baía", aparecem dois produtos típicos de Cabo Verde: a morna e o grogue, ligados simbolicamente à população "marginal" de Mindelo. Esses dois produtos, embora engendrados pela cultura regional/nacional, serão apropriados pelo guarda Tói, ator do Estado. Nessa apropriação, percebe-se uma dissociação entre Estado e nação.

Uma nação pressupõe a existência de um território. Em "Galo cantou na baía" há a reivindicação dessa unidade territorial, insulada pelo Estado colonial. Na existência concreta das personagens dessa narrativa, o sentimento de nacionalidade envolve uma forma de parentesco capaz de aproximar o conjunto da população "marginalizada". Para o próprio guarda Tói, ser guarda era apenas uma questão de profissão.

Implicitamente, as marcas do autor, através do narrador e demais vozes do conto, apontam para uma comunidade com cultura própria, que está nascendo. Uma comunidade em território específico, apesar da insularidade. A comunidade é assim imaginada como uma totalidade de pessoas em comunhão.

Entretanto, não se explicita nessa narrativa um elemento fundamental para a consciência nacional: a ideia de soberania. Trata-se, pois, como indicamos, de uma forma de consciência regional e social. Os valores da nacionalidade estão implícitos e deverão aflorar após a Segunda Guerra Mundial.

Em conclusão: do insulamento ao sonho prospectivo

Amílcar Cabral, em seus "Apontamentos sobre poesia cabo­verdiana" (1978, p. 25-29), reconhece os valores das produções literárias da Claridade, mas pede mais. Pede um texto que aponte para a possibilidade de solução dos problemas que a revista abordou. Talvez Amílcar Cabral ficasse insatisfeito, nesse sentido, com "Galo cantou na baía". Pediria mais, a explicitação do implícito. Nesse nível, entretanto, o conto já seria o "outro" que desejava. No horizonte do conto, como vimos, está implícita a utopia, o sonho prospectivo que também motiva a reflexão do herói da libertação de Cabo Verde e que, no caso da literatura, não tem necessidade de se explicitar.

Em "Galo cantou na baía" há uma "vontade de felicidade", de plenitude, de esperança, que motiva personagens tão diferentes como a professora, Miguel, Guida, Jom Tudinha, Jul'Antone. Até mesmo o guarda Tói, imbuído dessa vontade, vale-se da composição da morna como "válvula de escape", esclarece o narrador. Esses horizontes utópicos também marcam a inclinação do olhar do coro, no final da narrativa. Lá está Salibânia, a dona da taberna que tinha na boca a palavra "coração" e repetia-a a todo momento: "Ai coma mundo é sabe cando morna sabe cai gente no coração". Essa personagem era o pólo conciliador da taberna: aproximava fregueses de todo tipo, desde um guarda Tói até um Griga, que criticava de forma ácida a atitude do guarda, acusando-o de se alimentar da miséria alheia.

Com o "coração", Salibânia aproxima os atores que circulavam na "estrada marginal" - uma comunidade nacional que vivia à margem do Estado. Guarda Tói, nesse sentido, é interseção entre essa nação (mais do que sociedade) e o Estado colonial. Diante das limitações desse Estado, a circulação de bens materiais e culturais de Cabo Verde seria uma espécie de "contrabando" simbólico.

Todos vivem à margem desse Estado, inclusive a "gente branco" referida por Jom Tudinha. Os cabo-verdianos seriam, na perspectiva desse Estado, estrangeiros dentro de seu próprio país.

Há, pois, nesses atores, uma vontade de solidariedade, de felicidade, que interage com a estaticidade dos objetos reais, tensionando-os. É o horizonte para o qual se inclina o olhar de Rafael, personagem de A utopia, de Thomas Morus, quando relata ao autor o sistema republicano dessa ilha, configurada diante das expectativas do imaginário renascentista. A utopia é atualização renascentista do ideário da República de Platão.

Estadista inglês que defendia seus princípios com convicção, Thomas Morus acabou por ser executado a mando de Henrique VIII, após ter sido amigo do rei e participado de seu conselho secreto. Católico, recusou-se a aceitar, quando lorde-chanceler, o divórcio do monarca e seu novo casamento. Foi canonizado pela Igreja e, em 1918, homenageado em Moscou com uma estátua.

Em A utopia, há uma tensão entre a visão idealista do viajante português Rafael e a perspectiva mais experiente de Thomas Morus, que recolhe seu relato oral. É através dessa personagem que se descreve a efetivamente nova república - a da ilha da Utopia - marcada pelo sonho de plenitudes terrestres, de cuja formação participaram náufragos egípcios e romanos que levaram para lá os valores de suas civilizações.

O livro é embalado pelo relevo que dá a dimensão do desejo, do sonho diurno para a frente, move os objetos, as sociedades, as culturas. A concretização da vontade de se atingir uma plenitude social pode ou não ocorrer e nunca será plena. Há um excedente no sonho utópico que sempre vai escapar, como desenvolve Ernst Bloch (1976, p. 216-235).

"Galo cantou na baía", nesse sentido, impregna-se desse impulso. Em suas estruturas, por sobre repertórios europeus e a vivência crioula de Cabo Verde, emerge simbolicamente a imagem neoplatônica do batismo literário da literatura nacional cabo­verdiana. A luz é da Claridade que vem do farol rotativo do Ilhéu dos Pássaros. Quando o guarda Tói dita o poema para o Jack da Inácia, as sílabas de sua composição seguem o ritmo da luz vinda desse farol. Os repertórios, à luz da Claridade, propiciam novas configurações, a partir das séries culturais cabo-verdianas. No horizonte um novo dia, diante das expectativas do guarda Tói, vai surgir sem as nuvens da ausência da amada e da presença da pobreza, que encobrem o sol. Sob esse aspecto, a morna do guarda Tói metaforiza carências mais amplas: a figura da amada pode ser comutada pela imagem da nação, também ausente, encoberta pelo Estado colonial.

E quem canta esse alvorecer é o galo. Como num sonho, ele canta em meio à baía, sob a luz rotativa que vem das alturas do Ilhéu dos Pássaros. Um momento de realização para quem sonha para a frente. Como nas articulações utópicas que envolvem as relações entre Miguel e a professora, também aqui há uma superposição de imagens e, entre elas, uma diferença - um excedente utópico, a esperança como princípio. A nação espartilhada pelo Estado colonial sonha com um novo estado das coisas. É o sonho implícito de uma nação que quer ver-se plena, na comunidade do arquipélago, constituindo um Estado próprio, de forma a integrar em suas estruturas toda uma população colocada à margem. Uma nacionalidade insulada, à margem, também emerge simbolicamente das águas, pela força do espaço textual de Manuel Lopes.

NOTAS

1 Originalmente publicado na obra Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa, organizada pela Professora Dra. Ângela Vaz Leão, em 2004, pela Editora da PUC Minas.
2 Ponto e vírgula, n. 12. Mindelo, nov.dez. 1984. p. 20.
3 Ponto e vírgula, n. 12. Mindelo, nov.dez. 1984. p. 20.

Referências

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i Professor titular da FFLCH da Universidade de São Paulo. Foi adjunto de representante e coordenador da área de Letras e Linguística da CAPES; ex-representante das áreas de Humanas no Conselho Técnico-Científico dessa agência do MEC. Ex-presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada, foi por duas gestões representante dessa área do conhecimento no CNPq. Membro do Conselho Editorial de várias revistas científicas, foi diretor ou coordenador de séries ou coleções editoriais, entre elas, a Princípios e Fundamentos (Editora Ática), Literatura Comentada (Editora Abril), Ponto Futuro e Livre Pensar (Editora SENAC-SP). Foi um dos introdutores dos estudos das Literaturas Africanas no país. Publicou cerca de quarenta títulos de livros (livros de autoria individual, organização de coletâneas críticas e antologias), entre eles A escrita neo-realista (1981); História social da literatura portuguesa (1984); Tempos da Literatura Brasileira (1985); Literatura, história e política (1989); Fronteiras múltiplas, identidades plurais: um ensaio sobre mestiçagem e hibridismo cultural (2002); De vôos e ilhas: literatura e comunitarismos (2003); Literaturas de língua portuguesa: marcos e marcas - Portugal (2007). Entre as coletâneas que organizou ou co-organizou, podem ser mencionadas Ecos do Brasil: Eça de Queirós, leituras brasileiras e portuguesas (2000); Personae: grandes personagens da literatura brasileira (2001); Incertas relações: Brasil e Portugal no século XX (2003); Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo & outras misturas (2004); Portos flutuantes: trânsitos ibero-afro-americanos (2004); Moderno de nascença: figurações críticas do Brasil (2006); Literatura Comparada e relações comunitárias, hoje (2012); Estudos comparados: teoria, crítica e metodologia (2014); e Literatura e memória política (2014), Um mundo coberto de jovens (2016), Graciliano Ramos: muros sociais e aberturas artísticas (2017).

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