Uma basofaria crioula: considerações sobre as narrativas O meu poeta, A morte do meu poeta, de Germano Almeida e Biografia do língua, de Mário Lúcio Sousa

 

Mariana Andrade Gomes

Introdução

Uma das propostas da presente análise2 é compreender as formas pelas quais as heranças colonialistas afetaram e afetam a auto-representação da identidade nacional através da linguagem cômica presente em obras literárias, com ênfase no caso cabo-verdiano, considerando estarem imbricados, nesses textos, os violentos processos de apagamento e silenciamento exercidos sobre os componentes negros das ilhas. A fundamentação literária baseia-se, dentre outros textos, em produções cômicas cabo-verdianas, a exemplo da narrativa juvenil Cinco balas contra a América de Jorge Araújo (2008), mindelense da Ilha de São Vicente; o conto “O Visto” de Ondina Ferreira, presente no livro intitulado Contos com Lavas (2010), escrito em e sobre a Ilha do Fogo, o romance O eleito do sol, de Arménio Vieira (1992) um badiu da Praia; e o conto “Markito com K” escrito por FilintoElísio, também natural de Praia na Ilha de Santiago, publicado na segunda e última edição oficial do periódico Sopinha de Alfabeto em 1987, além da análise de crônicas, textos de opinião e entrevistas concedidas por escritoras(es) de Cabo Verde, com enfoque nos dois autores trabalhados neste texto. Assim, procurei estabelecer leituras que demarquem resistências ou concordâncias à opressão epistemológica, cultural, social e política eurocêntrica e ocidentalocêntrica – entendendo estes procedimentos como distintos dos que conformaram a experiência colonial no Brasil, mas não completamente distantes das nossas conjunturas, embora estas ligações não sejam explicitamente colocadas nestas breves considerações.3

É nessa perspectiva que a análise do riso me instiga: como a linguagem cômica consegue promover o silenciamento ou o grito das questões negroafricanas nos textos? De que formas essas identidades são reivindicadas ou rechaçadas pelo riso?

Para isso, trago para esta reflexão uma sucinta análise comparativa entre as narrativas O Meu Poeta ([1990], 1992) e A Morte do Meu Poeta (1998), de Germano Almeida, e Biografia do Língua (2015), de Mário Lúcio Sousa, de modo a tentar compreender como esses textos apresentam projetos político literários de seus autores a partir de questões relacionadas à raça, classe e gênero.

Contextualização de escritores e suas obras

Ambos os escritores e suas respectivas obras obtiveram grande repercussão no cenário nacional e internacional e, conquanto não sejam cronológica ou tematicamente próximas, a representação de questões relacionadas a Cabo Verde são bem condizentes com a proposta de discussão de posicionamentos político-ideológicos destes intelectuais, de modo que o cotejo dos romances e dastrajectóriasdestesautoresapresentampossibilidadesinterpretativas bastante enriquecedoras, seja sobre o papel dos intelectuais no panorama cabo-verdiano, seja no impacto ideológico que seus livros promovem.

Seguindo a ordem alfabética de apresentação dos autores, Germano da Cruz Almeida (Germano Almeida) nasceu na Ilha da Boa Vista em 31 de julho de 1945. Foi para Portugal para se formar em Direito pela Universidade de Lisboa, exercendo essa profissão na cidade do Mindelo na Ilha de São Vicente desde 1979. Sua estréia como contista teve início na década de 1980 na revista Ponto & Vírgula (1983-1987), na qual também era colaborador junto aos fundadores Leão Lopes e Rui Figueiredo. Nesse periódico utilizava o pseudônimo de Romualdo Cruz e Filinto Barros.

Atuou como deputado pelo Movimento para a Democracia (MpD) em 1991. Desvinculou-se do partido por incongruências após o mandato e, posteriormente, ocupou o cargo de conselheiro da República em 2004, nomeado pelo então presidente Pedro Pires, do PAICV,4 além de ser embaixador cultural do país e procurador da República.

No tocante ao corpus literário discutido neste texto, as obras de Germano Almeida, O Meu Poeta (1992) e A Morte do Meu Poeta (1998), apresentam um “retrato satírico” (Tutikian 2006: 65) tanto da pequena burguesia mindelense (Ilha de São Vicente), quanto dos políticos e produtores literários do período pós-independência em Cabo Verde nos contextos do partido único e posterior pluripartidarismo, abordando as expectativas e as frustrações que marcaram estes momentos políticos fulcrais para a história do país.

Já o texto Biografia do Língua (2015), de Mário Lúcio Sousa, narra a trajetória de um menino que nasceu escravizado e falou suas primeiras palavras aos sete meses de vida. Desse dia em diante o personagem vive inconformado com sua condição e com os maus tratos aos quais ele e suas (seus) companheiras(os) de cativeiro são submetidas(os), o que o leva a perseguir a liberdade em todos os aspectos de sua vida, inclusive afetivamente. Quem conta essa peculiar biografia é um condenado à morte cujo último desejo é justamente não deixar que essa história morra com ele e transforma o pelotão de fuzilamento, bem como as (os) demais ouvintes que posteriormente chegam, numa comunidade utópica unida pelo desejo de ouvir essa narrativa.

Assim, apresentando o segundo autor analisado; Lúcio Matias de Sousa Mendes, nome de registro de Mário Lúcio Sousa, nasceu num pequeno vilarejo no Tarrafal, localizado na Ilha de Santiago em Cabo Verde, no dia 21 de outubro de 1964. Segundo relato fornecido pelo autor, aos cinco anos já ensaiava a prática da escrita copiando os rótulos de comida e quando tinha oito anos escrevia cartas para os esposos emigrados. Por ter aprendido a ler precocemente, sua família pediu auxílio ao exército cabo-verdiano para complementar seus estudos secundários (Sousa & Freitas 2010). Foi enviado para o quartel do Tarrafal, antiga colônia penal criada pelo Estado Novo Português em 1936 e extinta em 1954, depois reativada como Campo de Concentração para independentistas africanos em 1961. Suas atividades somente foram encerradas em 1974.

Artista plástico, cantor, compositor, multi-instrumentista, deputado, dramaturgo, Embaixador Cultural, ex-Ministro da Cultura, formado em Direito, jornalista, escritor de prosa e poesia; Mário Lúcio Sousa transita por vários espaços da criação artística e política de seu país. Embora atue na esfera público-administrativa, não costuma explicitar seus vínculos ideológicos e partidário sem declarações e textos. Sua maior reivindicação atualmente é a propagação do que intitula como “crioulização universal”5 – bandeira levantada em palestras, entrevistas, músicas e na sua mais recente narrativa longa, Biografia do Língua (2015) – objeto de análise deste texto.

Embora o corpus literário não tenha uma conexão temática e tampouco cronológica, ficcional e não ficcionalmente, todos os romances possuem a linguagem cômica como discurso problematizador da realidade histórica de Cabo Verde, seja através das críticas aos regimes políticos e da sociedade contemporânea no país, seja por seu passado na escravização e na colonização.

Daí a motivação para a escolha desses livros: sua potência crítica através do riso.

Assim, proponho a seguinte questão: como o discurso cômico é operacionalizado nas longas narrativas O Meu Poeta (1992) e A Morte do Meu Poeta (1998), de Germano Almeida, e Biografia do Língua (2015), de Mário Lúcio Sousa, de modo a engendrar problematizações políticas e ideológicas acerca das questões étnicas, raciais, de gênero e de classe contidas, prioritariamente, nessas obras?

Projetos político-literários: rupturas e continuidades, semelhanças e divergências

Três narrativas com enfoque histórico. Dois escritores, intelectuais, deputados e ocupantes de espaços de poder na esfera administrativa de seu país. Duas formas diferentes, mas não opostas, de valorizar Cabo Verde. Dois projetos literários e estéticos distintos, mas de semelhante projeção e êxito. Ambos utilizam a linguagem cômica na abordagem de temas tabu como a escravização e o panorama político-partidário das ilhas.

Em suas entrevistas, Germano Almeida explicita constantemente seu uso estratégico da ironia e do humor enquanto ferramentas de potencialização de suas críticas (Almeida & Fortes 2015; Almeida &Montezinho 2014). Já, quando interpelado sobre o tema, Mário Lúcio Sousa afirma não fazer desse tipo de linguagem um recurso problematizador, mas sim representar um reflexo, em suas obras, de seu estado de espírito (Sousa & Gomes 2018).

Esses dois posicionamentos são indicadores de como a utilização do riso, bem como sua interpretação, não apresenta um consenso tanto entre as (os) produtoras (es) de obras estéticas quanto entre seu público. As duas concepções demonstram ora a interpretação da comicidade como uma maneira de reforçar as análises e posicionamentos sobre determinados aspectos do cotidiano e dessa feita enquanto imbricados e ideologicamente situados, ora a elaboração/leitura dos enunciados risíveis como piadas/ brincadeiras sem conotações e implicações críticas, ou ainda o descolam de seu aspecto político limitando-o a um temperamento/humor.

A última postura é questionável porque desresponsabiliza e menospreza o impacto/reverberação política e social do riso em sua potencial operacionalização de discursos opressores e transgressores, que não necessariamente são recentes ou autorais – por isso não compreende o cômico somente como divulgador, mas também em sua função de eco, intermediação, propagação. Esse não comprometimento é ainda uma forma de buscar uma maneira parcial de não assumir determinadas posições e/ou vincular-se a certas ideologias.

Recorrer ao riso para elaborar uma perspectiva própria/autoral e ficcional de períodos históricos também representa/acarreta se posicionar diante de determinadas questões referentes ao acontecimento retratado, seja através da parodização/satirização da descrição e tratamento desses aspectos e/ou sujeitas (os), seja por meio do apagamento, silenciamento e esvaziamento de demandas e/ou personagens. No caso das três narrativas analisadas, o cômico indicia, além das posturas dos dois autores, suas vinculações com movimentos literários anteriores assumidas tanto em suas entrevistas/ declarações quanto nas abordagens que trazem em seus textos.

A valorização da cultura cabo-verdiana reivindicada por Germano Almeida em O Meu Poeta (1992) e A Morte do Meu Poeta (1998) enquadra-se nos postulados de autores claridosos, especialmente no projeto assumido por Baltasar Lopes, de tratamento de temas nacionais motivado pelo desejo de reflexão sobre as mazelas que acometem as ilhas e suas (seus) habitantes, bem como se insere na busca/consolidação de uma identidade cultural do país. O cenário, personagens e temáticas possuem como principal norteador as questões de Cabo Verde, muitas vezes colocadas em cotejo com outros países dos quais é retratada enquanto ‘singularmente superior’. O sentimento nacionalista assim encontra-se significativamente expresso/explícito nas obras.

Enquanto o autor lança mão de críticas negativas relacionadas às posturas como a corrupção e o oportunismo dos políticos,6 responsabilizando-os pelos maus caminhos que Cabo Verde vem trilhando, também elogia as maneiras pelas quais as (os) cabo-verdianas (os) driblam as adversidades com argúcia e comicidade, numa atitude/conduta definida pelo escritor como “basófia7/basofaria nacional”.

Ao passo que a superação dos problemas geralmente é atingida por meio de esforço e resiliência, nas duas narrativas de Germano Almeida, os objetivos são alcançados através da basofaria. Esse tipo de postura representa as formas não convencionais, e por vezes desonestas, de conseguir obter êxito, principalmente no que se refere ao cenário político das ilhas. Um sujeito ficcional é emblemático para essa leitura: o protagonista Poeta. Mesmo tendo um final trágico vitimado por um ataque de tubarão que o levou ao óbito, o personagem conseguiu uma carreira política meteórica, chegando à presidência do país graças ao seu oportunismo, e sua morte o tornou um “mártir da democracia”, dando-lhe ainda mais projeção e continuidade de sua imagem positiva – que logo seria abalada caso continuasse no cargo devido ao seu total despreparo para assumir essa função.

No que se refere à descrição desse personagem, a ausência da explicitação de seu fenótipo chama atenção. Em alguns momentos ele é referido como portador de cabelos crespos, denominados como “vasta carapinha”, em outro ele é comparado com o poeta português Ary dos Santos na versão “em preto”. É interessante ser equiparado logo a um escritor português; seria uma sinalização de sua mestiçagem? A aparência portuguesa com traços negros?

Nas duas obras as (os) personagens não são apontadas (os) por sua fisionomia, com exceção dessa sutil referência ao Poeta e na depreciativa descrição de sua esposa Isba, nascida em Guiné-Bissau. Enquanto negra e estrangeira, a personagem é constantemente aviltada, numa postura xenofóbica e racista endossada pelo texto, além das freqüentes representações e posicionamentos machistas e misóginos presentes tanto em relação à bissau-guineense quanto às outras figuras femininas envolvidas nas tramas.

Neste sentido, Germano Almeida não se distancia do projeto claridoso de engrandecimento de Cabo Verde em detrimento de uma representação negativa de depreciação e desconsideração não somente de outros países africanos, mas também do apagamento e silenciamento das contribuições, trânsitos e demais legados que esses Estados subsidiaram na/para a configuração/formação do arquipélago e seu povo. Diferentemente, mas não muito discrepante, situa-se a narrativa de Mário Lúcio Sousa.

Mesmo não reivindicando a herança claridosa, como o faz Germano Almeida, Mário Lúcio ainda promove certas continuidades, principalmente no que se refere ao “apagamento seletivo” dos componentes africanos e na abordagem pejorativa das personagens femininas. Ambos promovem a identidade nacional cabo-verdiana suplantando e esvaziando outras culturas e demandas de igualdade/equiparação de gênero, raça e classe, em concordância e continuação do projeto dos intelectuais fundadores da Claridade. Assim como Almeida, Sousa utiliza um momento histórico – no seu caso, a escravização –, através da abordagem cômica, até mesmo recorrendo ao uso de palavrões,8 para assinalar suas perspectivas sobre as questões situadas nesse período e que, de certa maneira, se enquadram em suas elaborações acerca da “crioulização”.

De acordo com a sua teorização, a “crioulização” é um fenômeno mundial, mas que possui Cabo Verde como parâmetro de consolidação das boas relações e pioneiro nos contatos entre culturas e grupos étnicos que permitiram o surgimento das (os) primeiras (os) crioulas (os). A valorização desse utópico e harmônico encontro de povos que propicia a todas(os) o reconhecimento e auto identificação enquanto crioula(o) tem nas ilhas uma dita singularidade, próxima ao que estabelece a “mestiçagem” erigida pelos escritores da Claridade.

Assim como esses intelectuais, Sousa esvazia e apaga em sua reflexão as violências e demais opressões imbricadas nos processos envolvidos nesses contatos entre culturas como, por exemplo, as relações sexuais não consentidas – estupros – entre portugueses e mulheres africanas negras escravizadas. Ainda nessa leitura de semelhanças com o projeto claridoso, o escritor mesmo abordando temáticas relacionadas à escravização e raça em Biografia do Língua (2015), apresenta em algumas de suas afirmações de forma ambígua, quando não depreciativa, no que concerne à contribuição/ presença de povos africanos, seja de forma a reconhecer esses legados, seja como uma maneira de legitimar os atos de resistência e dignidade das pessoas submetidas a esse regime desumano, porém, apenas singularizando as qualidades e competências em um único personagem – o protagonista – que demonstra comportamentos de insubmissão e coragem.

Neste sentido, assim como ocorre em Germano Almeida, o protagonista de Mário Lúcio recorre ao riso para apagar e silenciar as (os) outras (os) personagens negras (os) em situação de escravização, numa atitude opressora semelhante ao que efetua o Poeta de Almeida. É por meio do enaltecimento de suas características singulares de indignação diante de sua subjugação enquanto escravizado que Língua/Esteban utiliza o cômico em sua capacidade fortalecedora para questionar e combater as opressões que sofre, mas não usa dessa mesma potência para colaborar e empoderar suas (seus) semelhantes, quando não recorre a esses expedientes para ridicularizar e deslegitimar as mulheres com as quais se relaciona.

É importante salientar também que, apesar de Cabo Verde ter uma emblemática experiência com a escravização, Mário Lúcio se vale de um relato ocorrido em Cuba, inclusive não extrapolando ficcionalmente os elementos da trama para o contexto cabo-verdiano. Provavelmente, tal artifício se enquadra no seu projeto de “crioulização” que compreende/ garante uma espécie de apropriação cultural, numa perspectiva de homogeneização, na qual é possível abarcar, abordar e estender o comércio, sequestro e trabalhos forçados de pessoas sob a perspectiva cubana para o que ocorreu na conjuntura do arquipélago africano.

Sob essa perspectiva, sua aproximação entre as duas conjunturas, bem como a tentativa de extrapolar tal circunstância descrevendo-a como universal, acaba por invalidar as particularidades/idiossincrasias de cada caso, de maneira perigosamente homogeneizadora. Sob esse prisma também cabe a indagação: por que Cuba? Por que não um outro país africano? Se a questão for a especificidade de um território arquipelágico ou de ilha, São Tomé e Príncipe também se enquadraria nessa proposta, para citar apenas um exemplo de país localizado em África colonizado por Portugal. Ou ainda endossar a análise desse parágrafo: Por que não Cabo Verde?

Ainda sobre os projetos dos escritores Germano Almeida e Mário Lúcio Sousa, um aspecto apresenta significativa dissonância: as perspectivas dos autores sobre a universalização da literatura. Enquanto que Germano Almeida prefere partir das especificidades de Cabo Verde para atingir outras culturas, e mesmo promovendo um enaltecimento nacionalista em detrimento de outros países, priorizando seu público-leitor local, Mário Lúcio parte também do arquipélago – até, possivelmente, motivado pelos cargos diplomáticos de embaixador cultural que exerce semelhante a Almeida –, mas procura abarcar de modo mais amplo seu escopo de referências vislumbrando o mercado de leitoras (es) estrangeiras (os). Entretanto, ambos gerenciam – do ponto de vista editorial e literário/estético – muito estrategicamente os conteúdos de suas obras de acordo com a recepção nacional e internacional.

Neste sentido, nota-se ainda uma maior circulação de Sousa entre os mercados artísticos em África do que ocorre com Germano Almeida, embora Mário Lúcio circule predominantemente nesses países com seus projetos musicais, e Almeida já tenha declarado em entrevista que se interessa pelo estreitamento editorial entre Cabo Verde e Angola. Todavia, nas três narrativas analisadas essa busca por uma aproximação com os demais territórios africanos não é observada.

Outro ponto de discordância, mas não necessariamente de confronto, é a oficialização da língua crioula em Cabo Verde, tendo em Sousa um grande defensor, ao passo que Almeida apresenta maior relutância em aceitar tal medida. Embora Mário Lúcio em correspondência virtual (Sousa & Gomes 2018) reconheça em Germano Almeida uma escrita crioula, enquanto que ele prefere a utilização de um “português arcaico”.

Pontuo, ainda, que tanto Almeida quanto Sousa utilizam o riso para promover o apagamento e silenciamento das questões negro-africanas em seus textos. Seja por meio da já referida xenofobia apresentada por Germano Almeida em O Meu Poeta (1992) e A Morte do Meu Poeta (1998), principalmente, direcionada à Guiné-Bissau e suas (seus) habitantes e do racismo na descrição ou na ausência da explicitação dos fenótipos, seja através da supressão efetuada por Mário Lúcio Sousa em Biografia do Língua (2015), ao utilizar um exemplo e restringir suas referências à escravização em Cuba ao invés de se referir a um país africano e, embora evidencie a fisionomia e pertencimento étnico-racial das (os) personagens, a caracterização do tom de pele e demais tipos físicos negros é colocada de maneira dúbia, possibilitando interpretações de uma ridicularização da pessoa negra.

Não obstante, tanto no discurso da “crioulização” de Mário Lúcio quanto no silenciamento do fenótipo realizado por Germano Almeida ambos os autores efetuam o que estabelece José Carlos Gomes dos Anjos (2004: 277) acerca do apagamento ou esvaziamento do pertencimento físico étnico-racial – seja de brancas (os) ou negras (os) – como uma forma de homogeneização social e de classe por meio do processo de mestiçagem. Essa concepção é mais evidenciada nas produções e declarações de Almeida, bem como nas duas obras aqui discutidas, embora Sousa não se distancie dessa perspectiva ao elaborar uma teorização cuja base apregoa justamente o fim das heterogeneidades e que, de certa forma, é colocada em Biografia do Língua (2015) na utópica comunidade que se forma em volta do Condenado.

Todavia, o desaparecimento/anulação dos conflitos de raça dentro da lógica mestiça em Germano Almeida não elimina os confrontos de classe. Essa discussão é bastante presente no seu texto – diferente do que ocorre em Mário Lúcio – como um dos principais suportes de suas críticas. Desse modo, o teor classista das produções almeidianas se observa nas observações depreciativas que o escritor assinala acerca da falta de consciência política crítica que os estratos em situação de vulnerabilidade econômica e social supostamente possuem, necessitando assim de uma mediação e interferência por parte de uma elite intelectual que seja capaz de liderar e comandar o país. Já Sousa chega a questionar as circunstâncias que sucederam após a declaração da abolição da escravização, as quais não modificaram estruturalmente as condições financeiras, políticas, trabalhistas e sociais das pessoas libertas. Porém, não vai muito adiante com a sua análise, ainda assinalando a inércia e passividade que condicionou essas (es) sujeitas (os) a não buscarem/aventurarem-se na mobilização pelas melhorias de vida.

Outro ponto de concordância das três narrativas se refere às representações das personagens femininas. No que concerne, inicialmente, aos relacionamentos afetivos – pois são somente nesses lugares sociais que as mulheres são colocadas nos textos –, enquanto que o protagonista Meu Poeta de Germano Almeida possui um casamento estável e monogâmico com sua esposa Isba, o personagem central da trama de Mário Lúcio, Língua/Esteban, apresenta uma rotatividade questionável de envolvimentos; a maioria de ordem sexual e apenas o último pode ser compreendido como afetivo, mas mesmo assim nenhuma dessas figuras femininas recebe um nome próprio, apenas sendo denominadas por suas características físicas ou ainda com designação de objetos, como no caso de Relíquia.

Sob esse aspeto, mesmo que o protagonista seja evocado na narrativa de Sousa a maior parte do tempo porseu nome de casa/apelido Língua, ele possui nome e sobrenome, Esteban Montejo Mera, já as mulheres, com exceção de sua mãe Emília, não apresentam outro nome senão o apelido que o personagem lhes confere. Uma objetificação iniciada pela não nomeação torna-se ainda mais agravada pela valorização dos aspectos físicos das personagens e pela negação, silenciamento e apagamento de suas subjetividades.

Através do riso as figuras femininas são depreciadas e ridicularizadas, principalmente quando procuram manter Língua em seus relacionamentos. A coadjuvância e descarte das mulheres, muito mais do que sinalizar um espírito livre e desbravador do protagonista como pretende a narrativa, indiciam o caráter machista e misógino do texto ao não conceder voz, protagonismo, dignidade e qualidades a essas personagens.

A tônica misógina e machista, encoberta pela linguagem risível, também está presente nas duas produções de Germano Almeida. O longo excerto da descrição do estupro cometido por Vasco a Elsa em O Meu Poeta (1992) é a demonstração do domínio de homens sobre mulheres e da situação de vulnerabilidade em que essas se encontram. Justificado como um ato impulsivo motivado pelo ciúme, tal violência não é criticada, tampouco o personagem é punido criminalmente. A impunidade nesse caso possibilita a naturalização e conivência dessa forma de subjugar e punir a figura feminina, vista como uma posse masculina.

A leitura dessa propriedade sobre o corpo feminino também é endossada pelas declarações e posturas do Secretário ao condenar Isba por sua não virgindade, caracterizando tal aspecto como uma ofensa não só a seu marido, mas também a ele – que não possui nenhum relacionamento afetivo socialmente declarado com a personagem. O controle do corpo da personagem se estende ao Assistente, num associativismo pela ‘causa’ masculina com o Poeta e não pelo vínculo afetivo que ‘justificaria’ essa reivindicação, e também às pessoas que a julgam como adúltera numa conjunção de xenofobia, racismo e machismo. Por passar longos períodos fora de casa, organizando e promovendo a carreira política do marido, a interpretação que se faz é que os favorecimentos ocasionados por esses agenciamentos se devem às negociações sexuais, sem sequer cogitar que se trate das capacidades articuladoras da personagem.

Ainda, um aspecto significativo para a compreensão das produções e demais articulações desses autores é o contacto/conhecimento que ambos possuem seja do ponto de vista social, seja da perspectiva literária. Nas declarações que concedeu a mim em correspondência virtual, Sousa também reafirma esse convívio:

Germano Almeida é um amigo-referência, sempre correto como a gente da Boa Vista, falando a rir, sem maldade, e muito coerente. Tanto que, sempre que o visito, ele abre uma garrafa de Barca Velha, o que é um rombo na adega e nos bolsos, mas ele é assim. Nele encontrei várias soluções literárias para uma escrita crioula (Sousa; Gomes, 2018).

Desse modo, tanto a convivência social quanto as trocas literárias são explicitadas. Não afirmo, contudo, que esse tipo de proximidade acarrete uma interferência direta entre as produções, mas sim que os escritores compartilham ideais e conhecimento sobre os textos um do outro. Por mais que não sejam compreendidos como um grupo semelhante aos claridosos ou nativistas, o contato entre esses intelectuais, principalmente, pelos cargos públicos de deputados, ministro e conselheiro que exerceram possibilita interpretações acerca dos diálogos e articulações que possuem em seus projetos políticos e artísticos, como indicia a última frase de Mário Lúcio sobre a referência dos textos de Germano Almeida para a elaboração estética de sua escrita.

Concluindo, mas não finalizando

Este texto procurou evidenciar através das análises de narrativas caboverdianas contemporâneas as maneiras com as quais o riso possui implicações e imbricações com posicionamentos políticos-ideológicos. A comicidade enquanto reproduzida/elaborada inconscientemente – quase seguindo a lógica da geração espontânea, que surge do nada –, sem o recurso a estruturas, estratégias, mecanismos para alcançar seu efeito risível ou ainda que não reverbera ou não possui sentidos/significados, dentro do que estabelece a premissa “é apenas uma piada”, são argumentos que não se sustentam. As (os) sujeitas (os) envolvidas (os), os contextos, os alvos da derrisão ou da ironia, até mesmo o momento em que o enunciado cômico é proferido, dentre outros aspectos, contribuem para a interpretação desse texto.

Assim como Cottom (1989), o meu horizonte analítico é político. Não acredito que o riso seja colocado numa produção estética, ou mesmo no discurso cotidiano, de modo aleatório. Por mais enfática que tenha sido nesse texto, procurei demonstrar as estruturas e os posicionamentos implicados nos enunciados dos textos, explicitando que são recursos estratégicos e alinhados com as ideologias legitimadas/reivindicadas pelos escritores nas suas entrevistas e declarações públicas. Também tentei enquadrar os ideais expostos nos projetos políticos e estéticos desses intelectuais, bem como vinculá-los a ideologias e teorizações de outras (os) autoras (es) cabo-verdianas (os).

As críticas contidas neste texto muito mais do que promover uma condenação do riso, procuram evidenciar seu potencial transgressor, mas que muitas vezes é utilizado ainda como forma de opressão, silenciamento, apagamento e esvaziamento das demandas por equidade de gênero, raça e classe. Ao invés dessa perpetuação da comicidade subalternizante, valorizo e apregoo um riso que conscientize, fortaleça, empodere, questione o poder estabelecido e incremente a nossa capacidade crítica de enfrentamento. Por um riso descolonizador, negro, feminino e proletário.

 

Notas

1- O artigo foi publicado, em Africa Development, Volume XLVI, No. 2, 2021, pp. 93-106.

2-O presente texto é um excerto da minha tese intitulada Escritas cômicas caboverdianas dos séculos XX e XXI: das narrativas de mestiçagem ao riso político em Germano Almeida e Mário Lúcio Sousa, defendida em 2018, no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA.

3-Mesmo porque tal empreitada já foi fertilmente efetivada por Ricardo Silva Ramos de Souza (2014) [Ricardo Riso], na sua dissertação intitulada Afirmando outras versões da história...Memória e identidade nas poéticas de Éle Semog e José Luis Hopffer Almada (2014) e no artigo “Enegrecendo Pasárgada: o protagonismo negro nas relações literárias Brasil – Cabo Verde” (2015). Ressalto ainda que tal campo não foi esgotado (nunca será) e ainda carecemos de pesquisas com esta temática enfatizando as produções prosaísticas.

4-Conforme é relatado pelo Boletim da República de Cabo Verde. Decreto Presidencial n. 1/2004.

5-Cf. Sousa &Leitão, eds., 2016.

6-A figura feminina não é citada em relação aos personagens envolvidos em cargos administrativos, mesmo que Isba/Dura, a esposa do Poeta, seja responsável pelos contatos, favorecimentos e articulações que o protagonista recebe na trama.

7-“Bazófia” termo português, grafado também como “basófia”, cujo significado expressa fanfarronice, pretensão e arrogância em um tom jocoso é uma palavra bastante utilizada, mais enfaticamente em A Morte do Meu Poeta (1998) do que em O Meu Poeta (1992), para representar a ousadia dos expedientes demagógicos empregados pelos “políticos nacionais” como forma de driblar as regras.

8-A exemplo do que defende Germano Almeida como um dos fatores distintivos entre a sua escrita e as produções anteriores, destacando o uso de palavrões, Mário Lúcio também recorre a essa linguagem na sua narrativa: “Se este marmanjo está a dar trabalho, caguem para a história, limpem-lhe o sebo, polvilhem-no de balas e calem-no, caralho” (Sousa 2015: 67).

Referências

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* Mariana Andrade Gomes é Doutora do Programa de Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (PPGLitCult). Desenvolve a pesquisa temporariamente intitulada “O riso político na ficção de Cabo Verde pós- independência”, financiada pela Fundação de amparo à pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB.

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