Claridade Revista:
os reis Dom Sebastião e Momo em Cabo Verde*


Norma Sueli Rosa Lima**

 

Narrativas sobre ilhas costumeiramente traziam elementos imaginários manipulados por ideologias de poder, tanto no ambiente da expansão marítima, que colonizou terras e povos, quanto no dos anos que a sucederam. O clássico Introdução à literatura fantástica ensina que chegar ao coração do fantástico é entender um acontecimento impossível de ser explicado pelas leis do nosso mundo tão familiar... (TODOROV, 1981).

As crônicas dos viajantes dos séculos XV-XVI, tanto as que trouxeram as Imagens da África, organizadas depois em livro por Alberto da Costa e Silva (2012) ou mesmo os relatos recolhidos (1982) de viajantes que visitaram o Brasil, ainda que adjetivadas como históricas estão repletas de construções ideológicas de fatos inventivos considerados exóticos e ampliados a fim de provocar o medo impeditivo que rivais se lançassem na busca por terras novas. A pretensa arrumação textual buscava não somente informar a El Rey sobre a “nova” terra “descoberta”, mas também transmitir uma recepção, no caso da África, que alimentasse a ideia de um mundo amaldiçoado:

Restaria, por outro lado, investigar como a maldição de Cam passou a ser atribuída a todos os africanos quando a expansão ultramarina portuguesa fez ressurgir a figura do escravo a partir do século XV. Trata-se de uma pesquisa em torno da arqueologia das ideias a que apenas se pode acenar em um ensaio sobre a poesia social do nosso Castro Alves. O fato é que se consumou em plena cultura moderna a explicação do escravismo como resultado de uma culpa exemplarmente punida pelo patriarca salvo do dilúvio para perpetuar a espécie humana. A referência à sina de Cam circulou reiteradamente nos séculos XVI, XVII e XVIII, quando a teologia católica ou protestante se viu confrontada com a generalização do trabalho forçado nas economias coloniais. O velho mito serviu então ao novo pensamento mercantil, que o alegava para justificar o tráfico negreiro, e ao discurso salvacionista, que via na escravidão um meio de catequizar populações então ao antes entregues ao fetichismo ou ao domínio do Islão. Mercadores e ideólogos religiosos do sistema conceberam o pecado de Cam e a sua punição como o evento fundador de uma situação imutável.
(BOSI, 1992, p. 241-2)

As crônicas da “descoberta” descreviam a África envolta na “maldição”, ao passo que os relatos sobre o Brasil o situavam como Eldorado perdido. Os registros dos feitos heroicos (na ótica eurocêntrica) inspiraram crônicas, poemas épicos e relatos de naufrágios; estes últimos, descritos em tom testemunhal, forneceram aos leitores uma visão terrível e apaixonante da aventura trágico-marítima, com 

o espetáculo dos mastros arrancados, dos cascos destruídos pela tempestade, o pavor e os gritos dos náufragos, a engenhosidade dos homens que tentam se salvar, e depois a longa e arriscada marcha dos sobreviventes pelas terras desoladas da África, os ataques dos negros e das feras, a fome e a sede. (LANCIANI, 1992, p. 70)

A partir da busca por novos mundos surgiu a espera por um mundo novo, lugar próprio da idealização. A perspectiva mercantilista, a qual movimentava caravelas, era também inspirada na utopia filosófica de Thomas Morus (1993), cuja obra intitulada Utopia se originou em relato feito pelo viajante Raphael Hythlodaeus sobre uma ilha perdida em algum lugar do mundo, Amaurotum, “cidade do sonho”, “cidade das nuvens”, “castelo no ar” (TEIXEIRA COELHO, 1991, p. 30).

No livro de Morus, a figura do rei Henrique VIII – que mandou decapitar o autor por considerar que ele o criticava – potencializa a ideia da tirania, no contexto inglês. Ao estabelecer elo com o sistema absolutista português, que impôs a opressão em suas colônias africanas sem que a mudança da forma de governo (monarquia para presidencialista) a tenha alterado, me concentro na perspectiva da simbologia do rei enquanto óbvia projeção de poder, mas para pensá-la também na forma de rasura, a qual foi feita por dois dos fundadores da Revista de vanguarda Claridade: Osvaldo Alcântara (Baltasar Lopes) e Jorge Barbosa.

O exame da literatura cabo-verdiana na busca de sua cabo-verdianidade tem como um dos primeiros movimentos o da própria criação da Claridade, em 1936, que nasce também a partir do diálogo estabelecido com o Modernismo Brasileiro. Essa busca identitária vai de encontro aos discursos que vestiram o arquipélago, como o do seu próprio batismo em 1460, cujo nome foi inspirado na constatação equivocada e irônica de que aquela região, ao contrário das desérticas até então encontradas, era recoberta de vegetação (VIEIRA, 1992, p. 48-49). Impulsionado pelo ideal mercantilista, eivado de mística e mito, o colonizador português teve, de início, uma visão otimista dos aspectos climáticos do Arquipélago.

Se a chegada dos portugueses no Brasil se deu em um primeiro relato de Pero Vaz de Caminha (1997) perceptivo da “Ilha de Vera Cruz” (depois, “Terra de Santa Cruz” e Brasil) como a própria materialização do paraíso, essa descrição estava sintonizada com o ideário dos descobrimentos que associavam a ilha ao mito da bem-aventurança e à aventura da masculinidade épica, pois a conquista daquelas terras só poderia ocorrer após inúmeras situações de perigo.

É preciso recordar que durante séculos o Atlântico fora considerado incapaz de ser percorrido por embarcações, embora relatos anteriores alertassem para as trocas entre as culturas muito antes do oficialmente denominado Ciclo das Grandes Navegações, como verificou Elisa Larkin Nascimento (2008) na interessante coleção Sankofa – nascida de um Projeto de Extensão desenvolvido na UERJ. Só a partir do século XV o Oceano passou a se configurar como ligação entre os continentes, principal centro de interesse econômico europeu, e para as civilizações clássicas, massa de água a refletir a dicotomia entre o bem e o mal (HOLANDA, 1999, p. 20).

Enquanto no Brasil a natureza se ergueu, desde a Crônica de Caminha, como símbolo do paradisíaco e do deslumbrante, as terras de Cabo Verde, após o momento inicial de consagração quando foram percebidas como verdes, tiveram referências alteradas, principalmente após a ocupação delas pelos escravizados originários da Guiné Bissau:

Peor fue lo que sucedió en Cabo Verde, São Tomé y Príncipe, donde el establecimiento de colonos fue prejudicado por las condiciones difíciles des clima. Em realidad el clima se presentó como la principal traba a la instalación de colonos europeos, atrasando el processo de poblamiento y valorización económica. Son numerosos los testimonios que denuncian las dificultades allí sentidos por los europeos.(...) eran primero tan sanas que las gentes que allí iban sanaban. Pero ahora [ en 1506] son tan enfermizas que la gente sana enferma. Creo que después de que los negros llegaron a ellas corrompieron el aire como en su tierra, que es enfermiza. (VIEIRA, 1992, p. 62)

Diante de discursos como o que Alberto Vieira transcreveu no livro Portugal y las islas del Atlantico (1992) supracitado, os primeiros literatos se mobilizaram a refletir sobre as ilhas de um outro ponto de vista quando a insularidade atlântica assume interpretação mítica, fundada no que Manuel Ferreira denominou de arquitexto hesperitano (1985). Os pré-claridosos José Lopes e Pedro Cardoso corroboraram a associação ilha-paraíso quando fundaram a origem do Arquipélago no mito hesperitano (RIBEIRO, 1992) na primeira tentativa de se estabelecer uma cosmogonia crioula, eles relêem a Atlântida de Platão para entenderem as ilhas de Cabo Verde como do misterioso continente e filhas do rei Héspero, portanto Hesperitanas. As obras de Lopes (Hesperitanas, 1928; Jardim das Hespérides, 1929) e de Cardoso (Jardim das Hespérides, 1926 e Hespéridas, 1930), portanto, são precursoras da busca pelas origens da mátria mestiça.

Germano Almeida em Cabo Verde: viagem pela história das ilhas, através do humor, retomou a perspectiva da procura identitária islenha:

Um erro de Deus

Claro que há uma outra realidade, principal e determinante de tudo o que nós somos: a nossa pobreza! Desde sempre somos muito pobres! A Natureza foi diabolicamente madrasta para conosco, quando pensamos as nossas ilhas é difícil entender porque terá sido ela tão pródiga com os demais e tão perversamente avara para nós outros. Há aliás uma lenda maldosa mas terrivelmente verdadeira a nosso respeito e que ajuda a entender-nos naquilo que acabamos de conservar de mais profundamente enraizado e que de alguma forma nos pode caracterizar como um povo que se recusa a deixar-se matar: um profundo instinto de sobrevivência.

Segundo essa lenda, Deus já tinha dado por terminada a semana de trabalho que dedicara à criação de tudo quanto achou que valia a pena existir, isto é, o céu e a terra, e as águas que separam as suas partes secas, e os animais que povoam, e inclusivamente já distribuíra todas as riquezas com quem decidira beneficiar cada parcela da humanidade, florestas aqui, ouro acolá, petróleo mais além, peixes em cada mar, chuvas quanto baste, quando reparou nas suas mãos ainda com pequenos restos da massa que tinha estado a espalhar.

Deus estava contente com aqueles dias de labuta e o trabalho realizado e preparava-se para um merecido sabbaht, dentro do princípio que desde logo queria estabelecer como regra universal: trabalharás seis dias e no sétimo descansarás! De modo que sacudiu as mãos encardidas, ao acaso no espaço, num gesto indolente de quem diz: “tudo está consumado, nada mais resta fazer!”, porém, para logo ver brotando perto da África pequenas ilhas de dentro do grande mar que viria a ficar com o nome de Atlântico.

Ah, chamaram a atenção de Deus os seus ajudantes, acaba de criar por aí mais umas terras! Deus viu que era verdade. Sim, isso é bom, respondeu, um poiso seguro em pleno alto mar dá sempre jeito a qualquer navegante. Só que já não tem nada com que dotar esse novo lugar, disseram-lhe, nem riquezas, nem água doce, nem plantas, nem nada.

Deus teve que se calar. Na verdade não tinha sido sua intenção criar mais coisa alguma, de modo que ao ver a asneira que acabara de fazer deve ter-lhe ocorrido que afinal das contas até os deuses erram. Bem, isso já não tem solução, mas também não tem grande importância, terá respondido encolhendo os ombros, com a quantidade de boa terra que espalhei por aí, todas elas devidamente providas não só de víveres como de riquezas de toda a espécie em abundância, seja em animais viventes seja em árvores de fruto e outras farturas, estou convencido de que, por mais empenho e vigor que os humanos venham a pôr na minha ordem de crescerem e se multiplicarem, nunca irão encher a terra a ponto de se lembrarem de habitar essas rochas que por culpa do acaso vão ficar para sempre escalavradas.
(ALMEIDA, 2003, p. 20)

Os fundadores da Claridade (Baltasar Lopes, Jorge Barbosa e Manuel Lopes) propuseram para a Revista inicialmente o título Atlante, estabelecendo um elo com a questão identitária de Cardoso e Lopes na possibilidade de origem apartada de Portugal. Anos depois, a busca pela felicidade que também denunciava ainda que de forma implícita as condições de abandono das ilhas no contexto salazarista, acabaria por ganhar o nome de outro espaço de felicidade: Pasárgada, cidade da Pérsia e atual sítio arqueológico (Irã).

No percurso do imaginário cabo-verdiano, a passagem do mito das Hespérides para o de Pasárgada possibilitou a distância estratégica da pátria europeia, sem o confronto direto com o colonialista, aproximando-se através do leitmotv brasileiro da proposta de fundação de uma nova identidade, entretanto, os dois mitos – o hesperitano e o pasargadismo – foram recepcionados na década de 60 nos contextos do evasionismo e da insularidade. Somente nos anos 1980/1990 Claridade será considerada pelos intelectuais cabo-verdianos como o grito da independência literária do Arquipélago, testemunho vivo do respeito pelos valores cabo-verdianos, dando destaque especial à língua crioula, objeto da repressão colonialista durante longo tempo.

Uma poesia de raiz predominantemente telúrica e social, embora não diretamente protestária, surgiu com a revista e embora tenham sido acusados de inautenticidade - Jorge Barbosa, por exemplo, foi considerado o “pontifície do evasionismo” (SILVEIRA, 1975, p. 5), os claridosos produziram, certamente, literatura de denúncia, dessa forma precisa ser refletido o acolhimento de Pasárgada pelos claridosos, diálogo primeiramente iniciado por Osvaldo Alcântara (Baltasar Lopes) em Cântico da manhã futura no alcance, inclusive, do redimensionamento para a figura do Rei enquanto amigo dos poetas, condição que o humanizava e o destituía de poder mercantilista. Manuel Bandeira, a respeito de “Vou-me embora pra Pasárgada”, observou:

Gosto desse poema porque vejo nele, um escorço, toda a minha vida; e também porque parece que nele soube transmitir a tantas outras pessoas a visão e promessa de minha adolescência - essa Pasárgada onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar. Não sou arquiteto, como o meu pai desejava, não fiz nenhuma casa, mas reconstruí, e casa, mas reconstruí, e não como “forma imperfeita neste mundo de aparências”, uma cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro, e sim a minha Pasárgada. (BANDEIRA, 1967, p. 102-3)

A Pasárgada de Bandeira é a experiência estética que o modernista brasileiro pode vivenciar sem cair na rede ideológica que situa a produção literária a partir do contexto em que determinado texto foi produzido. É interessante notar como o mesmo motivo assume leituras tão distintas: críticas ferrenhas aos claridosos por ser símbolo da evasão e associação direta a um espaço do possível para o modernista. Evidentemente que as acusações feitas à Claridade partiram de segmentos que orientavam a produção literária para a práxis política, porém no meu entender, com TEIXEIRA COELHO NETO (1987) toda a literatura evidencia relação estreita entre a arte e a utopia , quando utópico é a representação da imaginação que vai prolongar o real existente na direção do futuro.

A eleição de Pasárgada, feita pelos intelectuais caboverdianos, não representou um delírio, mas sim o que foi produzido a partir dos fatores objetivos da tendência social da época, sem se constituir como uma fantasia inconsequente (já que, pelo contrário, apresentou sequência como motivação estética em gerações posteriores). No contexto em que foi produzido, nos anos de 1940, é estranho que Pasárgada não tenha sido interpretada como denúncia a um “lugar ruim” (que não o eram as ilhas e sim a situação delas em termos de vigiadas pela ditadura fascista de Salazar), mas apenas enquanto fuga.

Cabe ainda citar que a partir das ideias difundidas pelo Congresso de Escritores de Karkof, em 1934 (favorecido pela vitória da Revolução Russa), difundiu-se a literatura proletária como uma espécie de obrigação do artista. Entendia-se ser necessário fornecer um tipo de arte auxiliador da libertação dominadora, como desenvolvi na minha dissertação de mestrado sobre Pagu (Patrícia Galvão), defendida na UERJ (1993). Em Cabo Verde, insisto, o mito de Pasárgada foi contextualizado e interpretado como fuga dos problemas do arquipélago, mas ele evidenciava atmosfera presente em qualquer época ou espaço, porque representante da possibilidade do sonho (estímulo da própria criação).

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no meu tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mais triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
– Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
           (BANDEIRA, 1998, p. 143-4)

O fato de ser amigo do rei reverterá, ironicamente, a condição de todo o artista perseguido pelo poder. Pasárgada, desta forma, é o espaço privilegiado da poesia, cidade ilustre associada a um momento de plenitude da obra bandeiriana, de alumbramento e revelação. Osvaldo Alcântara (Baltasar Lopes) dedicou o epílogo de seu livro supracitado a um “Itinerário de Pasárgada” composto de textos publicados, inicialmente, em 1946 na revista Atlântico, em diálogo direto com o de Bandeira. No caso do escritor brasileiro, o proibido ao jovem Bandeira teve como causa uma doença; no texto cabo-verdiano, a pobreza e a negligência política portuguesa com o Arquipélago inspirou o desejo de deslocamento para outro espaço: a gama de possibilidades do reino de Pasárgada se move do campo do prazer físico para os da justiça e da poesia.

A partir da inicial relação mítica estabelecida entre Cabo Verde e Brasil (de Hespérides a Pasárgada) e da circularidade das obras modernistas no Arquipélago, o exame da produção poética dos claridosos (e gerações subsequentes) em diálogo com alguns modernistas brasileiros (citados direta ou indiretamente nos textos e/ou nos depoimentos dos autores cabo-verdianos) conduz a explicitar a maneira pela qual se processou esse diálogo no sentido da antropofagia de Oswald de Andrade, postulada no Manifesto Antropófago.

A cultura cabo-verdiana, tal qual a brasileira, é também antropófaga, capaz de subverter a ordem das supostas influências dos discursos que receberia. Constituindo-se como mestiça, resultado do contato de diversos grupos que foram colonizar e povoar o Arquipélago, a nação Cabo Verde atualmente é reconhecida como multicultural, pode-se, então, compreender a migração do espaço da narrativa originária ocidental (mítica) do Jardim das Hespérides para a Pasárgada tupiniquim (mítica) proposta por Manuel Bandeira, lida agora pelos claridosos como a utopia brasileira.

No primeiro texto da série criada por Osvaldo Alcântara (Baltasar Lopes) “Passaporte para Pasárgada” é solicitado ao rei, que é o dono até mesmo dos horizontes, a entrada dos homens no paraíso de Pasárgada, espaço da Poesia, da inocência, do trabalho.

(...)
Pasárgada não é lugar comum.
Lá quem manda é o Rei,
que é amigo dos horizontes
e ouve as cantigas que os meninos cantam
na Rua Direita e na Rua do Sol.
Quem tenha ouvidos e oiça, que vá.
Os surdos não entram em Pasárgada.
(ALCÂNTARA, 1991, p. 115)

A presença da riqueza oral é resgatada no verso “Quem tenha ouvidos e oiça”, adaptação para a oralidade o trecho bíblico “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!” – retomado, aliás, em diferentes interpretações e contextos no Evangelho (1999) (Mateus, Lucas, Marcos, Apocalipse, Ezequiel, Jeremias, Jó, entre outros). Os “surdos” insensíveis à poesia presente, também, nas “cantigas que os meninos cantam”, instaura a recuperação do componente cultural forte das ilhas, como potência artística.

Em “Balada dos companheiros para Pasárgada”, é reforçada tanto a figura do rei que recepciona os artistas, como a imagem da ilha enquanto promessa utópica:

(...)
O rei espera por nós no caminho da Ilha dos
Mais Belos Poemas.
Vamos! Bendize a tua dor na Rua da Amargura!
Além é o horizonte...
E está nos teus passos ir até lá e ver a Ilha
Prometida,
para que o teu coração não tenha um limite e
uma distância diferente!
(ALCÂNTARA, 1991, p. 215)

No último texto do ciclo, “Evangelho segundo o rei de Pasárgada”, o monarca é aconselhado a abandonar a coroa para vestir a melancolia diáfana dos poetas e conclamar a todos que tomem conta de Pasárgada:

(...)
Deixa a tua coroa, ó Rei!
Veste no teu ombro
a melancolia diáfana dos poetas,
vem dizer novamente aos homens
que Pasárgada tem imigração aberta para todos
os homens...
(ALCÂNTARA, 1991, p. 123)

Neste ciclo de textos, portanto, Osvaldo Alcântara constrói a utopia, desenvolvendo e adensando o mito de Pasárgada a partir dos elementos poéticos da infância. O retorno a este espaço se dá em clima cabo-verdiano de fraternidade, com a presença de companheiros que ocupam o espaço utópico: dos humildes é este reino, o rei converte-se em poeta, coabitam ali o centro e a periferia.

Nessa série analisada percebo o destaque dado ao soberano como o que deixa de reinar com poder no espaço em que os poetas não são expulsos da cidade perfeita, como entendeu Platão (2000), ao contrário, o mundo só será perfeito com a valorização dos seus artistas, conforme percebeu Aristóteles (1996) . É ainda na direção da retomada e da rasura do rei como personagem de poder que o poema “Há um homem estranho na multidão”, publicado na Claridade nr 4, em 1947, envereda, pois trata-se do diálogo com o caro mito do sebastianismo, interrogando-o enquanto tema de uma cultura outra – portuguesa. O rei Dom Sebastião retorna à casa pensando ser Cabo Verde parte de Portugal, em interessante crítica ao subterfúgio colonialista de que as colônias africanas eram terras do além-mar:

Parece que ele acabou de chegar de um planeta
esquisito,
Todas as portas se abrem para o espiarem:
ele não é desta rua,
nas outras não há notícia
de homem assim!
No seu andar há qualquer coisa
que faz rir as crianças:
coxo, corcunda, estrábico, o homem que passou
pelas ruas?
Os adultos olham para ele com meio-dedo, com
meia-troça,
e sentem-se vagamente apreensivos
pelo destino dos seus filhos pequenos.
Olha as calças dele, os seus cabelos
desalinhados,
olha como ele fala sozinho!
Quem sabe se não é um louco perigoso...
Ou então se não será aquele vagabundo
que, encharcado pela chuva,
tocou piano no palácio do Rei de Viena,
e convenceu príncipes e grã-duquesas a
suspenderem a vida
enquanto ele lhes servia de companheiro e de
coragem
para o território inacessível de Pasárgada...
Não faltarão malucos para verem e jurarem que- viram na sua face
o brilho do olhar de Cristo.
É D. Sebastião
é D. Sebastião
que voltou!
(Há uma ilha no meio do Atlântico,
em que ele aparece atravessado de setas
e com a espada desembainhada!)
Está vivo S. Sebastião
(os homens olham para os filhos
com medo do seu destino místico)...
Está nua a sua espada, que, na hora da derrota,
lhe ofereceu
o seu camarada, cavaleiro D. Quixote,
com a promessa de que ele nunca mais
regressará,
porque a Poesia é um dos seus males secretos
e há um País,
há um País
em que ele pode transitar pelas ruas
sem ninguém reparar que o seu fato está fora
de moda,
os seus cabelos estão desalinhados
e ele não tem jeito pra coisa nenhuma.
                              (ALCÂNTARA, 1986, p. 23)

Retomando a imagem de Mário de Andrade (1972) para a Pasárgada como vocação para o prazer e não para o saudosismo, o que dizer do Rei Momo, destituído de todo o poder, ou melhor, repleto da plataforma do prazer total, como menciona a canção de Rita Lee (1982)? Manuel Bandeira evoca o Rei Momo, o Rei da Alegria, o Rei da Gargalhada e da Desordem em “Bacanal”:

(...)
Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!
Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em doudo assomo...
Evoé Momo!
(BANDEIRA, 1998, p. 125)

Jorge Barbosa carnavalizou a figura regencial em pelo menos dois poemas. O primeiro, “Terça-feira de Carnaval”, publicado em Caderno de um ilhéu (1956) desloca o poder da coroa para o feminino, pois os versos são dedicados às “pobres moças daquele tempo” com o sonho da alegria de rainhas com tempo para existir e acabar.

(...)
Vejo-vos ainda, alegres, fantasiadas
de noute-clara, noute-escura,
marinheiras, jardineiras, mexicanas, espanholas...
Uma até havia de rainha
e trazia com tanta majestade
a coroa de papelão dourado

Era tudo miragem
era tudo sonho daquela noute,
a vossa única oportunidade de serdes felizes
durante algumas horas

(...)
Vejo-vos ainda...

Fadas de noutes misteriosas,
           onde estão as vossas túnicas
           de estrelas, luas e céus maravilhosos?

Navegadoras
de que longínquos mares,
           a que rumo vos levou
           a bússola do destino?

Ninfas
de jardins e bosques inacessíveis
que é do perfume das vossas flores?
Mulheres estrangeiras
          por que terras do mundo agora andas?

Rainha
de um reino que não houve,
          quem desfez a tua coroa?

Era tudo miragem
era tudo sonho
era tudo tão bom!
(BARBOSA, 2002, p. 101-102)

 O segundo poema “Carnaval do Rio de Janeiro” não foi publicado em vida por Barbosa, tendo como origem uma carta endereçada, em 1950, a Jaime de Figueiredo (organizador da primeira Antologia de poesia cabo-verdiana, 1961):

Carnaval do Rio de Janeiro
Eu te vejo eu te sinto

Rei Momo que eu vejo!
Grande taça do Rei Momo
nas suas mãos sustida

Grande coroa
de barulhentas glórias
na sua real cabeça
- que eu vejo!
Depois na rádio
Sambas marchinhas
Linda Dircinha Emilinha
- que eu ouço!

Galhardo black out
Oscarito!
Praça Onze
Largo do Carioca
Subúrbios cuícas violões
Fenianos Tenentes
Flamengo cordões!

Multidão vibrando
mascarada passando
sambando
- que eu vejo
que eu sinto
daqui de bem longe!

Carnaval do Rio
a tantas mil milhas
distante daqui!

E os versos de Manuel Bandeira
ecoando cá dentro
deste folião que eu já fui:
- Evoé Momo!
(BARBOSA, 2002, p. 345-346)

Diretamente da aldeia de Furna, na Ilha Brava, esses versos fazem alusão à Era do Rádio do Brasil, citando suas rainhas (Emilinha, Linda Baptista, Dircinha Baptista), a atores da chanchada (Oscarito), ao lado dos elementos africanos reconstituídos nos sambas, nos violões, nas cuícas, nos cordões. O Carnaval, desse modo, é a sintonia do poeta a “mil milhas” com o Brasil da cultura negra. A intertextualidade com a poesia de Bandeira, para além de um recurso dialógico, estabelece componente afetiva de essência porque está “ecoando cá dentro”, do mesmo modo que ele mais sente, do que vê, os cordões festivas “daqui de bem longe!”. O Rei Momo é a circunstância máxima de liberação, figura de autoridade transformada em bufão, na recusa do contexto opressor salazarista.

A máscara da alegria é também fantasia da vida ideal, sem opressão, com partilha. O Rei Momo assume a caricatura maior da galhofa, que no contexto ditatorial encontra eco no que Henri Bergson (2004, p. 13) instituiu como pacto:

Não desfrutaríamos o cômico se nos sentíssemos isolados. O riso parece precisar de eco. Por mais franco que se suponha o riso, ele oculta uma segunda intenção de acordo, diria eu, quase de cumplicidade, com outros galhofeiros, reais ou imaginários.

Desse modo, os reis rasurados na poética de Osvaldo Alcântara e Jorge Barbosa reinstauram esteticamente a ordem idealizada na pretensa desordem, quando Cabo Verde evoca o Brasil na reafirmação de sua identidade cultural crioula.

Nota

* Publicado originariamente em OLIVEIRA, Jurema e SILVEIRA, Regina da Costa da (Org.). Realismo-maravilhoso e animismo entre griots e djidius: narrativas e canções nos países de língua oficial portuguesa. UERJ: Dialogarts, 2015, p. 70-85.

Referências

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ARISTÓTELES. Poética. Trad.: Guimarães Editores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996.

BANDEIRA, Manuel. “Bacanal”. In: Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 79.

BANDEIRA, Manuel. “Vou-me embora para Pasárgada”. In: Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 143-144.

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BARBOSA, Jorge. “Terça-feira de Carnaval”. In: FRANÇA, Arnaldo; SANTOS, Elsa Rodrigues do (Org.) Obra poética por Jorge Barbosa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002, p. 101-102.

BARBOSA, Jorge. “Carnaval do Rio de Janeiro”. In: FRANÇA, Arnaldo; SANTOS, Elsa Rodrigues do (Org.) Obra poética por Jorge Barbosa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002, p. 345-346.

BERGSON, Henri. Tradução: Nathanael C. Caixeiro. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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** Norma Sueli Rosa Lima é Professora Adjunta do Departamento de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Líder do Grupo de Pesquisa UERJ-CNPq Brasil Cabo Verde: Literatura, Educação e História.

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