Claridade revista
(2000-2013)*

Norma Sueli Rosa Lima**

 

Em 1994, tendo ingressado na primeira turma de Doutorado da Universidade Federal Fluminense, o anteprojeto de pesquisa apresentado naquela Instituição examinava as relações entre as poesias brasileira (da fase modernista) e cabo-verdiana. Pretendia eu estabelecer um diálogo entre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa com a pesquisa sobre Modernismo Brasileiro que desenvolvera no Mestrado de Literatura Brasileira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Na ocasião, a Professora Doutora Simone Caputo Gomes, então docente da UFF, acolheu a pesquisa que foi defendida em 29/02/2000. Quase vinte anos depois tenho a oportunidade a convite da mesma Professora Simone (agora docente da USP), de voltar ao tema não apenas para relembrá-lo, mas para realizar um balanço sobre o desenvolvimento daqueles esforços dos poetas cabo-verdianos em construir uma identidade crioula questionadora do panorama colonialista e ditatorial em Cabo Verde.

O eixo central dos meus estudos compreendidos entre 1994-2000 pretendeu examinar o processo intertextual entre as Literaturas de Brasil-Cabo Verde, quando procurei evidenciar o salto qualitativo que o aparecimento de Claridade operou na Literatura do Arquipélago e as sementes que lançaria para as gerações posteriores, no contexto do projeto mais amplo de construção identitária crioula. Ressalto ainda que o Brasil, mais especificamente o sentimento de brasilidade e a reconstrução de uma literatura nacional, funcionaram como uma das forças catalisadoras daquele salto.

As reverberações foram o outro aspecto considerado haja vista que a publicação da Revista, em 1936, foi o mais importante acontecimento literário coletivo do Arquipélago. Ao poeta Jorge Barbosa, um de seus fundadores, por exemplo, devem-se os créditos de ter “sido o primeiro autor individual a afirmar-se como produtor de uma nova poética, fundando assim a estética da modernidade literária cabo-verdiana, com a publicação do [livro] Arquipélago” (SANTOS, 1989, p. 15). Seus outros idealizadores (Baltasar Lopes e Manuel Lopes) e colaboradores não ficam atrás na divisão de águas que aquele lançamento causou, mas obviamente ao examinar os elementos antecedentes e possibilitadores do surgimento da Claridade, também se verifica o legado que a sucedeu em rupturas ou repercussões.

Os pré-claridosos José Lopes e Pedro Cardoso já tinham fraturado a imagem lusitana imposta lançando as bases para o debate sobre os conceitos do homem cabo-verdiano e da crioulidade, com relativo afastamento da “pátria portuguesa”. Lopes e Cardoso esboçaram a origem das ilhas como oriundas da Atlântida; no caso do segundo, também houve menções ao Egito em crônicas assinadas com o pseudônimo “Afro”, além de ele ter sido colaborador de vários jornais cabo-verdianos e portugueses como O Manduco, do qual foi fundador e autor da coluna “A Manduco...”.

Percebemos, com isso, a inserção da imprensa cabo-verdiana também ativa no aspecto das reivindicações e críticas ao colonialismo, à semelhança das de Angola e Moçambique. Em 2008, os textos foram recolhidos e organizados por Manuel Brito-Semedo e por Joaquim Morais sob o título Pedro Cardoso – textos jornalísticos e literários (Parte I) -, com prefácio de Isabel Lima Lobo. A obra é separada por duas seções: a primeira contém duas conferências e a segunda apresenta trinta e três crônicas publicadas entre 1911 e 1914 no jornal A Voz de Cabo Verde. (RISO, 2010).

Se foram superadas mágoas e críticas injustas (ainda feitas, entretanto, ao legado de Claridade e também aos chamados pré-claridosos), retomo o meu objeto de pesquisa com a perspectiva de “revista”, ou seja, de examinar o lugar da produção cabo-verdiana no século XXI. Passados treze anos, situar a cabo-verdianidade enquanto reconhecimento inclusive de uma identidade híbrida distanciada da leitura desta fusão pela ótica da assimilação, da influência e mesmo de estereótipos mestiços do século passado, implica apreendê-la na esteira dos

refluxos que fazem valer territórios sem a coerção hegemônica, sem fronteiras rígidas, não apenas políticas, ligadas aos Estados nacionais, mas também analogamente fronteiras mais amplas, que se configuram nos múltiplos campos da práxis social, que se reduziam dicotomicamente, espartilhando a diversidade em dualismo estanques, como [...] o Bem e o Mal.
(ABDALA JR., 2004, p. 9)

E isso devido ao Arquipélago estar desabitado à época de seu descobrimento e de ter sido povoado através da mistura de etnias, como também ocorreu no Brasil, embora aqui houvesse a população nativa no momento da colonização. O debate sobre a cabo-verdianidade no século XX assume, ao lado do da brasilidade investigada de modo mais crítico a partir do Modernismo Brasileiro, a importância da investigação de uma cultura híbrida. Na contemporaneidade, a percepção sobre os comunitarismos precisam estar atentos às armadilhas da globalização neoliberal que vinculam poder de Estado aos das corporações supranacionais.

Em termos culturais, diríamos, como Glissant, que o mundo se criouliza. Isto é, torna-se cada vez mais mestiço, mesclado, abrindo-se cada vez mais sem preconceito para a mistura, para a consolidação das formulações híbridas.
(ABDALA JR, 2004, p. 18)

Ao analisar a recepção da poesia modernista brasileira em Cabo Verde, que procura ler o Brasil na perspectiva de uma cultura própria, afastada da matriz europeia e evidenciando todos os tons de pele e cores – como encontramos nas pinturas de Tarsila Amaral, por exemplo, – entendo esta identificação de duas culturas mestiças na concepção do hibridismo como ameaça a autoridades hegemônicas. Se a nação brasileira já era independente de Portugal desde 1822, cem anos depois (por ocasião da Semana de Arte Moderna) ainda discutia a sua identidade, ao mesmo tempo em que o fazia a colônia de Cabo Verde.

Assim, os motivos étnicos detectados nas obras poéticas modernistas, e também nas claridosas, subvertiam o conceito de origem ou de identidade pura. Lembro que a mestiçagem, construto efetivado no arquipélago nas décadas de 1930 a 1960, cedeu espaço à imagem da raça africana, em voga nos anos que compreenderam das guerras coloniais à Independência. A ideia de nação crioula foi reivindicada pelos grupos intelectuais quando a naturalização da identidade cabo-verdiana mestiça resgatava, também, a africanidade nas ilhas. Na década de 1990, principalmente a partir do I Encontro de escritores cabo-verdianos ocorrido em 22/10/1992 e que contou com a participação de Jorge Carlos Fonseca (atual Presidente da República de Cabo Verde), Vera Duarte, Mário Fonseca, Daniel Pereira, José Luís Hopffer Almada, Tomé Varela, Dulce Almada Duarte, Manuel Veiga e Mário Fonseca, entre outros, a condição mestiça centralizou os debates. Bhabha adverte que essa identidade híbrida não é nem o Eu, nem o Outro:

[...] é menos que um, e o dobro”, provavelmente referindo-se às suas características discursivas como parciais, mas reafirmando-as no sentido bakhtiniano. Esses traços do hibridismo fazem com que este transgrida todo o projeto do discurso dominante e exija o reconhecimento da diferença, questionando e deslocando “o valor do símbolo para o sinal” do discurso autoritário. (BABHA, 1993, p. 212)

Neste ponto, vale a pena retomar o papel que a antropofagia do brasileiro Oswald de Andrade representou em termos da revolução cultural, até mesmo para absolver de certas críticas o procedimento do grupo claridoso, de não ter produzido arte política engajada, que fazia da produção literária instrumento de guerra, (até porque o partido político em Cabo Verde – PAIGC - só seria fundado em 1956). A batalha claridosa foi mais cultural do que política, centrando-se na luta pela legítima expressão crioula, desse modo é que Baltasar Lopes rebateu julgamentos e chamou a atenção para a subversão que havia, em plena era da censura, na simbiose linguística do português com o crioulo, realizada pelos integrantes da Revista. Esta era uma proposta de linguagem cabo-verdiana, e não simplesmente o enxerto de algumas palavras do crioulo no português, na ocasião em que se plantava a independência cultural na reconstituição da linguagem popular. Tal transformação também se deu no Modernismo Brasileiro, através da antropofagia linguística quando a fala coloquial previa, por exemplo, a colocação dos pronomes oblíquos no início da oração ou do verso, como o quis Oswald de Andrade em “Pronominais”, poema com o qual Jorge Barbosa também dialogou no famoso “Você, Brasil”:

Havia de falar como Você
Com um i no si

— “si faz favor —
de trocar sempre os pronomes para antes dos verbos

— “mi dá um cigarro!”
                                          (BARBOSA, 2002, p. 135)

É interessante notar que o último verso da citação, retirado de “Pronominais”, não corresponde ao original: “– Me dá um cigarro!”, a voz poética barbosiana transformou o pronome oblíquo original “me” em “mi”, deglutindo-o e transformando-o em algo novo no discurso cabo-verdiano. A opção por um modelo cultural estrangeiro – o brasileiro – contra o outro parâmetro imposto, ajuda no processo do nascimento de uma literatura autônoma; as certezas sistemáticas de outras latitudes, como queria Baltasar Lopes, fornecem chave para a leitura inaugural e autêntica do mundo ilhéu.

Ao adotar um dos postulados desenvolvidos em Manifesto Antropófago (devorar o recebido, selecionar o que interessa), adaptando-o à dinâmica da leitura que os cabo-verdianos realizaram das obras modernistas, percebo que a moderna literatura cabo-verdiana trouxe para o ambiente crioulo a riqueza das vozes brasileiras, em coro polifônico e permeável.

Só me interessa o que não é meu. Lei do Homem. Lei do Antropófago. [...]
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação informará. [...]
Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria a sua pobre Declaração dos direitos do homem. [...]
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
                                                                                                                                                                                                  (ANDRADE, 1985, p. 353)

 A violência proposta por Oswald estabeleceu uma nova leitura do gênero nacional, deslocando para o Brasil um centro em que nunca esteve, ao mesmo tempo em que lhe conferiu a consciência de margem. A cultura brasileira ocuparia um entrelugar, no meio da barbárie nativa e da civilização europeia, a construção do mito do matriarcado de Pindorama garante este deslocamento consciente que trai o nacionalismo ufanista dos primeiros anos da República e as propostas cientificistas da Antropologia positivista.

Por isso Boaventura de Sousa Santos indicou que a reflexão de Oswald é a única capaz de explicar as especificidades das culturas mestiças, na medida em que, por um lado reconhece a posição nuclear da metrópole lusitana entre as suas colônias e por um outro, sua posição periférica em relação as potências europeias.

Andrade propõe-nos um começo que, em vez de excluir, devora canibalisticamente o tempo que o precede, seja ele o tempo falsamente primordial do nativismo, seja ele o tempo falsamente universal do eurocentrismo. Esta voracidade inicial e iniciática funda um novo e mais amplo horizonte de reflexividade, de diversidade e de diálogo donde é possível ver a diferença abissal entre a macumba para turistas e a tolerância racial. Acima de tudo, Oswald de Andrade sabe que a única verdadeira descoberta é a autodescoberta e que esta implica presentificar o outro e conhecer a posição de poder a partir do qual é possível a apropriação selectiva e transformadora dele. (SANTOS, 1992, p. 120)

No sentido oswaldiano, a cultura cabo-verdiana é também antropófaga, capaz de subverter a ordem das supostas influências dos discursos que receberia sendo reconhecida atualmente como multicultural. Boaventura (1999), entre outros teóricos, têm chamado a atenção para o fato de as identidades culturais não poderem ser caracterizadas como rígidas ou imutáveis, sendo resultados, transitórios e fugazes, de processos de identificação. Mesmo aquelas aparentemente mais sólidas como a de homem, mulher, africano latino-americano ou europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação. Mutações responsáveis, em última instância, pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades caracterizadas como “identificações em curso”.

Bebendo de matriz semiperiférica, Cabo Verde se voltou em um primeiro momento para o Brasil, periférico como ele e posteriormente para si mesmo, problematizando a sua questão identitária, já por ocasião da época da Claridade. Esse debate está presente em todos os nove números foi retomado, posteriormente, por outras publicações como no número especial da Revista Pré-Textos (1994) dedicado ao já citado por mim I Encontro de escritores cabo-verdianos, que na voz dos mais prestigiados representantes da literatura do arquipélago, forneceu-nos importantes subsídios para discussão do que é ser cabo-verdiano face ao triângulo africano, português, mestiço, isto é, África, Portugal, Brasil.

Friso que em Cabo Verde a colonização apresentou característica anômala: nem as forças de ocupação europeia, nem os africanos submetidos a ela eram oriundos do país. Os escravizados de etnias diversas trazidos (à força) para as ilhas perderam a coesão que encontravam no âmbito de suas origens na Guiné Bissau. O fato de haver poucos brancos e reduzido número de mulheres europeias provocou a miscigenação (inclusive com caráter violento) nas ilhas de Santiago e na do Fogo, nos primórdios da colonização, e a ascensão do mestiço nas primeiras ilhas habitadas gerou a interpenetração das culturas.

Dependendo de como se situe em face deste triângulo, a definição da cabo-verdianidade opta pela mestiçagem ou síntese original, como querem Manuel Ferreira, Gabriel Mariano, Teixeira de Sousa, Dulce Almada Duarte, entre outros, com base na africanização do europeu ou no processo de crioulização. Mário Fonseca, por exemplo, propugna a africanidade do cabo-verdiano ao lado de outros escritores como Aguinaldo Fonseca, Kaoberdiano Dambará e Manuel Duarte. Segundo Simone Caputo Gomes (1993), a intenção do grupo claridoso pode ser definida como mergulho da redescoberta de raízes, sendo essa ação equiparada à fase de negritude proposta pelo angolano Mário Pinto de Andrade para as outras colônias africanas de língua portuguesa, quando se afirmaram as suas matrizes culturais (africanas ou mestiças).

A descontinuidade territorial do país contribuiu, em grande parte, para que o tempo histórico nas ilhas se diferenciasse e que diversos tipos de colonização nelas se exercessem. Santiago, por exemplo (e não por acaso considerada a mais africana delas), teve um passado escravizado de quatro séculos enquanto São Vicente mal conheceu a escravidão, porque foi a última a ser povoada tendo servido durante muito tempo como campo de pastagem e de gado.

Procurando acompanhar o desenrolar complexo do processo identitário, Manuel Veiga (1994) associou-o à emergência da afirmação crioula, enfatizando o percurso mais a partir do ponto de vista antropológico do que do político, destacando que o início da crioulidade ocorreu há cinco séculos, com escravizados, aventureiros e capitães-mores, seguindo-se a ele o período nativista, com a entrada em vigor do Regime Republicano em Portugal (1910). O fomento à educação teve papel decisivo para o sentimento nativista, em especial a existência do Seminário-Liceu de São Nicolau, pelo qual passaram Pedro Cardoso, José Lopes, Baltasar Lopes, António Aurélio Gonçalves, entre outros. Gomes dos Anjos evidenciou ainda, em consonância com propostas de Gabriel Mariano (1991), que até a primeira metade do século o mestiço cabo-verdiano percorreu uma trajetória ascensional que vai do negro ao branco, rumo à conquista das posições mais prestigiadas na estrutura social. Acrescentou que esta definição da mestiçagem tinha como intuito resgatar um tratamento diferenciado para o ilhéu, face aos outros povos colonizados pelo português, o que construiu a concepção errônea da sociedade mestiça como aculturação e privilégio.

A narrativa do processo de mestiçagem, elaborada pelas elites cabo-verdianas, teve um grande poder retórico no sentido de demarcar e manter fronteiras entre a comunidade imaginada – Cabo Verde - e as referências de contraposição - a África e Portugal. Processo propagado a partir das imagens engendradas por uma intelectualidade, toma caráter geral em uma política de naturalização que perpassa por manifestações linguísticas e culturais com aderência viva às formas de convívio, entre outras manifestações.

Retomo o olhar para a literatura cabo-verdiana para lembrar que alguns dos seus autores e pesquisadores se recusam a percebê-la em períodos como “pré e pós-claridoso”. Filinto Elísio, em texto publicado no site Buala, divide as produções do arquipélago modernas como “não claridosas”, compreendendo ainda na recepção para algumas delas

um certo olhar que insiste no exotismo e no folclorismos para com a escritas dos nossos homens grandes, como [...] Pedro Cardoso, Baltasar Lopes, Jorge Barbosa [...] E será com esta nova gente que nos alinhamos na nova África, na renascença de uma Africanidade diferente, outra e emancipada, que não tem pejos, nem esteios de colonizados, nem complexos encravados de identidade; será com esta gente de liberto pensamento e de discurso livre, enquanto África múltipla e plural, ao tempo que assume suas especificidades, que nos assumimos, transculturais e mestiços, prontos para a intermediação do diálogo entre todos os mundos, inclusive com aquele que também nos é de pertença, que é o da Cultura de matriz Ocidental, pela sua vertente também da lusofonia, pátria maior de Fernando Pessoa e de todos nós poetas que inquilinos também desta língua que transcende. Espero ter entrado na essência da questão, com a antropofagia que me move, enquanto ser cultural dos mundos, ou bem no diapasão do poeta Manoel de Barros, um dos expoentes que me ilumina, em como ‘Para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto’. (ELÍSIO, 2011, s.p.)

A reivindicação de Filinto não vai de encontro ao que proponho aqui: evidenciar a África múltipla e plural, sem fronteiras, e que sendo matriz da própria humanidade, acolhe também temas de diáspora, de outros lugares, de utopias, como a de Pasárgada, leit-motiv retirado do poema do brasileiro modernista Manuel Bandeira: “Vou-me embora para Pasárgada”. Diálogo rico que atravessou séculos e que foi recentemente retomando na Antologia de poesia contemporânea, de 2011, na qual José Luís Hopffer Almada, assinando com o pseudônimo de Nzé dy Sant’Y’Águ, escreveu “Na morte de Baltazar Lopes da Silva (que também é o poeta Osvaldo Alcântara)”. A alusão à Pasargada se faz com Cântico da manhã futura, obra de Baltasar Lopes assinada com o pseudônimo “Osvaldo Alcântara”.

Sinto-me só.
Sinto saudades dos meus companheiros.
Os meus companheiros trilham os caminhos da terra-longe.
Da terra-longe ou da pasárgada. [...]
Expectante sobrevivendo na faminta saudade da ilha. O exílio. A anti-pasárgada. O enterro do corpo na sepultura do mar e da viagem. A busca do possível paraíso no lugar sagrado da utopia.
Recoberto do halo do regresso à mãi-pátria.
Saudade: a antiga e longa auréola de cristo. A permanência do arquipélago.
Da diáspora lacrimejarei saudades navegantes dos meus conterrâneos.
Meus contemporâneos.
Meus companheiros.
Resguardados sob a sombra das acácias e dos arranha-céus. Distantes da antiga inépcia da pedra
(SANTÝ ÁGU, 2011, p. 72)

O poema aborda a solidão islenha, os caminhos da terra longe, a faminta saudade que não deixa de aludir à miséria social cujo enterro se faz no mar, atualizando temas, principalmente os do terralongismo, do exílio e da diáspora forçadas. Pasárgada assume a perspectiva do outro lugar, lembrando que na tese que defendi na UFF afirmei e agora reafirmo que o verso “Vou-me embora” foi interpretado de forma errônea, porque através de leitura somente do que representava em Portugal, e não no contexto brasileiro, que é o da poesia de Bandeira e o do diálogo entre Osvaldo Alcântara e o modernista. No contexto em que se originou significava partida, porém no caso brasileiro, o “vou-me-emborismo” popular e nacional estava presente nos versos de Pasárgada, fazendo referência à nossa literatura folclórica (de base oral). Assim, ele deve ser lido – enquanto expressão – antes como um ato de conquista e de superação, do que como propriamente de abdicação diante da vida (HOLANDA, 1980, p. 150). Mário de Andrade verificou como o “vou-me embora” frequentou muito mais a quadra brasileira que a portuguesa, aqui com um sentido menos carregado de saudosismo:

Incapazes de achar a solução, surgiu neles essa vontade amarga de dar de ombros, de não se amolar, de partir pra uma farra de libertações morais e físicas de todas as espécies. Vontade transitória, episódica, não tem dúvida, mas importante, porque esse não-me-amolismo meio gozado deu alguns momentos significativos da poesia ou da evolução espiritual de certos poetas brasileiros. Em última análise, o tema do “Vou-me embora pra Pasárgada” é o mesmo que está cantado nas “Danças”, de Mário de Andrade [...] Se percebe o eco dele em alguns poemas de [...] Carlos Drummond de Andrade, pra enfim se transformar de estado de espírito em constância psicológica [...] em toda obra de Murilo Mendes. Fiz esta digressão para mostrar quanto Manuel Bandeira perdeu de si mesmo para dar a um tema useiro dos nossos poetas de agora a sua cristalização mais perfeita. (ANDRADE, 1974. p. 196-197)

Esse “não-me-amolismo”, segundo o modernista brasileiro, não podia ser compreendido como partida, mas pela sensação de farras física e moral. Jorge Barbosa nunca saiu do Arquipélago e se seus versos saíram (para logo retornarem) foram no sentido da inclinação brasileira do “não-amolismo”, o que evidentemente denunciava desconforto e não conformismo. Em 1966, teve o poema abaixo publicado na revista África 2, em 1978, versos produzidos no calor das cobranças da luta armada, organizados em reflexão irônica, parecem querer responder a afirmações como a que segue, a qual identificava os claridosos como “promotores, arreigados nos estereótipos sociopolíticos do grupo dominante e tomando parte ativa na luta por perpetuação das estruturas de dominação” (FERNANDES, 2002, p. 79). Os estudos pós-coloniais fazem a revisão de tais críticas, pois a busca pela identidade cabo-verdiana, ou a expressão primeira da cabo-verdianidade, deve-se aos criadores e colaboradores da Revista Claridade. Transcrevo a poesia na íntegra:

Panfletário

Ao poeta José Bizarro

Era para eu
ser panfletário

Os meus escritos
teriam a verrina
as iras
e o rubro
grito da revolta!

Era para eu
ser panfletário.

Combateria
os tiranos
os arbitrários
os agiotas
os exploradores da miséria
e do trabalho dos pobres
os homens poderosos
e os seus mandatários
e bajuladores
e as leis que os protegem.

Era para eu
ser panfletário.

Teria o porte
audaz e altivo
e belo
de um guerreiro.
Levaria nos olhos
a chama dos sonhos
no sorriso um ar
amargo e triste
a cabeça ao léu
impávida erguida
e a cabeleira ao sol
ao vento
e ao frio nocturno
dos secretos e longos
caminhos da fuga.

Era para eu
ser panfletário.

Ao passar pelas ruas
das vilas rurais
então se fechariam


Talvez pelo exíguo
espaço de alguma
janela entreaberta
os pais me apontassem
aos filhos tementes
e lhes segredassem
o panfletário!

Era para eu
ser panfletário.

Escreveria
panfletos
sátiras
libelos
seria
o inimigo
o subversivo
o foragido
o perseguido
o réprobro
conheceria
tribunais
esconderijos
cárceres
sentiria
a fome e o cansaço
teria no corpo
a tatuagem marcada
das torturas policiais.

Era para eu
ser panfletário.
Não o fui.

O magnífico
e heroico destino
que eu imaginava
tão liricamente
ser o meu
venceram-no afinal
a prudência
o temor
a família
venceu-o
este meu outro
real
e melancólico
destino burocrático

Era para eu
ser panfletário.

Agora
com os resíduos do tempo
tingindo de branco
os meus cabelos
gotejando
doloroso
nos meus ossos
agora
é já tarde demais
para a magnífica aventura.
Era para eu
ser panfletário.

Ilha do Sal, aeroporto, 24 de Novembro de 1966

                            (BARBOSA, 1978, p. 145-147)

A transcrição é fiel à versão publicada na Revista África, em Lisboa, 1978, pois a que consta na Obra poética editada e lançada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2002, apresenta algumas alterações. A repetição dos versos que afirmam a expectativa de arte dirigida para o poeta pode ser lida como metonímia para a que abranja todos os outros fundadores de Claridade. A ironia da perspectiva heroica constrói características nobres: “Teria o porte/audaz e altivo/e belo/de um guerreiro” que ficam contrapostas as do artista que, na busca pelo estético distanciada da maneira explicitada de denunciar, é compreendido como um burocrata da palavra: “Não o fui/O magnífico/e heroico destino/que eu imaginava/tão liricamente/ser o meu/venceram-no afinal/a prudência/o temor/a família/venceu-o/este meu outro/real/e melancólico/destino burocrático”. Lembro a análise semiológica e comparativa dos símbolos e signos claridosos que Manuel Veiga realizou em A sementeira (1994), que teve por finalidade demonstrar: “como Jorge Barbosa soube aproveitar o carácter arbitrário do signo linguístico para criar uma arte poética onde o primeiro sentido nem sempre é o da mensagem que o poeta quer transmitir”. (VEIGA, 1994, p. 26).

Desse modo, dizendo sem o dizer, se o julgamento não teve como origem as portas fechadas para o seu mau exemplo subversivo: “Ao passar pelas ruas/das vilas rurais/então se fechariam/as portas para mim”, outras se vedaram no julgamento injusto pela não compreensão, em seus escritos (e no dos outros claridosos) do que Veiga tão bem compreendeu.

Finalizo com as palavras de Manuel Ferreira, para o qual os textos de Osvaldo Alcântara, nos anos 1950, (e de toda a geração claridosa) foram mal interpretados, em especial os que se debruçavam sobre a temática da evasão. Como desenvolvi em minha pesquisa, deve-se considerar também a utopia, que enquanto palavra foi criada por Thomas Morus, mas que enquanto ideia, sempre esteve presente nas sociedades na busca de um lugar ideal:

Hoje melhor se dá conta dessa injustiça, que quis ver no poema um sinal negativo, quando na época em que foi escrito (e não apenas) é a expressão do culto da utopia, a crença num espaço e num tempo utópicos, paradigma de conquista última pelo homem na sua caminhada de séculos, ao encontro da felicidade. (FERREIRA, 1989, p. 161)

Nota

* Publicado originariamente em: GOMES, Simone Caputo, MANTOVANI, Antonio Aparecido, PEREIRA, Érica Antunes (Org.). Literatura Cabo-verdiana: leituras universitárias. Cáceres: UNEMAT, 2015. p. 124-136.

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** Norma Sueli Rosa Lima é Professora Adjunta do Departamento de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Líder do Grupo de Pesquisa UERJ-CNPq Brasil Cabo Verde: Literatura, Educação e História.

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