Projetos literários em antologias cabo-verdianas *

 

Maria Nazareth Soares Fonseca**

Resumo – No artigo afirma-se a importância das antologias poéticas produzidas nos países africanos de língua portuguesa para as pesquisas que se realizam a distância do contexto em que os textos se produzem. Tomando como referência o volume editado, em 1989, por Manuel Ferreira, com os números da revista Claridade e a Antologia dos novíssimos poetas caboverdianos, Mirabilis de veias ao sol, publicada em 1988, são ressaltadas características literárias e destacada a presença da literatura brasileira como um dos impulsos geradores da moderna literatura de Cabo Verde.

 

Para os pesquisadores das literaturas africanas de língua portuguesa que vivem distantes das livrarias e editoras portuguesas ou que não têm condição de visitar com frequência os países africanos de língua portuguesa, o acesso aos textos dos escritores africanos dá-se de forma ainda restrita e isso dificulta a investigação mais detalhada de questões que os próprios textos acentuam.

Esta realidade, vivida ainda por alguns pesquisadores brasileiros, obriga-os a produzir estratégias que possam contornar as dificuldades que sempre aparecem, em busca de resultados mais produtivos. A carência de obras específicas de determinados autores pode ser contornada pela pesquisa do material fornecido por antologias e esse trabalho pode resultar em soluções bastante animadoras, principalmente quando se valorizam os elementos da produção do volume, as informações dadas pela seleção de autores e textos que refletem, de alguma maneira, a intenção político-literária que transparece nos poemas.

O estudo das antologias revela-se, portanto, como um excelente recurso para quem investiga à distância os textos literários produzidos na África de língua portuguesa em diferentes momentos da fase anterior à independência e na do pós- independência, época em que os projetos literários assumem novos percursos, procurando revigorar conquistas já alcançadas, mesmo quando a dureza da situação histórica exigia outros modos de expressão. Atualmente, os contatos mais frequentes com as editoras portuguesas, facilitados pelo uso da Internet, ajudam o pesquisador distante a ampliar o acervo de textos, ainda que o alto preço dos livros ainda seja um grande impedimento à maior circulação dos textos africanos entre os pesquisadores. O estudo das antologias continua a ser um recurso válido de acesso a uma amostragem consistente da produção poética que traz em si marcas do momento sócio-histórico de sua produção. O material das antologias propicia várias direções de pesquisa e sugere temas para uma análise frutífera da produção literária de outros espaços culturais.

No caso específico da literatura de Cabo Verde, as antologias organizadas por Mário Pinto de Andrade e Manuel Ferreira2 apresentam-se como excelente material que nos possibilita não apenas o contato com diferentes feições literárias da fase anterior à independência do país, mas ainda o acesso a informações sobre ideais e ideias que, em momento de grande efervescência política, fortaleceram alguns dos movimentos literários que revelaram as ilhas do arquipélago ao mundo das letras.

A Antologia temática de poesia africana: na noite grávida de punhais (1975), organizada por Mário Pinto de Andrade, como o próprio título indica, agrupou poemas a partir de temas gerais que perpassavam as literaturas de língua portuguesa na África. A coleção No reino de Caliban (1997), organizada por Manuel Ferreira, particulariza as manifestações poéticas de Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, áreas onde o fenômeno literário adquiriu um relevo significativo na fase colonialista. A antologia se organiza tentando construir um percurso literário que vai dos chamados precursores à fase imediatamente anterior ao 25 de abril de 1974, marco do término da dominação portuguesa em África.

Todavia, para me ater ao propósito que norteia este trabalho, qual seja o de reafirmar a colaboração valiosa que as antologias de poemas africanos de língua portuguesa, publicadas em diferentes fases, podem prestar principalmente àqueles pesquisadores que, distantes de Portugal e da África, insistem na investigação das literaturas africanas, assumo um recorte que me propicia discutir duas experiências bastante significativas para o estudo da literatura de Cabo Verde. Vou me referir, em primeiro lugar, ao volume que resgata a produção da revista Claridade, organizado por Manuel Ferreira. O volume é publicado em 1986, cinquenta anos após o lançamento do primeiro número da revista, que nasceu na cidade do Mindelo, ilha de São Vicente. Este importante material possibilita ao investigador identificar os percursos literários traçados pelos escritores cabo-verdianos envolvidos com a publicação e, a partir deles, avaliar a produção literária levada à luz pela revista Claridade, comparando-a com a de outros movimentos literários que se desenvolviam em vários pontos da África e das Américas na mesma época. Numa fase em que o ideário colonialista instigava a produção de textos voltados à valorização do homem e da terra, definidos por processos perversos de exclusão, Claridade desponta, no campo literário cabo-verdiano, como um divisor de águas.

Algumas particularidades da revista, que, segundo Manuel Lopes, um dos fundadores, não tinha um programa, embora fosse incentivada por estímulos concretos e imediatos (Lopes, apud Ferreira, 1986, p. XXX), fornecem excelente material de pesquisa, principalmente quando se compara a revista com outras publicações que marcam o percurso literário das diferentes nações africanas de língua portuguesa.

Um fato a ser destacado na revista Claridade é o que comprova a presença do Brasil em Cabo Verde, presença essa reconhecida por vários estudiosos e referida tanto em textos literários, quanto na Imprensa em geral, em Cabo Verde. A relação afetiva, cultural e literária com o Brasil é reconhecida como estímulo a uma consciência de pertencimento e na modelagem de uma expressão literária que rompe com fórmulas gastas e preconiza a liberdade de expressão. O ardor com que os escritores modernistas brasileiros expõem o seu projeto de renovação é bem acolhido pelos escritores cabo-verdianos, Baltazar Lopes, Jorge Barbosa e Manoel Lopes, os fundadores da revista Claridade. O depoimento de Jorge Barbosa é importante para testemunhar a presença brasileira em Cabo Verde:

Influência da literatura brasileira teria havido, por certo, nos modernos escritores cabo-verdianos, que por essas paragens se lançaram na aventura da produção literária (...). Deles aproveitamos, pois, a descoberta e a experiência, que nos contagiaram com o seu entusiasmo de coisa nova. (BARBOSA, apud Ferreira, 1986, p. XXXI).

O escritor, dentre os vários poemas em que o Brasil e a literatura dos modernistas são referidos, apresenta-nos um endereçado a Manuel Bandeira, “Carta a Manuel Bandeira” no qual, poeticamente, recorta os caminhos que ligam Cabo Verde ao Brasil, através “de sonhos e de versos”, construídos “no outro lado do mesmo mar” (BARBOSA, apud FERREIRA,1986, (4), p. 25).

 Baltazar Lopes destaca a importância da leitura de romances como Menino do Engenho e Bangüê, de José Lins do Rego, Jubiabá e Mar morto, de Jorge Amado e de obras do escritor Marques Rebelo que chegavam às mãos dos escritores “em sistema de empréstimo”. O mesmo escritor ressalta a emoção e o alumbramento propiciado pela leitura de poemas de Manuel Bandeira e Jorge de Lima. Em outro momento, alude a afirmações do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, para reforçar o “lastro comum” existente entre as culturas do Brasil e as de Cabo Verde, principalmente porque constituídas por misturas étnicas e linguísticas muito próximas. (LOPES, apud FERREIRA, 1986, p.15-22). 

Em vários poemas de escritores cabo-verdianos, a proximidade de feições linguísticas e sociológicas faz do Brasil uma terra irmã, com características semelhantes às que se mostravam em Cabo Verde1. As imagens de Brasil reforçam uma visão nascida do “alumbramento” dos poetas cabo-verdianos pela poesia brasileira que, como nos diz Manuel Ferreira (1989)  era vista como “o compêndio, o modelo, (...) a fórmula sagrada” (p. 157).

O escritor Manuel Lopes também ressalta a presença da literatura brasileira na formação de uma consciência estética “nacionalizada”, motivada por um “encontro repercussivo de determinantes rácicos, (...) e por fontes quase idênticas” (LOPES, apud FERREIRA, 1986, p. XXXI). A imagem de um Brasil próximo a Cabo Verde era fortalecida pelas experiências literárias com que os modernistas brasileiros inventavam uma outra tradição: a rebeldia e a contestação de uma literatura pautada em formas rígidas e em preceitos ultrapassados. A imaginada “unidade de sentimento e de cultura” defendida por Gilberto Freyre em vários textos, inclusive em Casa Grande e Senzala, perpassa a reflexão de Baltazar Lopes em diferentes momentos da Claridade.

Ressalte-se, portanto, que a presença brasileira em Cabo Verde motivou a produção de uma gama de textos que conotam a incursão da literatura na apreensão do ambiente físico e na invenção de mitologias que ajudavam a compor um projeto cultural nacionalista, conforme afirma Pires Laranjeira (1992). Com essa intenção, as imagens do Brasil aparecem nas páginas da revista Claridade e demonstram formas interessantes da ancoragem de textos brasileiros nas ilhas. Os poetas do modernismo brasileiro, por vias às vezes contraditórias, chegaram às ilhas e ajudaram a fortalecer as imagens de uma terra em que as misturas étnicas e linguísticas apresentavam um resultado positivo. Nesse aspecto, a recepção dos textos de Gilberto Freyre em Cabo Verde – e na África portuguesa de modo geral - é material interessante de pesquisa, pois permite contrapor as diferentes leituras das ideias do sociólogo brasileiro em países africanos de língua portuguesa às que circularam no Brasil à época em que seus mais importantes livros foram publicados.

Os escritores cabo-verdianos, ao atestarem a presença importante de obras brasileiras na formação de uma consciência de nacionalidade literária, não desmerecem, entretanto, outros estímulos. Dentre esses estímulos, a revista portuguesa Presença destaca-se pelos ecos modernistas que levou a Cabo Verde. Manuel Ferreira, no item 2. do seu importante texto “O Fulgor e a esperança de uma nova idade”, prefácio ao volume de 1986 que recupera os números de Claridade, vê a revista portuguesa como um elo entre os jovens poetas cabo-verdianos e os  novos aspectos “da estética metropolitana”. A esse respeito, é importante o testemunho do crítico:

Em suma, é substancial o corpus de dados e informações escritos ou orais que iluminam a dimensão do papel fundamental da Presença coimbrã no projecto de mudança literária e cultural que agitou Cabo Verde nos anos 30 rumo ao seu destino histórico. (FERREIRA, 1989, p. XXVII).

A pesquisa dos dados fornecidos pela revista Claridade ressalta presenças exógenas na formação de uma consciência de nacionalidade em Cabo Verde, em convivência com outros elementos que contribuíram internamente para a visualização de um conjunto de preocupações e experiências comuns que delinearam uma forma de se estar no mundo. Politicamente, a intenção dos claridosos era a de “fincar os pés na terra”, como afirmam os fundadores da revista; assumir as questões específicas de cada ilha como componentes de uma cultura geral, a cabo-verdiana. Apreender Cabo Verde como um conjunto de relações concretas – geográficas, econômicas, sociais – fortalece o entendimento de um homem marcado pelas contradições do espaço físico e por questões que definem a situação de se estar nesse lugar.

As imagens de terra acentuam a angústia marítima do ilhéu, como bem percebe Gabriel Mariano (1991), circulam nos textos da revista e expõem os modos como a literatura se vê e como ela percebe a terra em que é produzida. A nova experiência encaminhada pela Claridade traduz diferentes modos de se compreender a trajetória literária das ilhas e os esforços para que a literatura pudesse nelas ganhar contornos próprios. As imagens ligadas à terra, as referências ao destino do homem cabo-verdiano – “Viver sempre vergado sobre a terra,/ (...) pobre/ingrata/querida”1 – reforçam os rumos a serem assumidos por uma literatura que se afirma em Cabo Verde. Em Claridade, ao lado dos textos literários - poemas e contos -, proliferam reflexões sobre aspectos etno-sociais das ilhas, sobre a língua falada no arquipélago, o crioulo cabo-verdiano e redefine-se um espaço cultural recortado em ilhas, definido pela presença forte do mar, dados que lhe dão traços peculiares.
 
Anos mais tarde, os poemas da Antologia dos Novíssimos Poetas Cabo-verdianos; Mirabilis de veias ao sol, organizada por José Luís Hopffer Cordeiro Almada e publicada pela Editora Caminho, em 1991, irão apresentar um importante material de produção literária. As revelações poéticas que, em inúmeras publicações, vieram à luz após o 25 de abril de 1974, revelam o ressurgimento da poesia cabo-verdiana em contornos temáticos, estéticos e ideológicos cultivados no pós-independência.

Dado o grande número de poetas que fazem parte da coletânea, torna-se necessário estabelecerem-se alguns norteadores para que as diferentes feições do volume possam ser avaliadas. A primeira característica que chama a atenção do leitor está na apresentação dos poemas: alguns escritos em crioulo, outros em francês e em inglês, além da grande maioria em português. Como assinala o organizador, a realidade sociolinguística vivida pelo povo das ilhas de Cabo Verde transpõe-se para a Antologia e torna-se um elemento da pluralidade que se expõe no volume.

Evidenciam-se, por outro lado, alguns dos sinais dos novos tempos literários das ilhas de Cabo Verde: a feição metalinguística encaminha uma tendência também presente em antologias de Angola e Moçambique que acolheram os textos poéticos publicados após 1975. As indagações dos poetas sobre a função da poesia nas tardias sociedades pós-coloniais alimentam o material poético a ser trabalhado por eles. A reflexão, via literatura, sobre o lugar do poeta e da poesia nos novos tempos do pós-independência, em Cabo Verde, está, por exemplo, no poema “Meus versos”, de Alberto Lopes, que apresentando seu poema como porta-voz dos novos tempos e seus versos como “seivas que alimentam nova vida/ pólen de novo amor e de nova alegria”, registra a tônica do período. Ao falar de si a literatura busca outros caminhos e procura delinear as feições da multiplicidade das experiências e vivências em Cabo Verde.

Em vários poemas, a alusão reiterada ao novo diz bem do propósito de se perceber a liberdade conquistada como expressão de um “mundo sem cor, sem cárcere, sem limite”, como bem acentua o verso de Alberto Lopes. Já José Cabral em “Um poema para o ano dez”, ao conclamar os seus pares para a construção de “um poema diferente”, insiste no abandono de métricas e rimas bem comportadas e na eleição de novas formas que se façam próximas ao canto dos tempos novos. Os ventos desses novos tempos induzem o labor poético a reconfigurar a face multifacetada de espaços onde as tentativas de experimentação de novos ritmos e formas assumem as transformações que aportaram às ilhas do arquipélago.

Com a intenção de celebrar as “lusoáfricas”, as ilhas onde brota a “poesia morena”, Correia e Silva brinca com as possibilidades da língua portuguesa na elaboração do poema “A poesia do reverso”, insistindo em aliterações e jogos de sonoridades: “tão linda a ledice lírica/vero verso e vertigem” (p. 218). No poema, a imagem de Pasárgada, tomada a Manuel Bandeira, relembra a evasão aflitiva dos anos de opressão e alude aos novos tempos simbolizados pelo “pássaro da paz”. Por outro lado, valorizando também recursos fônicos, Jorge Soares cria “Uma história de amor” (p. 269-70), imprimindo velocidade aos versos que estruturam a história das “personagens” António e Julieta. Sem a preocupação de acentuar no poema uma função metalinguística explícita, Soares o elabora com a utilização de formas mais lúdicas que permitem que nele se ouça a “trova nossa”, cantada por Cabral no poema “Um poema para o ano dez”(p. 74-78).
 
Em vários poemas exploram-se os materiais de poesia que se vêm cultivando nos países africanos de língua portuguesa na busca de ultrapassagem de componentes  marcadamente sociais. Como acentua José Luís Hopffer Almada, os percursos dos novos poetas de Cabo Verde fazem-se semelhantes à mirabilis, que cresce “na margem desértica do mar” (p. 26). A imagem da planta, ao revigorar a nova poesia, disseminando-a pelos caminhos atordoados pelo sol e pela dureza dos novos tempos, reestabelece as experiências e os sentimentos individuais que se apropriam dos versos do poema. No título da coletânea, os elementos sol e mar reforçam a experiência literária propiciada pela construção poética que se faz mirabílica,resistente às intempéries, às agruras dos ventos e das secas, e metaforizam as novas paisagens que os poemas anunciam muitas vezes em crioulo.

Muitos poetas da coletânea, semelhantes a outros, cujos poemas estão em antologias dos novos poetas de Angola e de Moçambique, procuram retomar as questões sociais e os recursos poéticos são enfatizados como forma de se ressaltarem os traços fortes da cultura.1  Vozes femininas deixam-se ouvir no espaço da antologia e tecem, com os recursos poéticos, o que Simone Caputo Gomes2 denominou de “cumplicidade de fêmeas”, retomando verso do poema de Dina Salústio, publicado à p. 155 da Mirabilis de veias ao sol. É nesse espaço de cumplicidade, de mãos dadas com o outro, que o eu-poético deixa que as palavras moldem uma dimensão feminina da vida preocupada também com a captação dos “sussurros de prazeres dolorosamente cambiados em mercado negro”3. Os textos poéticos permitem falar de medos e indecisões, dos cercos e das armadilhas que definem o espaço das mulheres acostumadas com a tradição da espera: “presas ao cais, esperando, submissas, os amantes, filhos e maridos que saíam para a pesca da baleia ou iam estudar em Portugal”, como nos informa Carmem Tindó Secco (1999).4

Os “Exercícios poéticos”, de Vera Duarte, transgridem os espaços demarcados e acolhem as “imagens interditas e as sensações proibidas” (p. 518), e de algum modo procuram romper com a tradição de mulheres submissas e silenciadas. Os versos da poeta deixam-se visitar por sensações que perpassam o corpo da mulher e as letras do texto recolhem as indecisões que pontuam o medo de entregar-se ao prazer: “Ceder à paixão, deixar-me arrastar por esta força magnífica. Sentir-me feliz...”(p. 521). Ou articulam estratégias que ajudam a sufocar as pulsações de um corpo que aspira ao prazer:

Sublimar é palavra d´ordem. O amor e a paixão a libido e o prazer. No altar dos valores supremos. Sublimar e agora manter estoica e estupidamente secretos os diálogos que comigo mantenho contigo.(P. 518).

Outros poetas, na Antologia Mirabilis de veias ao sol, buscam fortalecer as tradições que recuperam a linguagem do corpo e de seus desejos. A poesia intimista se mostra no traçado de uma poética que conclama as manifestações do corpo, as imagens que traçam a geografia múltipla das ilhas e as sonoridades várias que a escrita procura recuperar. Os poemas recolhem imagens e odores das ilhas mágicas em festas imensas de cheiros. Os poetas voltam-se para o seu próprio interior e deixam emergir as inquietações que os cabo-verdianos vivenciam, quer no contato com a escassez de chuvas e dos ventos fortes que varrem as ilhas, quer no inexorável destino que os impele a outros mundos em busca de sobrevivência. Daí a constante referência, em muitos dos poemas, à solidão, à carência de afeto e ao fardo duro legado pela geografia das ilhas.

Ao recuperar algumas tendências que já se mostravam em diferentes momentos da poesia africana de língua portuguesa, a Antologia Mirabilis de veias ao sol faz-se, como as demais antologias, um espaço de gestação de identidades. Poetas e poetisas - ainda que abandonem a feição marcada pelo compromisso com projetos políticos e desviem do meramente circunstancial, tão próprio à poesia de combate,dos sentidos previsíveis da urgência com que a literatura percorreu, em vários pontos da África, as trilhas abertas pelos projetos de unidade nacional - também registram o desencanto que caracterizou a época do pós-independência. Tal sentimento incita a produção de novos arranjos expostos na Antologia Mirabilis de veias ao sol e acentua a preocupação com o fazer poético e com a definição do lugar da literatura numa sociedade de diferentes sotaques e múltiplas colorações.

Em muitos poemas em que a escrita percorre as sonoridades do crioulo, trazendo- as para a página do livro, procura-se recuperar elementos herdados da tradição oral, visíveis em versos como “caco-lecó,/gal djá cantá,/nhôs dã nhá pó/môça robada”1. Em outros poemas podem também ser percebidas outras articulações com a terra, com a corporeidade das ilhas, com traços da geografia de espaços “entri mar i céu” (p. 399). A tradição da poesia participante, aos poucos, cede lugar à procura de outros rumos, ainda que a rudeza das necessidades concretas insista em exigir o compromisso do poeta com os problemas do país.

Quando se pensa nos sentidos encaminhados por um tipo de literatura que se produz atenta aos acontecimentos, cuidadosa com as tradições e com a memória oral, talvez seja possível identificar nesse esforço o desejo de se constituir enquanto instituição na qual se gestam alguns dos sentidos explicitados por Pierre Nora (1984), ao cunhar o conceito de “lugares de memória”, para identificar funções específicas de espaços em que as sociedades modernas, impulsionadas por rápidas mudanças, imaginam organizar o passado e preservar os vestígios de sua história. A escrita literária, ao acolher os costumes e tradições, abre-se também às alterações que se vão inscrevendo nos cenários em transformação. Por isso muitos temas presentes na Mirabilis de veias ao sol são também indicadores do mal-estar dos nossos tempos porque ratificam a certeza de não se possível reproduzir os gestos que acolhem as lembranças de manifestações coletivas que se perdem na corrente de transformações da vida contemporânea.

A reedição das revistas Claridade, em 1986, ao salvar do esquecimento os documentos que testemunham o esforço de uma geração para firmar os alicerces literários de uma nação em construção, propicia o contato com textos que, em sua variedade, revelam os caminhos que os escritores, os chamados claridosos, procuravam trilhar. O volume organizado por Manuel Ferreira, que também é responsável pelo excelente texto de introdução com que analisa a produção literária de gerações anteriores e posteriores à Claridade, assume, de certo modo, a eficácia dos arquivos. O gesto de salvar da perda irreparável o material publicado nos números da revista, publicados no período de março de 1936 a dezembro de 1966, possibilitou aos pesquisadores vasculharem, mesmo à distância das ilhas, as referências de uma época e investigarem as reservas de memória de sociedades transformadas pela violação colonial (Nora, 1984). O gesto de Manuel Ferreira aquece a frieza dos dados coletados com a paixão com que pesquisou as culturas africanas, particularmente a cabo-verdiana, para doar aos pesquisadores de outras épocas a efervescência de manifestações que concretizaram projetos literários que cada vez mais se distinguem uns dos outros.

É com um pouco da paixão dos colecionadores de objetos, dos organizadores de coletâneas literárias que percebemos as antologias como um material de pesquisa em que pulsa uma variedade de vozes. Na recepção dessas vozes, recuperam-se vestígios da memória que a escrita procurou perpetuar. Os gestos de leitura  retomam os dados da memória, os apelos do passado já transmudados pela experiência da escrita e os inscrevem em novos atos de preservação de lembranças fertilizadoras.

Em novos arranjos, os textos fornecidos pelas coletâneas analisadas procuram dar conta dos conflitos vividos por sociedades que se localizam entre o culto de tradições e a experiência, às vezes brutal, de seu apagamento; entre as manifestações características da cultura e a inserção dos valores que a escrita arrebanha. Participam, portanto, como os de outras coletâneas e antologias literárias, das contradições dos “lugares de memória”. Inseridos em produções híbridas que acolhem as perdas de grupos, as reservas de memória, precisam contar com outro tipo de capital simbólico que a exposição do material coletado aufere de públicos diferenciados. Por isso, esse material literário - que se produz com a disposição de resgatar do esquecimento tendências e feições literárias que desarticulam uma visão totalizante das literaturas africanas e reafirmam projetos literários de feição nacional – fortalece os contatos com novos públicos, com pesquisadores distantes que chegam aos textos, às vezes, sem muito conhecimento das motivações histórico-sociais que os produziram. No caso específico do pesquisador brasileiro, é sempre muito agradável ver-se refletido em muitos dos textos que as coletâneas recuperam e, através deles, poder conhecer as circunstâncias em que a literatura do Brasil esteve presente na formação literária das ex-colônias portuguesas na África e, como acentua Manuel Ferreira, “com maior expressão e profundidade” em Cabo Verde.

 

Notas   

1 Este texto está publicado no número especial da revista Portuguese Literary & Cultural Studies, n. 8, 2001. Número organizado por Ana Mafalda Leite. LEITE, Ana Mafalda (Org.). Cape Verde – language, literature & music. Darmonuth (USA): University of Massachusetts Dartmouth, 2003. p. 303-314.
2 Refiro-me, particularmente, à Antologia temática de poesia africana; na noite grávida de punhais (1975, organizada por Mário de Andrade e à coleção No reino de Caliban (1997), organizada por Manuel Ferreira. 
3 É interessante observar as imagens de Brasil que circulavam, na época, entre os escritores caboverdianos. Manuel Ferreira refere-se à diversidade de visões sobre o Brasil e, no prefácio à edição da revista Claridade, de 1986, alude muito adequadamente ao “mito do Brasil”, nascido da percepção do país latino-americano como um “lugar onde se forjou uma nova fisionomia humana e social”.
4 Versos do poema “Irmão”, de Jorge Barbosa, publicado em Ambiente, 1941, p. 20.
5 Ver, sobre as perspectivas da nova poesia de Cabo Verde, o ensaio “Mar, memória e metapoesia, a lírica caboverdiana, de Carmem Lúcia Tindó Secco (1999).
6 GOMES (2001).
7 Verso do poema “Apanhar é ruim demais”, de Dina Salústio, p. 159.
8 SECCO (1999)
9 Versos do poema de Mário Macedo Barbosa, “Caco-lecó” ( Apud Ferreira, (7) p. 33).


Referências

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**  Maria Nazareth Soares Fonseca é Professora Aposentada UFMG. Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas, período 1995-2018. Pesquisadora 1D do CNPq. Coordenadora Grupo de Estudo Estéticas diaspóricas desde 2010. Autora dos livros: Brasil Afro- Brasileiro (2000); Poéticas afro-brasileiras (2003); Literaturas Africanas de Língua Portuguesa: percursos da memória e outros trânsitos (2008), Mia Couto: espaços ficcionais (2008). Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015). Coorganizadora do volume 4 da coletânea Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2011).

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