Literatura cabo-verdiana e hibridismo:
diálogos com a Literatura modernista brasileira e crioulização*

 

Norma Sueli Rosa Lima**

 

 

A produção literária em Cabo Verde, que dialogou com a realizada mais ou menos na mesma época no Brasil (década de 30 do século XX em diante) teve como elemento propulsor a discussão a respeito da identidade, tanto brasileira (existente desde o século XIX e impulsionada, principalmente, pelas ideias modernistas brasileiras predominantes Pós-Semana de 22), quanto cabo-verdiana (investigada, igualmente, desde o século XIX e substanciada a partir da década de 30, pós Revista Claridade). Identidades vislumbradas através da Língua e da Literatura, no contexto das relações étnicas estabelecidas em ambas as nações evidenciarão a memória da língua tupi no Brasil, extinta por ordem do Marquês de Pombal, e a do crioulo ainda existente em Cabo Verde.

Modernamente, debates sobre as sociedades híbridas assumiram nova dimensão porque não se trata mais de discutir o apagamento das marcas africanas (no caso da cabo-verdiana) ou das afro-indígenas (no caso da brasileira) em culturas mestiças, pois já estamos bem distanciados da teoria do embranquecimento (ROMERO, 1894) e do peso que as relações étnicas entre a Casa Grande e a Senzala (FREYRE,1998) mostraram na tentativa de evidenciar a harmonia inexistente entre esses dois espaços. Percebemos com Boaventura Santos e Stuart Hall, entre outros, que as identidades não podem ser caracterizadas como rígidas ou imutáveis, sendo resultados transitórios e fugazes de processos de identificação nos quais, mesmo naqueles aparentemente sólidos - em termos culturais - como as de homem, mulher, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem negociações de sentido que os estudos pós-coloniais sempre vêm atualizar.

Trata-se de compreender com Bhabha estes fenômenos como choques de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis, em última instância, pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a identidades que se caracterizam como identificações em curso. No caso caboverdiano há uma cultura permeada por outras: pela portuguesa - de caráter semiperiférico - e pela guineense (de caráter periférico). Ao tentar se definir o estatuto identitário da cultura portuguesa pelo viés de uma cultura fronteiriça, percebemos que Portugal nem era semelhante às identificações culturais positivas das culturas europeias, nem nunca foi suficientemente diferente das identificações negativas que caracterizariam, desde o século XV, os outros ou os considerados “não europeus”. A manifestação paradigmática desta matriz intermediária, semiperiférica está no fato de os portugueses terem sido, principalmente a partir do século XVII devido à perda do seu poderio marítimo, o único povo europeu que ao mesmo tempo observava e considerava os povos das suas colônias como primitivos ou selvagens, sendo ele próprio observado e considerado, por viajantes e estudiosos dos países centrais da Europa do Norte, quase nessa condição. (CARDOSO, 1998). Bebendo de matriz semiperiférica, Cabo Verde se voltou para o Brasil - periférico como ele - e para si mesmo - questionando a sua feição identitária por ocasião da época da publicação da revista Claridade, em 1936.

A propósito, o XI Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas foi realizado entre 21 a 25 de Julho de 2014 na Universidade de Cabo Verde, no Mindelo,  em função de aquela cidade ser um feixe de culturas como ficou claro na fala de apresentação do evento realizada por Cleonice Berardinelli, quando trezentos estudiosos e divulgadores da Língua Portuguesa e das culturas por ela expressas atuantes em oitenta e três Universidades debateram acerca do termo “lusitanista”, na perspectiva das quatorze áreas de abrangência (Literatura, Linguística, História, Teatro, Cinema, Antropologia e outras).

Que não nos perturbe, contudo, a nomenclatura de “lusitanistas” porque ela não pretende priorizar o que seria uma espécie de discutível “centro” de onde emanaria o poder. O termo “lusitanista” refere hoje, tão somente, o laço generoso de uma língua que une milhões de falantes na Europa, América, África, Ásia, Oceania, sem as falaciosas pretensões de hierarquia e de poder. Em tempos pós-coloniais, a história não apaga, não pode nem deve apagar as marcas do passado colonial. Por outro lado, apesar das polêmicas relações que o fundaram, o resultado tem hoje um ganho inabalável que é o da existência de uma comunidade de falantes da mesma língua portuguesa que tem que garantir o seu lugar de importância frente a outras línguas e culturas mundiais. É esse o seu projeto cultural e político. (BERARDINELLI, 2014)

A perspectiva otimista da comunidade lusófona, ainda que não tenha se concretizado com ênfase, evidencia ao menos a sugestão da diversidade. O Arquipélago sempre esteve aberto à receptibilidade ao longo do tempo, assim se explica, por exemplo, a singularidade de algumas manifestações culturais caboverdianas em que se notam laivos da África e da Europa, ao mesmo tempo que delas se distanciam. A investigação sobre a identidade caboverdiana se consubstanciou muito antes da Independência do país (1975), remontando ao momento em que o crioulo, o primeiro elemento mestiço das ilhas ganhou maturidade, tornando-se a língua de comunicação do cabo-verdiano, ao mesmo tempo em que se configuraram a personalidade e a consciência do homem islenho, com filosofia e maneira próprias de estar e de ver o mundo.

Mostrar as relações étnicas e literárias entre as produções de Cabo Verde e Brasil está em sintonia com o fato de ser este o que mais investiga e publica estudos sobre as literaturas e as culturas de expressão portuguesa (DUARTE, 2014). A língua portuguesa, como expressão destas Literaturas e em função de ser falada por uma diversidade de povos, passou de expressão imposta pelo colonizador - no sentido fascista de obrigar a falar (BARTHES, 1986) - à manifestação antropófaga (ANDRADE, 1985) que devorou a língua oficial produzindo uma outra, também híbrida, como são as suas identidades (cabo-verdiana e brasileira).

A caboverdianidade entendida no século XX como conceito enlaçado ao da busca pela identidade do cabo-verdiano afastado de sua imagem projetada como retrato do colonizado precedido pelo do colonizador (MEMMI, 2007), na perspectiva contemporânea passa de ideia telúrica para planetária e o seu intento consiste muito mais na procura do humanismo do que em celebrar uma identidade fechada, que na verdade, nunca existiu. Desde o final da década de 90 escritores de Cabo Verde se inscrevem como homens de todas as raças que trazem em si os mares de todo o mundo, em consonância com a tese de que a nação caboverdiana, como a de todos os países colonizados para fazermos referência mais direta aos casos brasileiro e cabo-verdiano aqui tratados, tendo sido inventada pelo imaginário europeu (ANDERSON, 1989) é agora recriada por todos os seus habitantes, incluindo os da diáspora, cujas trocas culturais, antes de descaracterizarem a cor local, as enriquecem.

O diálogo literário processado entre a Revista Claridade (1936-1960) e o Modernismo Brasileiro, continuado por gerações subsequentes que o retomaram e/ou criticaram, se constitui um marco além das leituras e produções intertextuais da poética ou da prosa por trazer uma triangulação: ao voltar-se para o Brasil, Cabo Verde deixa de lado a Europa e discute a posição diante da concepção do diferente (Portugal) e do “mais semelhante” (Brasil) em termos do processo histórico colonizador. Neste sentido, como entende ABDALA JUNIOR (2004), é central analisar como se efetiva a administração não apenas da semelhança com o Brasil, mas também o da diferença, tecendo articulações com toda a problemática da mestiçagem nos estudos sobre hibridismo cultural traduzidos no texto literário.

A concepção de que os textos produzidos (e lidos) por uma comunidade de leitores não se atêm às intenções propostas por seus autores, percebe o conceito de Língua enquanto patrimônios histórico, político e social (ECO, 1986, p. 71,).  Quando Gilberto Freyre afirmou que os caboverdianos copiavam a literatura brasileira (1953) desconheceu a possibilidade de procedimentos discursivos dialógicos, pois se adotarmos um dos postulados desenvolvido no Manifesto Antropófago - 1928 - (devorar o recebido, selecionar o que interessa) adaptando-o à dinâmica da leitura que os cabo-verdianos realizaram das obras modernistas, perceberemos que a moderna literatura caboverdiana - a claridosa - trouxe para o ambiente crioulo a riqueza das vozes brasileiras, em coro polifônico e permeável. Obviamente, a antropofagia de Oswald de Andrade é metafórica, indicativa de a edificação da cultura brasileira ter-se construído através de um processo violento: barbárie nativa que se apropria dos elementos selecionados da cultura alheia. Tal ato reveste-se de violência porque não é mediado por nenhum aparato cultural anterior, mas apropriado e incorporado de maneira que se deixou mesclar, sob a égide de uma suposta cultura nacional.

A violência proposta por Oswald estabeleceu uma nova leitura do gênero nacional, deslocando para as sociedades periféricas um centro do qual nunca fizeram parte, ao mesmo tempo que trouxe a consciência da margem em que estavam alojadas ou o do seu entre-lugar (SANTIAGO, 1978). A construção do mito do matriarcado de Pindorama garante este deslocamento consciente que trai o nacionalismo ufanista dos primeiros anos da República e as propostas cientificistas da Antropologia de Freyre. A reflexão de Oswald é a única capaz de explicar as especificidades dessas culturas, na medida em que, por um lado, reconhece a posição nuclear da metrópole lusitana entre as suas colônias e por outro, sua posição periférica em relação às potências europeias. Centro para as suas periferias (as colônias), periferia para o centro político econômico-internacional, Portugal desempenharia esse duplo papel que viria descaracterizar a originalidade de sua cultura: para Boaventura, não existe uma cultura portuguesa, mas uma forma cultural portuguesa, “o estar na fronteira”; ao mesmo tempo que absorve os traços da cultura europeia e os transmite às suas colônias, nelas se amalgama e passa a receber o rótulo de cultura exótica para as potências centrais. O homem português é o civilizado diante do seu colonizado, ao mesmo tempo que é o bárbaro para o civilizado europeu:

Andrade propõe-nos um começo que, em vez de excluir, devora canibalisticamente o tempo que o precede, seja ele o tempo falsamente primordial do nativismo, seja ele o tempo falsamente universal do eurocentrismo. Esta voracidade inicial e iniciática funda um novo e mais amplo horizonte de reflexividade, de diversidade e de diálogo donde é possível ver a diferença abissal entre a macumba para turistas e a tolerância racial. Acima de tudo, Oswald de Andrade sabe que a única verdadeira descoberta é a autodescoberta e que esta implica presentificar o outro e conhecer a posição de poder a partir do qual é possível a apropriação selectiva e transformadora dele. (SANTOS, 1992, p. 119)

No sentido oswaldiano, a cultura cabo-verdiana é também antropófaga, capaz de subverter a ordem das supostas influências dos discursos que receberia por se constituir como mestiça, resultado do contato de diversos grupos que foram colonizar e povoar o Arquipélago.

A zona fronteiriça é uma zona híbrida, babélica, onde os contactos se pulverizam e se ordenam segundo micro hierarquias pouco susceptíveis de globalização. Em tal zona, são imensas as possibilidades de identificação e de criação cultural, todos igualmente superficiais e igualmente subvertíveis (...) (SANTOS, 1992, p. 134)

 
Deste modo, a forma cultural de fronteira alimenta-se de fluxos constantes, que a atravessam como os ventos - é uma porta de vai-e-vem, nunca escancarada, nunca fechada. Pensemos nos versos do premiado autor caboverdiano Arménio Vieira:

 CONSTRUÇÃO NA VERTICAL

Com pauzinhos de fósforo
podes construir um poema.

 Mas atenção:
o uso da cola estragaria o teu poema.

Não tremas: o teu coração,
ainda mais que a tua mão,
pode trair-te. Cuidado!

Um poema assim é árduo.
Sem cola e na vertical,
pode levar uma eternidade.

Quando estiver concluído,
não assines, o poema não é teu.
                                   (2006, p. 28)

Um poema é construção de palavras devoradas da língua de outrem com versos que seguem para olhos de outros, fruto de tantas leituras, como o é o livro Mitografias do qual esse foi retirado, que homenageia e relê Rimbaud, Fernando Pessoa, João Cabral, Neruda, Lorca, entre outros. Texto que circula e agrega outras tantas significações, leituras e (re)interpretações capazes de subverter a ordem.

Pensando nos laços Brasil Cabo Verde, GOMES (2008) redimensiona os elos fortes entre essas culturas quando a memória fixa e expressa valores, evidenciando sentimento de identidade que conjuga todo o Arquipélago e se estende à diáspora, gerando uma consciência de grupo bem demarcada.
Concluímos que pensar a relação entre Cabo Verde e Brasil, em um primeiro momento pela via da recepção dos textos modernistas, se deu na perspectiva desse contato como mais um elemento para se compreender a cultura cabo-verdiana em sua vocação para o Outro, sendo a errante que passeia e é visitada por vários lugares e sentidos. Assim, tanto a experiência local quanto a de diáspora contribuem para esse enriquecimento.

Nota

* In: Anais do II Congresso Nacional Africanidades e Brasilidades,  n. 2, UFES, 2015, p. 1-10.
 

Referências

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http://www.unicv.edu.cv/images/lusitanistas

Data do acesso: 10/07/2014.

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** Norma Sueli Rosa Lima é professora adjunta do Departamento de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Líder do Grupo de Pesquisa UERJ/CNPq "Brasil Cabo Verde: Literatura, Educação e História". Autora de (Re)visitando Claridade: o encantamento da poesia cabo-verdiana com o Modernismo brasileiro, entre outros livros e artigos. 

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