Morna e caboverdianidade1

 

Geni Mendes de Britoi

Tânia Maria de Araújo Limaii

Simone Caputo Gomesiii

 

Não procureis no ar desta palavra a origem, Não é brando calor: é só dolência e pranto! Traduz a languidez da nossa raça, o encanto. Dêsse vago sonhar que também dá vertigem.
A cantilena, a dança e o ritmo seus corrigem. Quaisquer erros por si, pois dizem “dor”: porquanto. Do “mourn” inglês vem morna, e é lamentar; e tanto. Que é o coração chorando... E que outra prova exigem?
“Mourner” é quem a canta, é “mourner” quem a dança.
Ela pode causar a síncope que cansa
E ela pode causar a síncope que mata...
Ela é o Pranto Antigo, a dor da nossa raça...
Ela é a alma de Eugénio, é a minha, onde perpassa. A unção da morbidez que em nós se fez inata...
(José Lopes, 1935)

 

Apresentar Cabo Verde para o mundo: essa tem sido uma importante função exercida pela música do arquipélago. Durante o período da pós-independência de Cabo Verde, isto é, a partir de 1975 até hoje, 50% da população tem emigrado para Europa e Estados Unidos. No entanto, mesmo geograficamente distantes os que partem conservam a língua cabo-verdiana (o crioulo) e a música como forma de pertencimento e de identificação com os que ficaram.

A música cabo-verdiana, enquanto expressão cultural constitui uma das mais importantes alavancas dessa sociedade insular, logo, uma das componentes mais representativas da sua identidade cultural. Os ritmos e os sons de Cabo Verde, em2 especial a morna, sua música tradicional, são elementos importantes de afirmação identitária, tanto para os cabo-verdianos residentes no arquipélago, quanto para os que vivem longe dele. 

A morna é um dos “vários gêneros musicais que existem em Cabo verde, a par da Coladeira, do Funaná, do Batuko, do Colá San Djon, da Tabanka, da Bandeira e do Finaçon” (MONTEIRO, 2013, p. 22). Extrapolando as fronteiras das ilhas, a morna conseguiu vencer a descontinuidade territorial para se implantar no universo do arquipélago. Segundo a Enciclopédia da Música em Portugal no século XX, citada por Moacyr Rodrigues (2015, p. 1), “musicalmente, a morna se configura numa canção de estrutura melódica e harmônica tonal, de ritmo quaternário lento”. De maneira especial, ela propicia a fama do pequeno arquipélago, tornando-o conhecido em outras partes do mundo (DIAS, 2004, p. 2).

Construída como um dos principais símbolos de Cabo Verde, a morna também confere, ao longo dos tempos, maior solidez à ideia da existência de uma comunidade cabo-verdiana para seus próprios membros constituintes.

Muitas discussões ainda são travadas sobre a origem da morna enquanto gênero poético e musical (FERREIRA, 1985, p. 194-198). Seu lugar no cânone cabo-verdiano foi consagrado nas décadas de 1920 e 1930 pelo poeta Eugénio Tavares (1867-1930), o primeiro a transcrevê-la e adotá-la, elevando-a a um grau mais alto de conceptualização (CARDOSO, 1983, p. 82).

A origem da morna é ainda um espaço de debates e explicações contraditórias entre ensaístas, músicos, novelistas e poetas que procuram mostrar seus diferentes conceitos. Discorrer sobre sua origem envolve-nos diretamente em uma pluralidade de versões da história desse gênero, que se manifesta na poesia, na música, na dança, na prosa de ficção, e está relacionada às manifestações próprias da cultura popular e da história de Cabo Verde. Aclamada como “a expressão da alma de um povo”, tornada símbolo de um país, ela fortalece em cada cabo-verdiano o sentimento de pertencimento a uma nação.

Uma das referências brasileiras nos estudos sobre Cabo Verde, a professora e pesquisadora Simone Caputo Gomes, afirma que “traçar a história da morna é tarefa complexa, que tem envolvido músicos, intelectuais e o cabo-verdiano mais humilde” (GOMES, 2008, p. 149). Surgida provavelmente entre os séculos XVIII e XIX, a morna está presente em todas as ilhas que formam o arquipélago. De acordo com o poeta Eugénio Tavares (1932, p. 17), ela seria originária da Ilha da Boa Vista. Como diz Caniato: “no século XIX a morna já era cantada e dançada no Arquipélago. E por seu caráter dolente e nostálgico, é possível que tenha recebido alguma influência dos lamentos árabes marroquinos” (CANIATO, 2005, p. 73).

Félix Monteiro apresenta de forma rica e esclarecedora uma definição para o vocábulo morna, retirado do posfácio escrito por José Osório de Oliveira:

Morna é o nome que designa, ao mesmo tempo, a dança e as canções típicas de Cabo Verde. Ritmo de baile, palavras e músicas das canções, são coisas inseparáveis. Não se trata com efeito de uma dança acompanhada de palavras como qualquer outra. O facto do povo de Cabo Verde dançar a morna cantando (repare que não se trata de uma dança de roda) indica claramente que, para ele, gestos, letra e melodia são formas indistintas do mesmo ritmo interior. Pode afirmar-se, portanto, que a morna resume em si todos os sentimentos e condensa todas as aspirações artísticas do cabo-verdiano (MONTEIRO, 1996, p. 131).

A origem da morna está relacionada com a formação da sociedade cabo- verdiana. Conforme António Germano Lima (2002, p. 248), pode haver existido uma fase primordial da morna na Ilha da Boa Vista, de forte influência afro-negra, a base de queixumes e lamentações provocadas pela dor da escravidão. Lima conta que os escravos africanos e seus descendentes são apresentados como os principais personagens da história da morna, e que o nascimento desta ocorreu graças à união da cultura africana com as particularidades da história e da geografia cabo-verdiana. Ele acrescenta que “a morna surge da dor, dos queixumes e das lamentações dos escravizados, expressos em linguagens e gestos imperceptíveis para os colonizadores, mas sempre na forma de cantos e danças” (LIMA, 2001, p. 247).

Procedente de uma população de origem “afro-negra”, o processo de criação da morna se dá todo ele no arquipélago de Cabo Verde, mais especificamente na Ilha da Boavista. Tendo em vista a relação do surgimento da morna com as especificidades locais, podemos compreender o caráter que assume a afirmação da africanidade. A compreensão dessa hipótese passa pelo conhecimento da história da escravidão presente no arquipélago desde sua colonização (DIAS, 2004, p. 80).

Faremos aqui uma pequena apresentação do arquipélago de Cabo Verde para que o leitor tenha uma visão mais próxima dessas ilhas oceânicas e de cultura híbrida, fruto da fusão de diversos povos oriundos da Europa e da África; arquipélago permeado por diversas línguas e diferentes culturas que participaram da sua formação social e geraram a identidade cabo-verdiana, ou a “caboverdianidade”, como a nomearam mais tarde.

Cabo Verde está situado na zona tropical do Atlântico Norte, a 500 quilômetros da costa do Senegal e tem uma superfície de 4.033 km, a qual é constituída por dez ilhas de origem vulcânica distribuídas em dois grupos. O primeiro é o de Barlavento, ao Norte, com uma área total de 2.230 km. Constituem esse grupo as ilhas de Santo Antão, Boa Vista, Santa Luzia (desabitada), São Nicolau, Sal e São Vicente, e os ilhéus desabitados dos Pássaros, Branco e Raso. O segundo grupo, denominado Sotavento, ao Sul, possui uma área de 1.803,37 km. As ilhas pertencentes a esse grupo são: Fogo, Maio e Santiago, e os ilhéus desabitados de Santa Maria, Luís Carneiro, Sapado, Grande e de Cima. Dentre as ilhas, a maior é a de Santiago, com cerca de 990 km, e a menor é a Santa Luzia, com 35 km.

A capital é a cidade da Praia, situada na ilha de Santiago. Foi Santiago o lugar onde se deu o processo de povoamento de Cabo Verde e que se mantém até hoje como a ilha com o maior número de habitantes em todo o arquipélago. A ilha de São Vicente é a segunda ilha mais povoada; sua capital, Mindelo, foi durante longas décadas o centro econômico e cultural nacional.

A origem da morna está relacionada também com o Landu, Lundu, ou Lundum, canto e dança de origem africana, levado para o Brasil pelos escravos, principalmente de Angola, e lá difundido no século XVIII. Nas ilhas de Boa Vista e São Nicolau, o Landu é ainda hoje cantado e dançado nas cerimônias de casamento, no que Antônio Germano Lima denomina de “dança nupcial da meia noite” (LIMA, 2002, p. 179), e acrescenta:

O canto-dança Landú da ilha de Boa Vista é uma representação simbólica, de origem ritualista, através da qual os dançantes, a anteceder a primeira noite de núpcias, transportam-se sugestivamente para um jogo sexual, como que a provar para toda a comunidade a virilidade do homem e a fertilidade da mulher [...]. Na Boa Vista, a dança do Landú (badjâ landú) representa um dos pontos mais altos das cerimônias do casamento e o momento mais esperado do baile cerimonial (LIMA, 2002, p. 179).

O escritor António Aurélio Gonçalves, nos informa que a morna advém das “cantadeiras”, mulheres que cantavam determinados cantos, respondidos em coro. Como afirma José Alves dos Reis, “as cantadeiras boa-vistenses tiveram um papel importante não só na composição de mornas, como na sua difusão pelas ilhas” (REIS, 1984, p. 3). Sobre esse ponto, salienta Rodrigues:

Todas as fontes são concordantes ao afirmar que as mornas eram cantadas por mulheres e que eram produzidas mais por elas do que por eles. Para além disso, as mornas mais antigas de que se tem memória, foram também elas, compostas e divulgadas por mulheres, julgando-se que terão constituído um protótipo. Assim, o cruzamento destas diversas fontes atesta não só o papel fundamental que as mulheres terão tido na produção mornística, como nos dá novos elementos sobre a forma como terá surgido e se terá desenvolvido este género musical em Cabo Verde (RODRIGUES, 2015, p. 48).

Vasco Martins afirma que essa forma de expressão musical, utilizada só por mulheres, pode não ter sido a morna, mas sim outra forma de canção de trabalho, lavoura, lavagem de roupa, carregamento de mercadorias (MARTINS, 1989, p. 18). Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo confirmam a hipótese de que “a morna era cantada principalmente por mulheres, mas mais tarde, saiu do salão, e passou a ser cantada por homens, nos botequins ou nos lugares de passá sabe”3 (RODRIGUES; LOBO, 1996, p. 20).O livro intitulado “Mornas: cantigas crioulas”, publicado em 1932 e escrito pelo poeta Eugénio Tavares, apresenta uma rica contribuição sobre as origens da morna, bem como sua trajetória nas diferentes ilhas do arquipélago. Consideramos importante apresentar ao leitor uma breve referência de um dos grandes precursores da morna cabo- verdiana: o poeta Eugénio Tavares.

Eugénio de Paula Tavares nasceu na Vila de Nova Sintra, na ilha da Brava, no dia 18 de outubro de 1867 e faleceu no mesmo local, no ano de 1930, aos 63 anos. Como jornalista e escritor, Eugénio Tavares dominou o cenário cabo-verdiano nas primeiras décadas do século XX, atingindo um lugar de destaque como “figura de intelectual e cidadão, que em tudo e sempre, manteve-se coerente com os seus ideais de homem livre” (FERREIRA, 1973, p. 244).

Por meio da morna, Tavares buscava aproximar o discurso literário da canção e da fala do povo. Possuidor de uma apurada bagagem cultural que viria a se refletir em sua produção escrita, seu estilo impactou de forma marcante em muitos compositores cabo- verdianos durante longas décadas. Suas cantigas, escritas na língua crioula, caracterizavam-no como trovador ao gosto popular e tradutor da alma cabo-verdiana.

A morna de Eugénio Tavares é expressa, sobretudo, na língua cabo-verdiana, o crioulo, definida por Baltazar Lopes da Silva como “a fala genuinamente popular e dialetal, sem contaminações por via culta” (SILVA, 1984, p. 286). O crioulo, que mais tarde passou a denominar-se “língua cabo-verdiana”, é, antes de tudo, a língua de expressão da alma cabo-verdiana, isto é, a melhor forma de o povo se expressar, mostrar a sua alegria, a sua dor, os seus anseios, os seus sonhos.

Além disso, acrescenta Simone Caputo Gomes, a língua cabo-verdiana “comprova o triunfo generalizado, em Cabo Verde, de expressões mestiças de raízes afro- negras” (GOMES, 2012, p. 4). Largamente falada em todo o arquipélago, a língua cabo- verdiana ganhou a desenvoltura desejada e a força telúrica da sua comunicabilidade após a independência de Cabo Verde. É importante, aqui, salientar que durante muitas décadas o colonialismo não permitiu a fixação oficial do crioulo. As Instituições Oficiais não tinham interesse em divulgar a cultura local. O crioulo era mal visto pelo poder político, por isso proibido nos serviços públicos.

A língua cabo-verdiana constitui um idioma comum a todas as ilhas e a todas as camadas sociais, é o fruto da criatividade do cabo-verdiano e talvez por isso o seu principal elemento identitário. É sua afirmação cultural. Como diz Dulce Pereira, ela é

a doce língua da mãe, das estórias, dos provérbios, dos pensamentos mais íntimos, da poesia em verso ou em prosa, que se diz ou escreve conforme se pode ou a nova lei manda: língua de todos os cabo-verdianos sem excepção, mesmo dos que falam português (PEREIRA, 2001, p. 153).

No que diz respeito ao uso da língua cabo-verdiana nas mornas, isso ocorre porque, sendo uma manifestação artística popular, ela faz parte da vida do povo, de seu cotidiano. Ela compreende uma coletividade e traduz seu estado de espírito. Para Pedro Cardoso, a língua cabo-verdiana é “o português da época dos descobrimentos, alterado fonética e morfologicamente ao contato com os falares do gentio resgatado na costa da Guiné” (CARDOSO, 1983, p. 23).

Eugénio Tavares foi um dos maiores poetas da crioulidade. Além de ter escrito grande parte da sua obra em língua cabo-verdiana, ele defendia ser esta um elemento que caracteriza o homem cabo-verdiano. Essa defesa residia no próprio ato de escrever de Eugénio. Por meio da sua pena, ele demonstrou que a língua cabo-verdiana pode ser um meio para fazer literatura. Suas mornas dialogavam com a tradição literária portuguesa e, apesar do anacronismo, diferentes temas eram abordados, tendo o romantismo como principal referência. Temas como o amor, a dor, a saudade, a emigração, a natureza e a religiosidade, convencionais nessa escola literária, percorriam a produção poética desse poeta cabo-verdiano. Dessa maneira, Eugénio ocupava ao mesmo tempo o lugar de intelectual cabo-verdiano e de poeta popular, divulgador por excelência da morna.

Por ter vivido em uma época marcada pela fome, pela emigração, pela luta política entre monarquistas e republicanos, existe um consenso geral entre os estudiosos da vida e da obra de Eugénio, de que foi ele quem melhor expressou e cantou a realidade cabo-verdiana. Aqui recorremos a Genivaldo Rodrigues Sobrinho, que nos informa:

Esse artista popular cabo-verdiano, com seu espírito observador e repleto de determinação, soube, como ninguém mais, buscar, nas tradições socioculturais de seu pequeno país e da época por ele vivida, os motivos para a composição de seus versos e textos. E, ainda, teve a inspiração para recriá-los e recheá-los de poesia, mantendo um estilo próprio e encontrando novas maneiras de cantar a morna, diferentemente das mornas antigas da Boavista, ilha tida como berço dessa modalidade musical (SOBRINHO, 2010, p. 118).

Na primeira metade do século XX, muitos foram os intelectuais que escreveram sobre Eugénio Tavares e deixaram testemunhos sobre sua criação poética e musical entranhada nas ilhas de Cabo Verde. José Osório de Oliveira, contemporâneo de Eugénio Tavares, dá o seguinte testemunho: “[...] nenhum poeta do mundo viveu mais do que esse as suas poesias. Não é de se estranhar, portanto, que ele tenha personificado a alma inteira de um povo” (OLIVEIRA, 1932, p. 98). O escritor e poeta José Lopes descreve-o como “um lindo moço, formoso de rosto e mais formosa cabeleira, de tez branca”[4]. No jornal Voz de Cabo Verde, José Lopes faz uma rica declaração de reconhecimento sobre o papel de Eugénio Tavares na cultura e literatura de Cabo Verde:

Não foi somente como poeta que Eugénio Tavares se elevou a igualar os mais distintos. Foi também distintíssimo prosador e, na imprensa periódica, formidável polemista, o primeiro da sua terra, da nossa terra, e digno de ser comparado aos melhores cultores do vernáculo [...] (SILVA, 1930, p. 3).

O poeta e romancista neorrealista Manuel Lopes iguala o poeta bravense a Camões, considerando suas mornas a epopeia de Cabo Verde (RODRIGUES, 2015, p. 74). Um ano depois da morte de Eugénio Tavares, António Aurélio Gonçalves, professor, escritor, ensaísta e estudioso da música e da literatura cabo-verdianas, recordava-o, dizendo que “com Eugénio Tavares morreu, sem contestação, a mais vibrante organização lírica cabo-verdiana” (RODRIGUES, 2015, p. 75).

Eugénio Tavares foi grandiosamente reconhecido por intelectuais tanto da sua geração como da geração seguinte que identificaram na morna um instrumento privilegiado para narrar a vivência coletiva. Com efeito, Eugénio foi um compositor e intérprete da morna e contribuiu de forma importante para o conhecimento do patrimônio histórico-cultural cabo-verdiano, como também para a compreensão da evolução de sua mentalidade, buscando conservar suas tradições ao transferir para o papel os costumes e expressões locais da sua gente (PINA, 2008, p. 1).

Em língua portuguesa, esse poeta usa a escrita como denúncia social, trazendo a público os dramas que assolam as ilhas de Cabo Verde: a emigração, a seca, a fome, a dor da partida e a alegria do regresso, o exílio, a diáspora e a insularidade, os quais, por meio da morna, expressam as marcas identitárias que unem os cabo-verdianos do arquipélago aos cabo-verdianos da diáspora.

A variedade de temas que a morna expressa está relacionada a valores sentimentais como o sofrimento, a saudade, a dor, o luto, o choro, a lamentação e a melancolia, sentimentos enraizados na dor escrava, na sua expressão máxima, dessa “morna que substitui o choro do escravo, e que se confunde com os seus gemidos, servindo como linguagem para falar das tristezas e amarguras vividas pelo povo cabo- verdiano” (DIAS, 2004, p. 85).

A morna, ou as manifestações musicais e poéticas a ela ligadas, pode ser identificada com os vários momentos sociopolíticos, socioeconômicos ou culturais de Cabo Verde. Ela identifica-se com a própria vida do cabo-verdiano. Nela temos a ideia de identidade condensada nos conceitos de distância, de terra-longismo, de nostalgia, de saudade, de apego telúrico, que caracterizam o povo ilhéu e lhe conferem uma identidade. Um dos temas mais cantados por diferentes músicos cabo-verdianos é o amor.

A temática do amor é destaque na poesia e na música de Eugénio Tavares. O poeta bravense “faz do amor e seus limites impostos pelo mar e a emigração, um acto revolucionário” (SILVA, 2005, p. 102). Em Eugénio Tavares, o amor advém como tema primordial da sua criação poética, as mornas e os poemas que o escritor dedica ao povo, cantadas e escritas em língua cabo-verdiana

Seja em língua portuguesa, seja em língua cabo-verdiana, o romantismo é uma das características da poesia de Eugénio Tavares. No entanto, a morna distingue-se pelo que há de crioulo, pelo sabor cabo-verdiano, a presença da sonoridade típica da língua e o equilíbrio entre idealismo romântico e realismo. Nas mornas amorosas de Eugénio Tavares, o amor se transforma de tal forma que, sem ele, só existe lugar para a morte. É o que este poeta canta em uma das suas mornas mais conhecidas, intitulada “força de cretcheu” ou ‘força do amor”. Nessa morna, o conceito de amor é flagrado pela presença do vocábulo “cretcheu”, dispondo o poeta da diferença entre o amor, tema existente em toda a literatura, e “cretcheu”, que se encontra somente na literatura cabo-verdiana.

Sobre a definição da morna, sabe-se que está presente nos textos de poetas e escritores cabo-verdianos de diferentes gerações desde o começo do século XX. Esse gênero musical é caracterizado por intelectuais e poetas como “a doce expressão da alma do arquipélago”, cujo romantismo herdado dos trovadores reflete a realidade insular do povo de Cabo Verde, além do amor à terra e o dilema entre a obrigação de partir e o querer ficar (MENDES, 2010, p. 37).

João Lopes afirma que o cabo-verdiano “responde a todos os anseios e apelos da sua alma com a morna, a sua música típica, toda ela impregnada de melancolia e doce nostalgia” (LOPES, 1968, p. 38). José Luís Hopffer Almada, em sua evocação poética, afirma: “A morna é um crepúsculo de lágrimas desta súbita e antiga recordação” (GOMES, 2008, p. 146). Portanto, a morna é um dos vários gêneros musicais que existem em Cabo Verde, e um dos mais conhecidos e divulgados fora do arquipélago, sendo apresentada como:

Mágoa de nossa vida, dor da nossa raça, o eco que evoca coisas distantes; é lírica, é dada ao amor, à tristeza, à saudade, à dor e a toda uma infinidade de sentimentos melancólicos, demonstra aceitação e resignação, música sentimental e contemplativa; lenta e pretende tocar o íntimo da alma. A boa morna desperta o choro (FERREIRA 1968, p. 10).

Nesse contexto, entendemos que a morna enquanto gênero musical afirma-se como valor ideológico do cabo-verdiano e da sua forte ligação com a terra em que nasceu e com a qual se identifica. Ela condensa esse lirismo do sensível povo das ilhas da “morabeza” e torna-se patrimônio da resistência, passando pela história de seus antepassados até o encontro com sua identidade. A morna é o canto brotado da dor, da luta e da sobrevivência, é a forma de expressão mais genuína e poética que o cabo-verdiano utiliza para fazer-se conhecido dentro e fora das ilhas de Cabo Verde.

Referências

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Notas

[1] LIMA, Tânia; SANTOS, Derivaldo; Rego, Aparecida. (Org). Tessitura de Vozes - literaturas, histórias e culturas africanas. Gráfica e Editora- Caule de Papiro. 1ª. Edição- Natal. 2018

[2] Local de publicação do artigo

[3] De “passar bem, lugares maravilhosos onde se sente bem” (tradução nossa).

[4] In: TAVARES, Eugénio. Viagens, tormentas, cartas e postais. Praia: Documentos, 1999. p. 19.

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[i] Geni Mendes de Brito é Doutora em Letras – Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Professora de Literatura portuguesa, brasileira e cabo-verdiana. Coorganizadora do volume Literatura e cultura de Cabo Verde: navegando pelas ilhas e pelo mundo. (2021). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

[ii] Tânia Maria de Araújo Lima é Doutora em Letras – Estudos Literários pela Universidade Federal de Pernambuco e Professora do Programa em Pós-Graduação em Estudos da Linguagem – PpgEL da UFRN. (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.). Orientadora  da pesquisa de doutorado  de Geni Mendes Brito sobre as Mornas em Cabo Verde.

[iii] Simone Caputo Gomes é Doutora em Letras, Professora de Literatura Portuguesa na USP e Coorientadora da Pesquisa  de Geni Mendes Brito.

 

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