Morna e sua expressão lírica1

Geni Mendes de Britoi

Os poetas de Cabo Verde
Estão cantando...
Cantando os homens
Perdidos na pesca da baleia.
Cantando os homens
Perdidos em aventuras da vida
Espalhados por todo o mundo!
Em Lisboa?
Na América?
No Rio?
Sabe-se lá!...
— Escuta.
É a Morna...
Voz nostálgica do cabo-verdiano
Chamando por seus irmãos!
(TENREIRO, 1942, p. 36-37)
 

A Morna, enquanto gênero musical e poético é uma das mais genuínas criações da inventividade artística cabo-verdiana e aquela que possui o ônus de maior representatividade na literatura local, pois exprime o que de mais delicado e requintado as ilhas conseguiram criar como retrato da sua construção identitária, ao percorrer diferentes momentos da história cultural do país e envolver membros de diferentes setores da população. Os temas presentes e explorados na poesia e na prosa de ficção de diferentes gerações que constroem a literatura cabo-verdiana encontram guarida e possibilidade de execução através das mornas, que versam, preferencialmente, temas como o amor — em todas as suas vicissitudes, a saudade, a emigração forçada, a dor da partida e a alegria do regresso, o clamor da injustiça e da má distribuição das riquezas (CRUZ, 2006, p. 81).

Essa poesia sentimental lírica, de temas envolventes e quase sempre apaixonados, é um ícone da identidade deste povo. Desde nossa epígrafe, essa voz nostálgica do cabo-verdiano é objeto de variadas definições, porém é importante frisar que, além de representar uma das principais marcas da identidade crioula, ela constitui um expoente do lirismo literário de Cabo Verde. Para defini-la, é preciso passar, obrigatoriamente, pela leitura dos textos e pela compreensão do contexto histórico-social em que ela foi escrita. É importante conhecer a história cultural dessas ilhas, para que se possa compreender a Morna, “ligando-a ao todo e ao particular, ao social e ao ideológico, o que o tornará verdadeiro e credível, e sua especificidade reside na sua natureza, estrutura e objetivos” (RODRIGUES & LOBO, 1996, p. 21-22).

Foi “nos princípios do século XX, que poetas cabo-verdianos como José Lopes, Pedro Cardoso, Eugénio Tavares, Osório de Oliveira, Jorge Barbosa, dentre outros, começaram a caracterizar e a falar da Morna nos seus poemas” (RODRIGUES, 2015, p. 48). Esse período caracterizado, por um lado, pelo forte impacto do Romantismo, Naturalismo e Simbolismo, por outro, pelo Classicismo-renascentista europeu. Acrescente-se o fato de Cabo Verde ser ainda uma plataforma giratória, nas ligações entre os continentes e de, na produção desses poetas, rastrearem-se facilmente a influência do Romantismo brasileiro, inclusive, com citações diretas dos seus autores. A partir desses fatos, pode-se enquadrar a Morna, como metadiscurso nacionalista, a segunda grande característica do Romantismo, enquanto movimento, na poesia cabo-verdiana. Assimilada como um dos principais símbolos desta nação, a Morna expressa inúmeros aspectos da cultura que se vive nas ilhas e, com base nos discursos construídos sobre ela, é possível investigar vários projetos de pertencimento elaborados por grupos sociais e culturais distintos.

Em entrevista, o poeta Filinto Elísio (2017) pontua que a poética da Morna, na sua grande maioria escrita e falada em língua materna - a cabo-verdiana, “é esteticamente lírica, com figuras de estilo, como metáforas e comparações”, corporizando-se em uma poesia baseada, tanto nas emoções do autor como nas tradições culturais do arquipélago, ou seja, o “eu-poético” toma mão de diferentes estilos de linguagem para transmitir os seus sentimentos e as emoções presentes por trás das palavras. Do ponto de vista temático, acrescenta Elísio que “a Morna é plural e diversa, e centra-se na relação do ilhéu e do apego deste ao arquipélago, da saudade agravada pela insularidade e diasporicidade”, e acrescenta “pelo sentimento de amor e de perdas, o ápice da condição existencial” (ELÍSIO, 2019, p.1). Interpretada como fonte para diferentes leituras da história do povo cabo-verdiano, a Morna contribui para a construção de uma memória coletiva, que também cria suas próprias omissões, silenciamentos, exclusões e marginalizações. Para António Aurélio Gonçalves,

É incontestável que, em muitos e muitos exemplos, a Morna atinge beleza notável. Por muitas das suas qualidades, pela sua delicadeza, pela inesgotável variedade dos seus motivos, ela tem probabilidades de poder ser considerada a parte mais rica do nosso folclore (GONÇALVES, 1955, p. 173)

Seus elementos nascem da vontade do poeta de expressar as marcas identitárias que unem os habitantes do arquipélago e os cabo-verdianos da diáspora. A poesia e a musicalidade dos versos trazem à tona os sentimentos do fundo da alma do povo, ou seja, a manifestação de sua alegria e dor, da incerteza ou da esperança. Todos esses elementos estão presentes no poema intitulado “A Morna” de Pedro Cardoso, que a define como:

Flor de duas raças tristes,
Vindas da selva e do mar
Que a sós se acharam um dia
Na mesma praia ao luar.

A morna, verbo ou cantiga,
A quem saiba sentir,
Trava ao gosto doce-amargo,
De delícias punir.

A morna quem a inventou
Foi um poeta de aquém Mar,
Numa tarde roxa e amena
Ouvindo a onda murmurar.

Na sua morna cadência
Canta a mágoa e a alegria,
Dos éstos da Alma Crioula
É a rubra sinfonia.

A morna é a flor mais linda
Do canteiro Hesperitano!
Pelo amor das jardineiras,
Fez-se a Rosa de todo o ano.

Pelo ritmo em ameno encanto
E o primor das cantigas;
Desponta e floresce em beijos
Na boca das raparigas. 

A morna nasceu de um beijo
De cálidas vibrações
Numa só fundindo as almas
De uma Bárbara e um Camões!
(SOBRINHO, 2017, p.178-179).

 

Essa Morna, pela sua natureza lírica, serviu aos propósitos da escrita romântica de Pedro Monteiro Cardoso, que apresenta a “morabeza”, um sentimento, muitas vezes evocado no processo de construção da cabo-verdianidade: o ser alegre, amorável, amigável, acolhedor, mas que também é triste, saudosista e melancólico, sentimentos nostálgicos próprios do cabo-verdiano e de uma elite letrada do final do século XIX, cuja produção se estendeu até aos anos 50 do século XX.

Definida como resultado de uma cultura luso-tropical flor de duas raças tristes percebe-se, nessa Morna, que o “eu-lírico” toma de empréstimo elementos da poesia romântica brasileira da primeira geração, ou seja, a busca da identidade nacional, da exaltação da natureza e retorno ao passado; mas, sendo produto único e singular, revela as características contraditórias dos éstos da Alma Crioula (v.15), na Rosa de todo o ano (v. 20), na estrutura popular resgatada pelo Romantismo (quadra, versos oscilando entre as cinco e seis sílabas populares orais, rima cruzada) e tipo de metáforas.

A referência a essas duas raças tristes / Vindas da selva e do mar revela que “a história de Cabo Verde se confunde com a epopeia do mar que, em diferentes conjunturas, desempenhou papel de relevo para a afirmação das ilhas no Atlântico e no mundo” (ÉVORA, 2014, p. 102). Foi por via do mar que chegou a essas ilhas uma multiplicidade de povos, de diferentes paragens, culturas, grupos étnicos, percursos históricos, trazendo em suas bagagens os ingredientes que viriam a determinar uma cultura cabo-verdiana própria, conhecidamente denominada de crioula.

Nos versos: A Morna é a flor mais linda / do canteiro Hesperitano! O eu-poético traz em cena um antigo mito proveniente da Antiguidade Clássica, denominado “hesperitano” ou “arsinário”. O conhecimento sobre esses mitos foi adquirido no Seminário de São Nicolau e era abordado pelas correntes românticas e ultrarromânticas, parnasianas e simbolistas, como se pode constatar, também, nas poesias de Eugénio Tavares, José Lopes, Guilherme Dantas, Januário Leite, entre outros poetas hesperitanos, arsinários e claridosos.

Enquanto Pedro Cardoso compara a Morna ao canteiro de suas Hespérides (1930) e Jardim das Hespérides (1926) às voltas com os mitos greco-latinos, o poeta Jorge Barbosa (1902-1971) refere-se à Morna em alguns de seus poemas como:

Canto que evoca
Coisas distantes
Que só existem
Além do pensamento,
E deixam vagos instantes
De nostalgia
Num impreciso tormento
Dentro de nossas almas...
Morna
Desassossego,
Voz da nossa gente,
Reflexo subconsciente em nós
Das vagas ao longo das praias;
Das aragens
Que trazem um sorriso bom
Às equipagens
Dos barquinhos à vela
[...]
Musicando rapsódias em surdina
Nos tectos das casas pobres
(BARBOSA, 1935, p. 30-31) 

Para Jorge Barbosa, tanto a Morna como o cabo-verdiano possuem forte ligação com o arquipélago. O poeta se refere ao canto como a voz de sua gente, uma voz que ecoa sentimentos relativos à distância e à nostalgia, tão marcantes no ilhéu. Sua temática centra-se nas realidades étnico-sociais e culturais de Cabo Verde, como o mar, as rochas e a luta desse povo frente às adversidades climáticas.

O mar mencionado na poesia de Jorge Barbosa é um símbolo que evoca uma das características mais marcantes dessa sociedade e dessa cultura: a insularidade, que, numa primeira instância, conforme Maria Teresa Salgado (2009, p. 164), “pode ser apreendida a partir do isolamento geográfico e existencial experimentado pelo ilhéu, da solidão daí decorrente, que encontra ecos e desdobramentos na humana condição em qualquer parte do globo”.

Esse sentimento de solidão e de nostalgia que o cabo-verdiano experimenta face ao isolamento imposto pelo mar, que separa as ilhas do arquipélago do resto do mundo, provoca no ilhéu um estado de angústia e de ansiedade que o leva a sonhar com outros horizontes além-mar. Para o povo dessas ilhas, o mar está em tudo. É o que sugere o próprio Jorge Barbosa, em seu “Poema do Mar”, publicado em 1941, no livro de poesia intitulado Ambiente:

O Mar
Dentro de nós todos
No canto da Morna
No corpo das raparigas morenas
Nas coxas ágeis das pretas
No desejo da viagem que fica
Em sonho de muita gente.
Este convite de toda a hora
Que o Mar nos faz para a evasão!
Este desespero de querer partir e ter de ficar!
(BARBOSA, 1941, p. 30)

Jorge Barbosa é considerado o poeta do mar e o pioneiro da moderna poesia cabo-verdiana. Nesse poema, o autor apresenta os vários “sememas” do signo mar, como: desejo, viagem, evasão, desespero. O poeta quer mostrar que o mar está no homem, na alma, no corpo, nos movimentos; que dá voz ao ideal da “terra-longe” e do “querer bipartido”; que impregna e espraia-se No canto da morna, / no corpo das raparigas morenas, explode nas coxas ágeis das pretas e no desejo da viagem que fica. Por isso, o sujeito-lírico afirma que o mar está presente em tudo e em todos, e reafirma; está dentro de nós todos.

Cabe lembrar que os poetas que escrevem sobre a Morna, em geral, fazem referência a uma diversidade de temas que configura a realidade histórico-cultural das ilhas, características postas na morna-poesia de Jorge Barbosa intitulada “Irmão”. A Morna é caracterizada no texto como instrumento de comparação e de referência telúrica ao mar que abraça a terra, ao mesmo tempo em que retrata uma radiografia do drama social do homem cabo-verdiano: 

[...]
A Morna...
Parece que é o eco em tua alma
Da voz do Mar
E da nostalgia das terras mais ao longe
Que o Mar te convida.
O eco
Da voz da chuva desejada,
O eco
Da voz interior de nós todos.
Da voz de nossa tragédia sem eco
A Morna...
Tem de ti e das coisas que nos rodeiam
A expressão da nossa humildade,
A expressão passiva do nosso drama,
Da nossa revolta
Da nossa silenciosa revolta melancólica!
[...]
(BARBOSA, 1941, p. 19)

Várias linhas temáticas são abordadas nesse trecho do poema: os dramas sociais sempre relacionados com a escassez de água, de alimento, de trabalho, com as grandes estiagens que geram a fome e a falta de esperança no futuro, com as secas e com o terra-longismo geográfico, nostálgico e melancólico.

Nota-se, também, o tom de denúncia, que é uma das principais linhas de força na poesia de Jorge Barbosa. Frente a essas situações com as quais, diariamente, o povo cabo-verdiano tem que lidar, ele faz surgir, no sujeito poético, uma espécie de frustração, de impotência, de resignação, que o eu lírico denomina de nosso drama, sentimento que se traduz em uma silenciosa revolta melancólica, fruto de uma expressão passiva que reproduz o eco da alma do irmão cabo-verdiano, que se torna o eco da nossa própria alma.

A poesia cabo-verdiana recebe também a contribuição de mulheres que, ao longo dos tempos, vêm construindo uma tradição literária que tem se destacado e cresce a cada dia. Suas obras vêm buscando, insistentemente, a própria identidade feminina, uma consciência nacionalista suficientemente desenvolvida, que, por muitos séculos, ficou escondida e foi até mesmo massacrada pelos representantes do sexo masculino, pela ideologia patriarcal associada à opressão advinda do colonialismo.

Na atualidade, a produção literária feminina cabo-verdiana traz à cena uma diversidade de temas que revelam as experiências de vida, os dilemas existenciais, preocupações diárias, as lutas e conquistas de mulheres sem nome, sem voz; as anônimas, mas que trazem no cotidiano experiências que são retratadas em diferentes realidades. Poetisas, cronistas, ficcionistas (contistas e romancistas), estão enquadradas em todos os gêneros literários, e essa visibilidade e a voz das mulheres é aqui representada pela escritora e ensaísta cabo-verdiana Carlota de Barros (2011), que escreveu o poema “Mornas”, definindo-o como Encanto de um povo, comparado a uma melodia suave, igual à chuva miudinha na telha (BARROS, 2011, p.18)

A temática da chuva sempre teve uma conotação especial, constituindo-se como elemento essencial para sua sobrevivência; a chuva também desempenha um papel de relevo na poética, nas narrativas e na literatura cabo-verdiana. Acompanhando o estado de alma dos poetas, a chuva que não vem reflete certa melancolia. Por isso, o poeta Jorge Barbosa em seu poema “A Terra”, pontua: Se não cai a chuva, / [ocorre] o desalento, a tragédia da estiagem [...] uma dor profunda, e lamenta: Ai o drama da chuva, ai o desalento, o tormento da estiagem (BARBOSA, 1935, p.23-24). Mas, quando cai, a chuva é louvada e festejada, pois traz aos cabo-verdianos momentos de fartura e de alegria. Assim, ela foi cantada e celebrada na “Morna” de Ovídio Martins:

Choveu
Festa na terra
Festas nas ilhas
Já tem milho pa cachupa
já tem milho pa cuscus
Nas ruas nos terreiros
Por toda banda
As mornas unem os pares
Nos bailes nacionais
Mornas e Sambas
Mornas e Marchas
Mornas mornadas
[...]
(MARTINS, 1963, p. 44-45).

A chegada da chuva, em Cabo Verde, sempre foi uma festa, uma alegria, pois ela é o símbolo, por excelência, da fartura e da vida. Para o poeta, as Mornas são as testemunhas concretas dessa alegria nacional que se espalha em todas as ilhas, que alimenta o desejo amoroso, que unem os pares/Nos bailes nacionais. Para o cabo-verdiano, a chuva é comparada a um tesouro e a água representa o renascimento, a ressurreição para a vida; sendo escassa ou abundante, a chuva é sempre um elemento que fertiliza a terra. Ela proporciona ao homem do campo a felicidade e a prosperidade, por isso ela merece ser louvada e festejada.

Desde a geração de poetas e ficcionistas da revista Claridade até aos dias atuais, a chuva tem sido um leitmotiv da poesia e da ficção cabo-verdiana de que nenhum dos seus escritores pôde escapar. A lírica de Carlota Barros canta e exorta a chegada da chuva, nas ilhas, através da Morna, que retrata esses momentos de festa. Em “Recado para as ilhas”, a autora canta a chegada da chuva nesses termos:

Chegou a chuva
[...]
E com ela, o verde, e o rosa, os azuis.
[...]
Trazem de comer
E beber
Para todos
Há sons de timbales que passam
[...]
Violões
Rabecas
Clarinetes
E cavaquinhos
Ensaiam
Mornas
Coladeiras
E funaná
As gentes dançam batuque e mazurca
E lá vem a contradança
Também porque as ilhas são verdes
E a chuva chegou...
(BARROS, 2011, p. 23) 

O eu-lírico, além de festejar a chegada da chuva, apresenta uma variedade de atributos positivos que ela produz: a paisagem colorida de verde, rosa e azuis; o comer / E beber / Para todos, acompanhado dos sons das festas com seus instrumentos e suas danças: Mornas / Coladeiras / E funaná.

Em “Dois poemas ao mar”, de Arnaldo França (1925-2015) a Morna tem papel fundamental na construção da partida e da recordação como valor: 

Partir,
Deixar a ilha tão pequena
Que o vento nômade
Bafeja
E as ondas do mar
Rodeiam.
[...]
Deixar na terra o canto de uma morna
Que o emigrante
Recorde.
Fugir,
Deixar no mar o sulco branco
Da hélice do vapor,
Que as vagas mansas
Apaguem...
Nos olhos a saudade retratada
Da distância percorrida.
Noites de vigília
Sonhando a distância longínqua
(FERREIRA, 1997, p. 138)

O tema da partida, na poesia cabo-verdiana, é constantemente recorrido em diferentes autores. Na poesia de Arnaldo França, o “eu-poético” afirma que esse desejo de partir, de deixar a ilha cria a nostalgia naqueles que ficam e a resignação nos que partem para países distantes, levando recordações expressadas através da Morna. O mar constitui-se num caminho que o ilhéu deve percorrer, numa imagem criadora da evasão, do “deixar a terra”, do “fugir” para um destino, muitas vezes desconhecido. Para o cabo-verdiano, o “partir”, numa percepção semiótica, representa a busca para a sobrevivência. Ao lado da dor da partida, outro sentimento valorizado pela literatura cabo-verdiana é a saudade, enraizada nas Mornas como sentimento inevitável da experiência de quem emigra, de quem parte. Para o poeta Teobaldo Virgínio, a Morna é:

Saudades dispersas
Na brisa que passa
Na noite que chora
No mar que brama
Na flor que perfuma
Na mágoa que mata
Na Morna da nossa vida.
(FERREIRA, 1997, p. 276).

Nessa Morna-poesia, Teobaldo Virgínio presentifica a saudade, esse sentimento melancólico de incompletude, ligado pela memória de privação da presença de alguém ou de algo, afastamento de um lugar ou de uma coisa. Para o sujeito lírico, a saudade se manifesta na brisa, na noite, na aurora, no mar e na flor, como também na mágoa que mata e na Morna de nossa vida.

A saudade e a nostalgia são “dois dos sentimentos que mais ligam a alma humana à sua terra-mãe” (LIMA, 2001, p. 259). Esses sentimentos são percebidos no poema intitulado “Morna” de Daniel Filipe (1925-1964), presente na obra “A ilha e a solidão” (1957).

Morna
É já saudade a vela, além.
Serena, a música esvoaça.
Na tarde calma, plúmbea, baça,
Onde a tristeza se contém. 

Os pares deslizam embrulhados
De sonhos em dobras inefáveis.
Ó deuses lúbricos, ousáveis.
Erguer, então, na tarde morta.
A eterna ronda de pecados
Que ia bater de porta em porta! 

E ao ritmo túmido do canto
Na solidão rubra da messe.
Deixo correr o sal e o pranto
— subtil e magoado encanto
Que o rosto núbil me envelhece.
(FERREIRA, 1997, p. 259)

Consagrado autor, apenas nascido em Cabo Verde, sempre esteve repartido entre dois sistemas literários, inicialmente a cabo-verdiana, depois a portuguesa. Daniel Filipe se revelou poeta fora de sua terra, mas, embora tenha sido radicado em Portugal e com nome ligado à literatura portuguesa, exige a sua recuperação cabo-verdiana. Seus textos-poéticos refletem o contexto sócio-político em que viveu, marcando constantes indagações sobre o presente e o futuro. Nesse seu poema, o sujeito poético saudosamente evoca a mãe-ilha — Cabo Verde — sua terra natal, num exercício de reminiscência e angústia existencial que percorre toda a escrita, como se realizasse uma síntese de sua memória, envolvida, ao mesmo tempo, por uma dolorida evocação ou presentificação do passado.

Tanto a poesia de Daniel Filipe, como de outros poetas cabo-verdianos, a saudade das ilhas sempre impactou de forma profunda a lírica desses autores que, por qualquer motivo, tiveram de deixar Cabo-verde para a “terra-longe”. Nesse sentido, como falar da ideia de saudade, em Cabo Verde, sem considerar o lugar de origem? É o que transmite Corsino Fortes, nascido em Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde, em 1933. Em sua lírica, esse poeta constrói hinos de amor à sua cidade natal, nomeando-a como doce e plena de luzes. E a Morna encontra nessa cidade De lua nascente e poente, um espaço propício para que o poeta, em tom nostálgico, relembre:

Mindelo...
Entre a escuridão
E o silêncio da noite
Amachucado
Entre a Morna e o violão
Sonho... Mindelo
De mãos apoiadas
Sobre o eco da tua pulsação
[...]
Mindelo
Ó doce Mindelo morno
De lua nascente e poente
De noite debruçado
Na morna dolente
De poesia encostada
Na esquina da noite.
Mindelo de luzes
De pétalas e prantos
Ó quimera perdida
Ó berço adormecido
Embalado
Dentro de mim.
(FERREIRA, 1997, p. 198)

“Terra da promissão” e, ao mesmo tempo, “terra da perdição” são adjetivos que fazem referência a essa cidade cosmopolita, boêmia, na qual proliferavam bares, restaurantes, cafés, casas de jogos. Foi esse o ambiente em que prosperou a Morna dolente, que encontrou as condições propícias para ser vivida em toda a sua profundidade. Nos botequins de Mindelo, à beira do porto, a Morna encontrou, ainda, os nostálgicos marinheiros vindos de outras terras, com suas novidades musicais que agregavam à canção cabo-verdiana novas qualidades, especialmente à Morna. Era ali, entre a Morna e o violão, ao fim de um longo dia de trabalho, “ao som das Mornas, que muitos homens do porto encontravam seu merecido descanso, tocando seu instrumento à soleira das portas, no movimento das tabernas ou mesmo na diversão dos bailes a pau-e-corda” (DIAS, 2004, p. 101).

Sendo a Morna entendida como a expressão dos sentimentos do povo, para o poeta Vasco Martins (1988), ela é “essencialmente uma temática sensitiva e elegante, é a dramatização das aspirações e do conceito do imaginário do povo cabo-verdiano” (MARTINS, 1988, p. 9).

Em “Reminiscência”, o poeta Virgílio Pires (1935) relembra esses estilos musicais, enquanto questiona:

Quem não se lembra
Dos bailes da bola preta?
Ritmos brasileiros,
fox, mazurcas
E a morna a sublimar paixões [...].
Mazurcas com os passos rigorosamente medidos.
E a Morna morna no violino crioulo do Djédji.
(FERREIRA, 1997, p. 283)

Virgílio Pires entoa essa Morna-poesia com naturalidade, através de um sujeito lírico que transporta para a criação poética ritmos sonoros estrangeiros - Ritmos brasileiros, /fox, mazurcas - e elementos sonoros cabo-verdianos como a Morna, em sons que se encontram e se harmonizam, sublimando paixões.

Na poesia de Antônio Pedro (1909-1965), jovem poeta tocado pelo Modernismo português e sensibilizado com o Vanguardismo europeu, há uma ruptura com as estruturas tradicionais poéticas do arquipélago. Em seu livro de poemas Diário (1929), escreveu sobre a morna, interpretando-a como:

Reminiscência dum fado
Que, dançado
Num maxixe,
Tem a tristeza postiça
Dum cansaço.
Um semicivilizado
Lasso
Balanço
Embalado
Sobre o ventre dum fetiche.
(FERREIRA, 1977, p. 41)]

Para o sujeito poético, a Morna é apresentada em dois momentos distintos: quanto à sua origem, que passa necessariamente pela afetividade portuguesa - da reminiscência de um Fado ao Maxixe - dança tradicional brasileira, e quanto aos sons onipresentes nas ilhas, território de influências múltiplas, sincréticas, objetos da cultura popular de dois povos e do encontro nada pacífico entre colonizador e colonizado; este definido pelo eu-lírico como semicivilizado e lasso, considerações expressas sobre o cabo-verdiano.

Outras definições são atribuídas à Morna, expressas em textos de diferentes representantes da intelectualidade cabo-verdiana. Para Manuel Ferreira, a Morna é descrita como um Canto dolente e doloroso que só existe além do pensamento (1973, p. 580). Para João Lopes (1968, p. 38), o cabo-verdiano responde a todos os anseios e apelos da sua alma com a Morna [...] toda ela impregnada de melancolia e doce nostalgia. De volta aos textos de Pedro Cardoso, poeta e estudioso que publicou Folclore Cabo-Verdiano (1933), ele afirma, em tom poético e mítico, que Mornas passam cantando as crioulas trigueiras, presente em Hespérides, e acrescenta: em ritmo, a Morna polariza a alma cabo-verdiana. Para o poeta Antônio Nunes, a Morna traz ao corpo a lassidão e o sonho (FERREIRA, 1997, p. 132).

Em “Jardim das Hespérides”, José Lopes (1872-1962), afirma que a Morna é a alma de Eugénio, referindo-se a um dos mais conhecidos representantes desse gênero musical e poético da literatura cabo-verdiana, e quem melhor soube expressar e cantar os sentimentos da alma desse povo. Para o português Julião Quintinha, Eugénio Tavares é, por excelência, o intérprete maravilhoso da alma desse povo ilhéu e sonhador (FERREIRA, 1973, p. 167).

Eugénio Tavares (1867-1930) é considerado um dos maiores poetas da crioulidade, que legou a Cabo Verde a perenidade dos seus temas líricos nas Mornas.  Ao elevar a poesia em língua cabo-verdiana, fez uso da Morna como principal veículo, aproximando-se do modelo estilístico dos portugueses Camões e João de Deus.

Trovador nostálgico, poeta do amor e da emigração, cantor de serenatas e de tertúlias, “Nhô Eugénio” como era carinhosamente conhecido, ao mesmo tempo em que aborda temas sentimentais como a saudade, a despedida, a partida e o regresso, posiciona-se de forma combativa frente aos problemas sociais e existenciais enfrentados pelo povo cabo-verdiano, ou seja, os dramas oriundos da seca e da fome, como também do abandono em que se encontravam as ilhas e a maioria da população.  

 Frente à sua significativa representação para a literatura cabo-verdiana, destacam-se duas de suas principais Mornas: “Força de cretcheu” e “Morna da despedida”. O amor e a despedida são os temas que, em geral, destacam-se nas Mornas de Eugénio Tavares que ficaram célebres, venceram o tempo e a tradição e, hoje, continuam a fazer parte do repertório musical e poético em Cabo Verde. Esses são temas também recorrentes e abordados por outros mornistas de sua época e da nova geração de poetas cabo-verdianos.

Após a explanação desse discurso histórico e cultural sobre a Morna e das diferentes características e definições a ela atribuídas por poetas e intelectuais cabo-verdianos, é importante perceber como esse gênero poético se impõe como um elemento de afirmação e de vivência coletiva nos seus mais diversos aspectos.

Nesse sentido, para concluir, concorda-se com as palavras de Luís Peixeira, quando expõe que a Morna “conta histórias, descreve paisagens e estados de alma” (PEIXEIRA, 2003, p. 171), características que ganham destaque e que são valorizadas na cultura cabo-verdiana. Por esses atributos e pela riqueza de imagens que descrevem a Morna, Jorge Barbosa exorta outros poetas lusos a viajar pelas ilhas e ouvir “a alma do arquipélago cantando mornas” (GOMES, 2008, p. 15); essa “Morna que perdura e acalenta” (MARTINS, 1963, p. 51, 54) o coração dorido e nostálgico do cabo-verdiano - símbolo maior da cultura crioula dessas ilhas atlânticas.

Nota

[1] In: SILVA, Agnaldo R.; BRITO, Geni M.; GOMES, Simone C. (org.). Literatura e cultura de Cabo Verde: navegando pelas ilhas e pelo mundo. 1. Ed.– Campinas, SP: Pontes Editores, 2021.

Referências

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______. A Morna.  In: Arquipélago. 1ª ed. 1935

BARROS, C. Morna (Sonho sonhado) In: Ricardo R. (org). Cabo Verde: antologia de poesia contemporânea. In: Revista Africana e Africanidades. Ano IV. n. 13. Maio de 2011.

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FERREIRA, M. No Reino de Caliban I. Antologia panorâmica da poesia africana de expressão portuguesa. 1º Volume. Plátano Editora S.A /4ª. Edição, 1997.

______. Literaturas africanas de Expressão Portuguesa I. Biblioteca Breve, Instituto de Cultura Portuguesa, 1977.

______. Aventura crioula. Crioula 3. Ed. Lisboa: Plátano, 1973.

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[i] Geni Mendes de Brito é Doutora em Letras - Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Professora de Literatura portuguesa, brasileira e cabo-verdiana. Coorganizadora do volume Literatura e cultura de Cabo Verde: navegando pelas ilhas e pelo mundo. (2021). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

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